quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Poética feminista para dramas humanos [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Vértigo (vertigem em espanhol) é claramente um espetáculo feminista, de um feminismo de pouco eco nestes Tristes Trópicos: o que põe a mulher, antes de representante de um gênero ontologicamente único, como representante da humanidade. A bailarina Camila Bilbao e a escritora Camila Urioste (ambas da Bolívia) trabalham o corpo dentro de um duplo registro: como local da política, portanto receptáculo de linhas de força e poder, predominantemente passivo; e como Político, isto é, constituinte de um sujeito ativo que intervém no mundo. Se no primeiro aspecto corpo masculino e feminino guardam grandes distâncias na forma como sofrem a dominação masculina, o segundo põe mulher e homem dentro de um mesmo registro, apesar das diferenças: o de sujeitos políticos, que refletem a sociedade em que vivem, mas são capazes de refletir, reflexionar sobre essa mesma sociedade, e intervir ativamente na sua transformação. Daí a capacidade dessa poética feminista tocar e comover uma pessoa, independente do seu gênero.
O espetáculo começa com Camila a analisar e lamentar as imperfeições da pele e do corpo diante de um espelho-câmera-Outro. Ainda que essa objetificação aguda do corpo recaia especialmente sobre as mulheres, também eu me pergunto: a que olhar tento me adequar? Que Outro invisível-mas-ostensivo faz com que eu me imponha determinados comportamentos? Que mecanismo é esse que nos reduz a imagem para permitir nossa existência dentro do espetáculo? A câmera de vídeo que flagra a insegurança de Camila não é olho de Deus, que está morto, não é o da autoridade do pai, que está capenga, é então o olho de quem que ela representa - para além do nosso, capturado por esse Outro? Que artifício é esse que nos faz reduzir também os demais a imagens, a fragmentá-los em pedaços como que independentes do todo, e a julgá-los e desprezá-los por terem o que nos falta e desejamos, exatamente da forma como fazem conosco e tanto reclamamos? 
Como corpos-objetos privilegiados para consumo, as mulheres são mais visadas por esse círculo perverso - que domina a sociedade do espetáculo de alto a baixo. Camila afirma explicitamente: "mi cuerpo es político". Dessa assunção decorre uma série de conseqüências, todas elas políticas: de ter um filho ou não a subir no tubo de pole dance, passando pelo usar rosa (cor de mulher) e observar seu corpo e o corpo das demais mulheres com um distanciamento cruel. É por ser um corpo político, iminentemente e radicalmente político, que Camila precisa também estar "siempre en guardia": não é em guarda temerosa do ataque do próximo homem, é em guarda do seu próximo ato: agirá ela com relação a outra mulher como a sociedade que a oprime? A questão de gênero não é posta mais em termos de vítima e carrasco, mas da dialética oprimido-opressor exposta por Paulo Freire.
Vértigo não é a recusa de um estado, é mais profundo: é o questionar radical de si, carregando junto com esse questionamento a sociedade toda - seus defensores e seus críticos. "El abismo abajo", que ela fala próximo ao fim do espetáculo, talvez seja tudo isso que levamos sem questionar, e que ela se põe corajosamente a encarar. Camila enumera as regras para uma "boa mulher": bonita, calada, sempre maquiada, sempre sexy, sempre submissa, sempre servil, sempre sorridente. Recusa o que não serve, incorpora o que acha válido para si - seu percurso dialético a autoriza a incorporar valores "positivos" da sociedade machista, sem que nisso haja contradição ou traição da causa. Recebe admoestações por ser sujeito autônomo, que vejo fácil na boca de algumas feministas-acadêmicas que conheci:  que é "demasiado sexy para ser feminista", que o tubo do pole dace é um símbolo fálico. Pois ela não vê assim: como sujeito é capaz de ressignificar elementos do quotidiano, sem se prender a determinações heterônomas, mostra que pode ser sexy E ser feminista; que o pole dance, fora dos inferninhos, é um instrumento de conhecer o próprio corpo de forma lúdica. Vértigo se autoriza a ser feminista e combativo ao mesmo tempo que é poético e delicado. Quem a repreende por não ter asas quando ela diz que vive uma "crisis de las alas" é porque não se dignou a enxergá-la, insiste em vê-la com os velhos olhos de um velho mundo - me dou um alento de que, sim, acho que vi asas em Camila. É por ter asas - ainda que em crise -, que Camila enxerga o abismo sob seus pés e ainda assim tem a coragem de dar "un paso fuera de mi". É quando o mundo muda: do "abismo abajo, infinito arriba" ela pode se deparar com a riqueza de sua humanidade: "el abismo abajo, el infinito adentro".

04 de agosto de 2016

ps: não coube no diálogo acima, mas destaco, a exemplo do espetáculo colombiano Elogio de guerra, que comentei em outro texto, o uso da palavra, do discurso, no espetáculo: um texto muito tocante e bem inserido na coreografia - coisa que não costumo ver em obras brasileiras.


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