segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Mãos ao alto: o imposto é um assalto!

Na Globo, em toda Grande Imprensa, comentaristas de economia e "especialistas" explicam que o Brasil não cresce e que um trabalhador brasileiro já ganha menos que um chinês por culpa da elevada carga tributária. Na internet, circulam correntes com dados falsos falando que o brasileiro trabalharia mais de 2 mil horas - o dobro de um boliviano - só para pagar impostos. No centro de São Paulo, a Associação Comercial tem um "impostômetro" a dizer quantos bilhões os brasileiros teriam pago até então em impostos. Curiosamente, os comerciários não têm um "sonegômetro", e é sabido que são poucas as lojas, os postos de gasolina, os prestadores de serviço que dão nota fiscal se você não pede (mas o valor do imposto está incluído no preço). Também é curioso que as listas de quanto se trabalha para pagar imposto nunca incluem Alemanha, França, Itália, China, Noruega, é sempre Mauritânia, Chade, Senegal, Vietnã, Bielorrússia, países com economia e IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) bem abaixo do Brasil - coincidência? E se imposto baixo fosse condição de crescimento de renda e emprego, Suriname (27%) e Paraguai (35%) seriam as maiores potências das Américas, e não os Estados Unidos (44%, segundo o Banco Mundial. bit.ly/vaivem11901).
Para que servem os impostos?
A função primeira dos impostos é simples: fazer o país funcionar. É dos impostos (e não da caridade dos homens ricos) que vem o dinheiro para o estado funcionar; são os impostos que pagam o salário dos políticos (dos corruptos e dos honestos), dos juízes (dos corruptos e dos honestos), dos policiais, dos professores, dos médicos, dos assistentes sociais, dos funcionários todos; é dos impostos que vem o dinheiro para construir estradas, escolas, hospitais; é dos impostos que vem a aposentadoria, o Bolsa-Família, a compra de remédios, de merenda escolar.
A segunda função é menos evidente, principalmente em países como o Brasil: os impostos servem para tornar a sociedade menos desigual, por isso quem ganha mais paga (deveria pagar) mais que quem ganha menos.
Há ainda outras funções. Por exemplo, a elevada carga tributária sobre bebidas alcoólicas e cigarros serve para tentar desestimular o consumo desses itens prejudiciais à saúde, além de ajudar a financiar a saúde pública. Nessa linha, a Organização Mundial da Saúde, da ONU, sugere a criação de impostos para alimentos industrializados pouco saudáveis (bit.ly/vaivem11902)
A carga tributária no Brasil é alta?
Na imprensa falam o tempo todo que o brasileiro paga muito imposto. Será mesmo? Realmente, não é baixa, mas se comparado com países desenvolvidos ou em situação semelhante, os impostos no Brasil estão dentro da média. Além do mais, vale lembrar que enquanto os países da Europa ocidental têm boa parte de seus problemas de infra-estrutura e bem-estar social bem encaminhados, o Brasil ainda figura no mapa da fome (obra do senhor Michel Temer e do PSDB) e carece de estradas, hospitais, postos de saúde, universidades, escolas, creches...
Quem paga os impostos?
Aqui é o grande prolema dos impostos no Brasil: ao contrário do que acontece nos EUA, na China, na Europa, no Brasil quem ganha menos paga mais impostos - proporcionalmente. Isto é, enquanto os ricos pagam pouco mais de 1/5 do que ganham por ano em impostos, classe média e os mais pobres entregam 1/3 dos seus rendimentos. Isso acontece porque a principal fonte de arrecadação é indireta, ou seja, imposto sobre consumo, e não direta, como imposto de renda, sobre herança, sobre propriedade ou sobre o lucro e dividendos de quem tem ações - inclusive, não há esse imposto no Brasil. Não por acaso, a ONU diz que o Brasil é o "paraíso tributário para os super-ricos" (bit.ly/vaivem11903), sendo que com isso o Brasil deixa de arrecadar R$ 43 bilhões por ano dos mais ricos (bit.ly/vaivem11904).
Outro problema brasileiro é onde se aplica o dinheiro dos impostos: em 2014, 45% do que foi arrecadado foi utilizado para pagar juros e amortizações da dívida, enquanto educação e saúde receberam juntas 7,71%, e a previdência social, 21,8% (bit.ly/vaivem11905). O que se gastou em um ano com juros dava para ter pago dez anos de Bolsa-Família (bit.ly/vaivem11911)!! E a tendência é aumentar esse número, com a aprovação da PEC do teto dos gastos públicos.
Para deixar claro que o problema do Brasil não é o quanto se paga de impostos, mas quem paga mais e onde esse dinheiro é aplicado, a tabela abaixo traz a comparação com alguns países.


