quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Assassinatos de natal - os das pessoas de bem e os dos criminosos

Em confraternização de natal, dia 23, o dono de uma revenda Mercedes-Benz, Matteo Petriccione Júnior, depois de agredir a tia, assassinou o irmão com três tiros. A notícia me trouxe a memória o evento de um ano antes, quando os primos Ricardo Nascimento Martins e Alípio Rogério Belo dos Santos - dois cristãos, como fica evidente nos crucifixos e nas camisetas com Jesus que ostentavam - assassinaram a socos e pontapés, na noite de natal, o ambulante Luiz Carlos Ruas, quando ele tentou proteger uma travesti da agressão. Três dias depois, quando o primeiro assassino foi pego, disse às câmeras de tevê (as mesmas emissoras que pagam e dão voz a personalidades públicas que, ainda que veladamente, defendem o assassinato de transexuais) que não era "uma má pessoa", era antes um "cidadão de bem", como a pessoa que assassinara (nenhuma referência a Raíssa, a transexual que tentara matar antes, que pela sua condição de semi-humana sequer merece nome na grande imprensa); atrás de um cordão de isolamento da polícia, uma malta de pessoas - cristãs a maioria, se não todas -, poucos dias depois de falar de amor ao próximo e paz, no exemplo de Cristo, brandiam, adestradas e estimuladas por essa mesma mídia, palavras de ódio e pedidos de justiçamento (que tal a crucificação dos assassinos?) [http://bit.ly/2Cxc07p].
Os primos Ricardo e Alípio eram dois Joões Ninguém; o primeiro, auxiliar de pedreiro, o segundo, segurança particular (ah, como nós, classe média, estamos bem protegidos!). Precisaram declarar por sua conta e risco que eram "pessoas de bem", trabalhadores, para descrença da mídia e da polícia - "trabalha e está na favela?", deve ter pensado algum cidadão de bem ao ver o noticiário. Seu principal crime foi terem matado a pessoa errada, ou melhor, terem matado alguém considerado pessoa pelas "pessoas de bem": tivesse Raíssa sido a vítima, e o máximo que haveria seria alguma movimentação nas redes sociais da comunidade trans e simpatizantes, uma notícia no Ponte Jornalismo, e uma nota de rodapé em algum site da grande imprensa, como nos casos de Laura Vermont [http://bit.ly/2CtGyoa] ou Verônica Bolina [http://bit.ly/2zTQTqG], agredidas pela própria polícia, ou sob a tutela dela, que se mostrou tão solícita diante das câmeras no caso do ambulante.
Matteo é um caso diferente. Começa que ele tem um atenuante: matou o irmão. É curioso, mas aqui no Brasil (não sei como é em outros lugares) agressões dentro da família são vistas como assuntos privados, em que pessoas de fora não devem se envolver nem ser envolvidas - se não tivesse a arma e tudo não fosse além de uma "lesão corporal grave", como disse o policial, é possível que sequer houvesse boletim de ocorrência do caso. Além desse atenuante, mais atenuante ainda é o fato do assassino ter nome e sobrenome italiano, ter (muito) dinheiro e por isso pode se afirmar um trabalhador - ainda que possa efetivamente não trabalhar. Na verdade, ele não precisa fazer isso, a polícia já o faz. Ela sabe disso e trata o caso com a atenção devida: não cabe tanto o que diz a lei, mas como se veste o criminoso, em que carro anda, quanto possui na conta bancária. Conforme reportagem de um jornalecão local, a polícia (sem identificação de qual policial) lamentou o criminoso [http://bit.ly/2lNB00E]:
"É legal quando você fala da prisão de ladrão, mas um caso assim a gente fica triste, por ser uma grande tragédia. Pessoas de bem, trabalhadoras, e numa fração de segundos ocorre a desgraça. É até triste para nós, mas é um trabalho que precisa ser feito."
Matteo Petriccione Júnior matou o irmão por motivo fútil, mas segue uma "pessoa de bem", nunca um criminoso (bandido, nunca!), segundo a própria polícia, que trata o caso com tristeza. Quando um ano atrás falava dos primos pé-rapados, trabalhadores também, falava com sangue nos olhos, "não vamos descansar", e nenhum momento cogitaram dizer que eram "pessoas de bem", e que a culpa era do álcool, como no caso do assassino rico.
Mais que isso, a polícia deixa claro que trata com alegria o crime quando cometido por pobres - afinal, sua função é controlar e confinar a (maior) parte da população, rejeitada no baile dos bacanas -, e que hesita quando um crime grave é cometido por um dos bacanas - afinal, pessoas erram, vide Thor Batista, que nunca quis fazer mal a ninguém, mas sem querer matou; que cidadão de bem não tem o direito de matar um fulano qualquer uma vez na vida? Não que isso não seja do conhecimento geral, a novidade é como a polícia (ao menos a paulista) tem tido cada vez menos desfaçatez em se afirmar como um corpo de segurança dos ricos contra os pobres, neste caso como na entrevista do comandante da Rota, que afirmou que morador dos Jardins merece tratamento especial, no mínimo dentro da lei, enquanto morador de Capão, merece nada, na melhor das hipóteses [http://bit.ly/2E27o6x]. Talvez esse descaramento seja fruto da autorização e legitimação do governador do Estado de assassinatos extra-judiciais por seus subordinados ("quem não reagiu está vivo").
E nestes tempos de Estado de exceção e ditadura disfarçada, o judiciário assume também ativa e ostensivamente o papel que antes era dos capitães do mato e da polícia, expulsando do baile dos bacanas os que não são bacanas puro sangue. A lei? Ora, a lei primeira nestes Tristes Trópicos é cada vez mais, a exemplo do que foi por quatrocentos anos, de quem você é filho, quanto de bens você possui. A partir disso é que se julga, quando não se inventa ou se oculta o crime.

