quinta-feira, 18 de agosto de 2016

É preciso matar anjos [Diálogos com a Literatura]

Me espanta a indiferença  cruel  com que a enfermeira, irritada em suas narinas, propõe matar os anjos: "por que não lhe dá uma injeção contra os anjos? Deve ter aprendido a matar anjos na Faculdade: os cadáveres de autópsias são anjos defuntos, anjos que se deixam esquartejar sem  uma palavra de revolta". A moça, esquecida num ermo, a fazer companhia a cabras em meios a restos, de repente ganhou a companhia de anjos que conversavam com ela, e foi  para a cidade. Os anjos não lhe faziam mal, tampouco ela fazia mal a alguém, mas é preciso matar os anjos - devastar qualquer ser, qualquer vida que não seja a vida definida como normal, essa feita do amargo ressentimento a quem foi prometida uma felicidade de bijuteria, se suportasse calado as agruras de uma vida de merda trabalhada para outrem. O trecho de Conhecimento do inferno, do António Lobo Antunes, me fez lembrar de um ex-freqüentador do Centro Cultural São Paulo. 
Tendo o psiquiatra perdido o poder de polícia, e não tendo (ainda) o militar assumido o poder psiquiátrico (com temor aguardo o que gestam os evangélicos), resta à assistência social - com as mais hipócritas das boas intenções - matar os anjos, ou ao menos afastá-los da vida das pessoas normóticas, que crèem que a felicidade acontecerá quando no mundo não houver qualquer diferença significativa. A assistência social limpou o CCSP dos maus elementos, pessoas que usavam o espaço para ler, assistir a filmes, jogar xadrez, conversar e conviver, sem terem dinheiro suficiente para poder usufruir desse direito (gratuito). 
Um desses ex-freqüentadores atravessou a rua, passou a freqüentar o outro lado da Vergueiro, a mureta das escadas para o Santo Agostinho. Era quieto, sereno, trazia sempre um sorriso meio bobo e um brilho no olhar que me fazia imaginar que ao menos uma vez ele deve ter tropeçado no sublime. Talvez conversasse com anjos, ou os anjos com ele, não sei - ao menos em voz alta nunca presenciei nada. Ignoro se era feliz ou infeliz, mais ou menos que qualquer outro usuário do CCSP - sofrer parecia não sofrer. Mas a mera possibilidade de um dia ter conversado com anjos já é condição suficiente para apartá-lo da convivência com os normais. Porque loucos incomodam, porque loucos são perigosos. Perturbam a harmonia daqueles que pagam R$ 200 para bater papo em um concerto sinfônico, esbravejam eqüinamente atrás de volantes, gritam para ser ouvidos por um deus perverso e hipócrita, feito à semelhança do que têm de pior - mas não toleram anjos e quem com eles conversa. 
Há tempos não vejo esse ex-freqüentador do CCSP deste lado da rua. Também faz tempo que não vou ao CCSP, pode ser que voltaram a aceitar esse tipo de gente em algum canto, longe da vista dos usuários dignos do local. Ou pode ser que ele tenha cansado do relento e partido. Pode ser que a assistência social tenha convencido ele a ir para um abrigo seguir regras que ele não quer em troca de uma cama e um prato de comida. Ou pode ser que na desproteção da rua, a polícia militar ou qualquer pessoa prestativa tenha transformado o próprio em um anjo - será que ele conversa com viventes? -, para o bem-estar das pessoas de bem, esses que rezam, fingem conversar com deus, mas não toleram que se converse com anjos.

18 de agosto de 2016

domingo, 14 de agosto de 2016

Estudo sobre a meia-idade na segunda década do século XXI [Diálogos com o teatro]

Dentro de uma moldura masculina, na pela de quatro homens, Estudo sobre o masculino: primeiro movimento, residência artística de Antônio Duran, dramaturgista do Teatro da Vertigem, fala sobre a meia idade em quatro sujeitos que não seguiram o "caminho natural da vida" - que nada tem de natural, é antes um fluxo socialmente imposto e cada vez mais caduco na modernidade tardia.
Quatro atores, entre 45 e 55 anos, heterossexuais. Deveriam estar estabelecidos, casados - ou ao menos terem sido -, os filhos começando a caminhar pelas próprias pernas, e a atenção voltando novamente para si e sua vida, com a fatídica pergunta: "que fiz eu da minha vida?", ou melhor, "que deixei eu fazerem da minha vida?" - crise retratada em muitos filmes, como Beleza Americana (Sam Mendes, 1999) ou A era das trevas (traduzido como A idade da inocência no Brasil, Denys Arcand, 2007). Não é esse o caso que Estudo sobre o masculino retrata: o caminho heterodoxo dos quatro, sem terem feito nenhum comprometimento maior ao longo de suas vidas, faz com que muitas vezes surja a pergunta se não deveriam ter seguido o tal "caminho natural". Por não seguirem o fluxo, parte do drama dos quatro é não poderem fugir à responsabilidade de estar aonde estão: se não é o ponto aonde gostariam estar, é aonde conseguiram chegar com os percalços que a vida põe - não deixaram de tentar para agradar aos pais, para se adaptar a um padrão social. Pelo contrário, a história que contam é a de quem passou a vida fugir da "vida de merda" que lhes era reservada: bom salário, bom marido, bom pai, almejando ser o funcionário do mês e que seu filho consiga fugir desse paraíso feito de obrigações e privações. Em momentos nos perguntamos se conseguiram realmente fugir, ou apenas postergar.
Se comprometeram pela metade com o sistema, sem fracassarem: estão ali, de terno e gravata, a mostrar que em seu trajeto ganharam respeito - ao mesmo tempo falta a calça e a camisa, a dar prova de sua rebeldia e liberdade, ainda que limitadas. O problema de sua heterodoxia, feita de uma crítica pela metade, é que o corpo começa a demonstrar os sinais do tempo: a barriga, os cabelos brancos ou ralos, a falta de fôlego: "só ao me ver no espelho vejo que envelheço", diz um deles. Não viram o tempo passar, mas vêem a velhice se aproximar, por isso têm pressa, por isso repetem seguidamente que querem mais tempo, por isso correm. A velhice soa um fardo: numa sociedade em que "velho" é ofensa, e em que juventude é valor absoluto, não foram críticos o suficiente para fugir dessa valoração absurda e tida como natural, não souberam envelhecer, encarar os anos que se acumulam invariavelmente sobre as costas com serenidade, e na meia idade não sabem lidar com as limitações que o corpo impõe. Talvez por conseqüência de terem assumido esse valor social, nem o corpo nem os desafios que a idade impõe: em certos momentos parecem adolescentes ainda crus da vida - e que apontam seguir na mesma direção quando têm pressa, como se precisassem usar um certo "capital juventude" que têm estocado e precisa ser gasto antes que passe da validade - antes que passem à invalidez. 
Em dez anos estarei eu na meia-idade. Pelo que caminhei até aqui e para onde aponto, também eu terei seguido por um caminho heterodoxo, crítico da sociedade pela metade - o suficiente para pleitear algum sucesso. Também eu tenho pressa, também eu corro - desde já. Após assistir Estudo sobre o masculino, pus a me questionar: fujo da morte ou da velhice?


14 de agosto de 2016



Estudo sobre o masculino: Primeiro movimento from Andreia Teixeira on Vimeo.