Imposto sobre produtosImposto de Renda Pessoa FísicaImposto – empresasIDH (posição)Índice Gini - desigualdade (posição)

bit.ly/vaivem11906bit.ly/vaivem11907bit.ly/vaivem11908bit.ly/vaivem11909bit.ly/vaivem11910
Brasil19%27,5%34%0,755 (75)52,8 (13)
EUA0%40%39%0,915 (8)41,06 (63)
Alemanha19%47%30%0,916 (6)30,13 (133)
Japão8%56%31%0,891 (20)32,11 (120)
Dinamarca25%55%22%0,923 (4)29,08 (137)
Espanha21%45%25%0,876 (26)35,89 (88)
China17%45%25%0,727 (90)42,06 (60)
Índia15%35%35%0,609 (130)33,9 (104)
Mauritânia18%40%25%0,506 (156)37,48 (81)
Bolívia13%13%25%0,662 (119)48,06 (24)
Senegal18%40%30%0,466 (170)40,28 (67)


Texto para o Boletim Vai Vem e SPM Informa, do Serviço Pastoral dos Migrantes.

27 de fevereiro de 2017

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

USP, metrô e cacoetes da academia

No Fakebook um amigo pede ajuda para uma matéria que está redigindo: quer saber o porquê de não haver estação de metrô dentro da USP, do veto de Rodas a ela. Solícitos amigos pós-formados nas melhores universidades brasileiras aparecem para ajudar - apesar de não terem muita idéia do imbróglio da estação, nem muita noção de urbanismo e cidade (não faz parte do objeto específico de suas pesquisas, logo não é do seu interesse), nem muita reflexão crítica sobre si e sobre a academia brasileira.
Uma das amigas o corrige: quem teria vetado a estação fora a Suely Vilela e não o Grandino Rodas, e informa que uma urbanista professora da FAU deveria dar a ele as informações. Fui no blogue da professora, ela fica na generalidade: "Segundo informações que obtive de um técnico do metrô, foi a reitoria da USP que não permitiu a instalação de uma estação dentro do campus, alegando questões de segurança".
Outro amigo diz ajudar na contextualização, já que não sabe nada mais específico: segundo ele, na década de 90 a USP era um grande parque para populares, e que há, desde essa época, a tendência de fechamento da universidade à comunidade, com a construção do muro e outros quetais, sempre em nome da segurança.
Também eu meti o bedelho, apesar de tampouco ser entendido no assunto (por obra do acaso, acabei não assumindo meu posto de OPS na Companhia do Metropolitano de São Paulo). Ainda que seja bem provável que a USP tenha sido consultada novamente sobre a estação quando na construção da linha amarela, em 2004, eu tinha ouvido falar do veto à estação dentro do campus universitário ainda no planejamento das linhas, na década de 70. Ouvira tal história de uma professora de outra universidade. Ela se mudara não fazia muito para o Brasil e se deparara com aquele imbróglio, facilmente resolvido, pois a USP não queria populacho a empestar seu ar (os termos ficam por minha conta). Ela teria percebido logo ali qual o ethos da academia tupiniquim. Ouvi história semelhante de uma amiga metroviária (a mesma que me contou do ramal Moema da linha azul), de que a hoje chamada linha amarela terminava na estação Jockey Club por conta da recusa da USP de que houvesse uma estação no seu território - teria aprendido isso no curso de formação. Como a matéria não era minha e eu só sabia de ouvir dizer, me limitei a dar as coordenadas ao amigo: "na década de 70, no planejamento da rede, teria sido proposto e a reitoria recusado. Metroviários podem te informar".
Meu amigo agradeceu à ajuda de todos e disse que entraria em contato com a professora da FAU. Aqui começo minha crítica à falta de auto-reflexão e aos cacoetes da academia brasileira, que poderia dizer que é um projeto de poder de uma elite periférica da casta dos donos do poder.
O comentário do amigo me fez lembrar uma tirinha da Mafalda, em que um dos personagens (acho que o Miguelito) questiona para quê havia brinquedos e tudo o mais antigamente, se ele nem era nascido. A USP como um parque aberto pode ser uma memória dele, digna de registro, mas que precisa de contextualização e crítica, ainda mais por se tratar de um sociólogo com pós-doutorado. Conhecendo minimamente a história da universidade pública brasileira, a USP ter sido uma espécie de parque na década de 90 parece antes obra de lentidão burocrática para acompanhar o crescimento da cidade ao seu redor do que qualquer real abertura à população - ok, vá lá, talvez fosse alguma lufada pseudo-democratizante na esteira de 1988: abramos os canteiros ao povo, antes que comecem a querer entrar nas salas de aula. É evidente a qualquer um que não se deixe inebriar por discursos de dever-ser que se pretendem atuais, que a USP, a exemplo das demais universidade públicas brasileiras - a gestão Haddad no Ministério da Educação me parece ter sido a primeira a tentar enfrentar