03 de janeiro de 2018

PS: cabe notar a diferença de abordagem nas fotos da Folha aos dois crimes. No cometido pelos pobretões, seus rostos são expostos, nenhum respeito. Na do riquinho, a fachada da loja do pai, onde mal se consegue ler o nome da loja. Mas a imprensa é imparcial e equitativa e não estimula ódio e coisas do tipo.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

O gado que aplaude o chicote

Durante a ditadura civil-militar adotou-se a cenoura ideológica do "Brasil, país do futuro". Para o grosso da população, o Brasil vivia do futuro (e não para o futuro): o interregno ditatorial logo daria lugar a uma democracia das pessoas de bem, o bolo cresceria para logo ser dividido (Delfim Netto afirma nunca ter dito isso, o que parece ser verdade: ao que tudo indica, nunca passou pela sua cabeça a necessidade de dividir o bolo com a rafuagem, vide suas defesas das ações do governo golpista atual), em breve o Brasil se tornaria uma potência mundial; um amanhã radiante, para compensar o hoje funesto e mórbido ou, como (não) cantava Raul Seixas em "Como vovó já dizia" (censurada): "Quem não tem presente se conforma com o futuro.
Com a produção da memória (e do esquecimento) nas mãos do status quo (do espetáculo, diria Debord), foi preciso apenas uma geração para que a ditadura civil-militar não fosse mais que uma historieta distante, sem maiores implicações na vida, e o campo estivesse pronto para a semeadura de uma nova ditadura (desta feita, ao que tudo indica, encabeçada por juízes e procuradores, não mais por militares), a avançar brandamente como um zepelim sob o céu azul (seria Lula nossa Geni?).
Novamente tolhidos do presente, nos conformamos com o futuro. Contudo, ao contrário de 1970, a solidariedade social foi dinamitada por um individualismo cego e suicida, e o futuro que se sonha a partir dos escombros que habitamos é um futuro individual - a coletividade pode servir de alicerce para a "vitória" do indivíduo, não pode crescer junto (como atestam o ódio ao PT e aos programas sociais de minoração da miséria e aos de capacitação precária da mão-de-obra). 
Durante o almoço, ao meu lado, dois advogados conversam, ambos na faixa dos trinta anos. O rapaz conta do seu crescimento e do seu mais novo contrato. Não diz explicitamente, mas fica evidente que se considera um predestinado dos grandes fornecedores. Conta primeiro que conseguiu abrir seu escritório graças a uma indenização ganha contra o Carrefour, por ter incluído seu nome no CPC/Serasa após ter quitado sua dívida. Admito que não sou entendedor dessas questões, se a decisão de mandar o inadimplente (ou suposto) para a lista suja é automatizado ou depende uma pessoa, porém me chamou a atenção que seu nome ficou sujo por duas pendências: uma de cinqüenta e outra de trinta centavos. Graças a essa cobrança de oitenta centavos, o Carrefour teve que pagar três mil reais (na época, que não sei quando foi). Parece um erro grotesco de programação, ao mesmo tempo soa bastante plausível como ação deliberada de um funcionário insatisfeito com a empresa.
A mais recente proeza do rapaz é um contrato recém assinado, para ser advogado das Casas Bahia. "Na verdade - ele se corrige -, não foi a Casas Bahia quem me contratou; sou terceirizado". Tenho a clara impressão de que falou com orgulho que era um trabalhador precário - talvez fosse orgulho por estar trabalhando para uma grande rede. Ele prossegue e conta, admirado, do escritório que o contratou: "mudaram pra Alameda Santos. Ficaram com uma estrutura super enxuta. São os dois sócios, mais dois advogados e uma estagiária", mas tem cento e cinqüenta advogados trabalhando para eles. "Estão certos: não tem que ficar administrando pessoal, gastando com férias, décimo terceiro, essas coisas". Sua interlocutora concorda entusiasmada, cita um caso de um escritório que está seguindo "a nova tendência do mercado".