de verdade isso, ainda que timidamente - é fechada para pretos pobres e periféricos de seu início até hoje: basta ver a cor da pele dos seus alunos, quantos negros fazem medicina, economia, engenharia ou arquitetura (vi mais alunos negros na PUC-SP que na Unicamp). Murar a universidade soa uma tentativa de voltar aos "bons velhos tempos" em que São Paulo e aquele povo ignorante era uma mancha urbana lá longe, e a pesquisa acadêmica podia ocorrer tranquila e segura, falando sobre os problemas sociais, daquela sociedade de homens pretos e mulheres pobres que diziam existir do outro lado do rio. Desde sempre - com suas honrosas exceções, é claro -, boa parcela da esquerda acadêmica se recusa a aceitar que é parte privilegiada do sistema e está muito bem assim, com pouco interesse em mudanças estruturais - pois seriam atingidos por elas. Afinal, mudar as estruturas significa abrir mão do poder, aceitar que seus doutorados são títulos de saberes parciais, precários e muitas vezes sem maiores aplicações práticas imediatas, e que no resto são ignorantes, podendo estar aquém de muitas pessoas que só terminaram o ensino médio (falta-nos a lucidez de Fernando Pessoa). Assumir isso, dentre outras coisas, faria com que perdessem, por exemplo, seu acesso à indústria do espetáculo como "especialistas" (esse genérico termo para calar a boca dos que não são), sem contar toda a deferência que ganham dos populares, bestializados com seu linguajar pomposo.
O comentário da outra amiga que citei - a exemplo do amigo e deste escriba, cientista social (no caso, antropóloga) na faixa dos 30 anos -, é a indicação de uma professora que pouco pode ajudar: apesar de urbanista, ela não é entendida em transporte público, e isso é evidente ao consultar seu blog. Entretanto, é uma doutora professora da USP, produtora e divulgadora do saber (pouco importa sobre o que), e sua palavra merece prioridade frente a de um serviçal uniformizado, um metroviário OPE (operador de estação), de quem se exige só segundo grau (minha amiga metroviária era formada em filosofia, mas seu diploma pouco valia na escala social de valor diante do cargo que ocupava). 
Só a universidade produz saber, só quem está nela ou passou por ela tem direito a se manifestar: é um discurso-oculto comum à academia, reiterado diariamente pela mídia e seus "especialistas". Por ser útil e confortável aos acadêmicos, esse pressuposto não é questionado - ressalto: talvez não seja má-fé, só falta de hábito de refletir um pouco sobre si próprio. Lembro de quando estudava na USP-Ribeirão, e o caderno local da Folha costumava entrevistar professores meus da psicologia sobre assuntos de política partidária - pelo que vi em sala de aula, na melhor das hipóteses eles eram tão entendidos quanto eu, mas eram doutores em psicobiologia e assuntos afins, logo, especialistas aptos a falar das disputas entre PT e PSDB. Ou quantas discussões não presenciei em que um dos interlocutores solta um disfarçado 'cala a boca' para o outro, porque ele é formado em qualquer coisa por uma universidade pública e outro não tem diploma algum - pouco importa que seu diploma seja de medicina e estejam falando do trânsito (de cientistas sociais e suas viseiras, esse assunto deixo para outra crônica). Nessa apropriação da universidade da produção do saber legítimo, não sei se é recente, ou eu quem tenho notado só agora, por ter me aproximado da área, após ter feito um curso livre de iluminação cênica, mas até a produção artística tem sido abduzida pela universidade: artista bom é artista com diploma universitário (basta ver quem vai dar oficinas por aí, se não forem oficinas para periféricos, os artistas sempre ostentam um título acadêmico).
Estou curioso sobre a matéria da não-estação de Metrô na USP. Por meu amigo não ser jornalista de formação, tenho esperança de descobrir novos aspectos dessa história. Independente disso, a não-estação de Metrô dentro no campus é outra metáfora involuntária que a USP oferece para compreender a visão que ela tem de si e da sociedade que a serve: por ser não apenas uma universidade de elite, como para a elite, nada mais lógico que evitar a nódoa de um transporte de massa a estacionar em seu interior: já pensou se esse povo ignorante resolve usar a biblioteca?

21 de fevereiro de 2017



PS: já que falei de metrô, dois amigos me falaram de uma "plataforma fantasma" da linha azul (antiga norte-sul) na avenida 23 de Maio, no ramal Moema, mas não souberam me indicar a localização. Já achei a estação fantasma, a Pedroso, da nati-morta linha sul, mas a tal plataforma, nunca. Se alguém souber onde fica, me mostra!