Reparo nos dois. O homem é negro, a mulher, branca. Não tem a menor pinta de que estudaram na USP, ou mesmo na PUC. Provavelmente conseguiram seus anéis de bacharéis graças ao Prouni do Lula. São peões sonhando ser patrões. E em nome do que acreditam que um dia virão a ser, batem palmas à própria exploração, comemoram a perda dos seus direitos, planejam fazer o mesmo e um pouco mais quando estiverem do outro lado do balcão, quando de gado se tornarem quem dá o preço no leilão. Se se tornarem. 
Se... 
A cenoura ideológica atual diz que é só você querer, que amanhã assim será, basta um pouco de esforço e abnegação. Propositalmente não diz que esse paraíso terrestre tem vagas limitadas e fila preferencial - e certamente os dois deslumbrados ao meu lado, um deles que acha que tirou a sorte por ter conseguido três mil reais de indenização, estão longe de entrar nessa fila, se não tiverem sorte ou um jeitinho heterodoxo de resolver a vida. Negar a própria realidade em favor do que ingenuamente acreditam que um dia se tornarão: negar que são oprimidos, embalados no sonho de logo se tornarem opressores. Paulo Freire, desenterrado pela extrema-direita (e terraplanistas em geral) como educador-ideólogo a serviço do PT, esquecido de fato pela esquerda, se mostra atual, como nunca deixou de ser. 
Nosso trabalho de base se mostrou falho - e não só por comodismo com o PT no poder federal e adequação ao seu discurso despolitizante. Parte da esquerda - a com maior capital simbólico e cultural - nunca quis sujar os pés, sair de suas cômodas salas de aula da academia e tentar dialogar com a massa da população - dialogar e não civilizar, ensinar, conduzir: entrar em contato e ouvir medos e aspirações daqueles que tratamos por objeto (de estudo, mas não por isso menos objeto). Nosso diálogo é entre pares, em revistas que contam pontos que rendem uns trocados a mais, não com o diferente, com quem não teve a oportunidade de estudar em universidade de ponta. Daí que a universidade pública pode ser atacada de toda forma e poucos se indignam. Ou que a nova direita tenha encontrado solo fértil para impôr sua forma de encarar o mundo - fake news, ódio e gregarismo proto-fascista. Daí o discurso consolidado que condena os vagabundos (pobres) e louva o "vagabundo ostentação". Por isso não surpreende o gado que louva o chicote, e que a reforma trabalhista tenha sido aprovada sem maiores resistências. 
Sou otimista, e creio que há possibilidades de reverter esse quadro, até mesmo no curto prazo: apesar de todos seus títulos, os doutores golpistas são grosseiros e petulantes o suficiente para deixar pronta uma contra-narrativa que escancara a realidade sem a cenoura ideológica (diante de Moro, Mendes e caterva, até os linha-dura de 64 seriam "da Sorbone"). A questão é a esquerda e as forças progressistas saberem se aproveitar do momento para desvelar as mentiras, sem querer pôr uma verdade no lugar - deixar a cada um e cada uma descobrir sua verdade por suas próprias pernas. Sair da internet e das universidade e ir para a rua é parte fundamental nesse processo.

13 de dezembro de 2017