quinta-feira, 29 de março de 2018

Só sobreviverá quem não reagir? Alckmin e os próximos passos do golpe

Ouso dizer que Alckmin é um dos principais personagens a ser observado para entender os caminhos que o golpe desenha para o futuro - para além dos que estão na ribalta. Sua declaração inicial sobre o atentado ao ex-presidente Lula, durante a caravana no Paraná, não parece ter sido um mero "escorregão", como classificaram alguns jornalistas. Teria sido se as eleições de 2018 fossem correr em condições normais - livres com tentativas de golpes brancos. Não é o caso. Por isso a fala de Alckmin pode sinalizar um cálculo político além do eleitoral.
Alckmin, é evidente, é o nome do establishment - econômico, midiático, judiciário-policial, político. Reparem que falo "nome" e não "candidato": ainda que tecnicamente lhe caiba a condição de candidato, de alguém que almeja um cargo, falar em candidatura daria a falsa impressão de normalidade democrática, com eleições livres e disputa aberta entre concorrentes. Ele é o nome porque já foi escolhido para assumir o Planalto em 2019, falta apenas achar um jeito de dar um verniz legal a essa escolha das elites.
Em novembro de 2017, quando Alckmin mostrou tirou do páreo Dória Jr, ficou clara a estratégia para dar legitimidade ao escolhido pelos donos dos poderes, ao emergir como o moderado, diante dos extremistas Bolsonaro e Lula (?!). Houve até aproximação desse político santo com a esquerda (?!) do seu partido - sinal a ser interpretado como altamente positivo, mesmo sendo evidente toda sua hipocrisia: nestes tempos em que o fascismo avança e esquerda se torna não apenas palavrão como condição suficiente para violência "legítima" contra o outro, fazer o papel de político aberto a dialogar e ouvir todos os lados é um exemplo de avanço civilizatório.
Mas, ao que tudo indica, esse avanço civilizatório é dispensável para os rumos que se pretende impôr ao país, e Alckmin pôde dar vazão a uma persona mais autêntica, ao dizer os tiros de ruralistas-fascistas contra a caravana de Lula eram a colheita daquilo que o líder popular plantara. Alguém que não tem apreço pela vida de uma pessoa não precisa de esforço para não ter apreço pela vida de mais outra. Alckmin, redundante dizer, nunca demonstrou maior respeito pela democracia (fora dos pleitos) e pelos direitos humanos, ao legitimar assassinatos extra-judiciais, por parte de seus subordinados, de pessoas inocentes (lembrem-se que num Estado de Direito, até que se prove a culpa, a pessoa é inocente), desde que fossem pretos pobres periféricos. Dizer que Lula colhera o que plantou foi apenas uma nova apresentação para seu "quem não reagiu está vivo", ensaiado dois dias antes pela "jornalista" Eliana Cantanhede, quando esta expressou sua preocupação com a caravana estar reagindo aos ataques sofridos - ataques legítimos, pelo que ficava claro no não-dito da frase. Sobrou por parte de outros políticos, expressar o pathos democrático surgido do golpe desde Curitiba: quem provoca pode apanhar e levar tiro - e por provocação pode-se entender querer fazer uso do direito constitucional de ir e vir por vias públicas de acordo com as leis de trânsito.
Contudo, não creio ser apenas o desabrochar da crisálida tucana, há ali cálculo político. A ida e vinda, de se desdizer no dia seguinte, não deixa de ser majoritariamente positiva para o bom moço da Opus Dei. Dois cenários justificariam a frase de Alckmin - e seu recuo.
O primeiro, mais positivo, vamos dizer assim, o governador paulista faz um cálculo visando as eleições previstas de outubro: sem Lula no páreo e ainda sem força para encostar em Bolsonaro (supondo que este também não será impedido de concorrer, possibilidade factível para dar verniz de imparcialidade ao judiciário), sua frase mostra o abandono do corte de político de centro para um mais à direita, imaginando que a disputa seria com Bolsonaro - se não pela vitória, por uma vaga no segundo turno. Seu recuo posterior pode ser reinterpretado na temporada eleitoral como um ceder ao "patrulhamento ideológico" das esquerdas - num segundo turno contra um nome progressista. Ou pode ser usado - se for para buscar votos na esquerda - como um mero lapso, e melhor votar nele que em Bolsonaro.
O outro cálculo que o governador pode estar fazendo seria o de agradar não o eleitorado geral, mas de um possível colégio eleitoral. É certo que não há nada na lei que fale em eleições indiretas para presidente, entretanto tampouco há o crime de não possuir um imóvel, e isso não impediu a condenação de Lula por não ter adquirido um imóvel que um juiz e uma emissora de tevê queriam que fosse dele.
A frase de Alckmin tanto contribui para a construção da narrativa da prisão de Lula - necessária até para a segurança do ex-presidente -, como o gabarita para uma eleição via congresso ou senado - que se não for o atual, será tão ou mais conservador, ao que tudo indica -, e o legitima perante as forças repressivas que detém o poder de fato no país (judiciário, polícia, militares). Em suma e em conclusão: o "quem não reagiu está vivo" deve ser a palavra de ordem dos golpistas, com o ponto que quem define o que é reação são os reacionários - como reportagem sobre a caravana de Lula no Rio Grande do Sul, quem foi armado intimidar partidários do ex-presidente foram policiais da brigada militar [http://bit.ly/2Ijhxha], se um destes tivesse reagido, teria pedido... como pediu a democracia, ao reagir contra o 1% dando voz à população, reagiu: foi alvejada, e agora luta para não morrer. Bem feito.

29 de março de 2018




terça-feira, 20 de março de 2018

Escuta "policial" e reação estereotipada - um exemplo prático

Eu havia terminado meu texto anterior, "O que conseguimos escutar?", fechara o LibreOffice para deixar o texto decantar um pouco (João Cabral de Melo Neto dizia que para um poema deixava meses ele na gaveta, antes de retomá-lo; como escrevo crônicas, se muito deixo um dia, salvo quando esqueço), e ao entrar no Fakebook me deparo com uma postagem do professor Gilberto Maringoni muito próxima do que havia dito, apenas em tom altamente polemista. A começar que ao invés de pegar um tema secundário - greve dos Correios -, Maringoni foi usar justo o tema candente da semana - a execução da ativista e política Marielle Franco, do PSOL. A balbúrdia foi tanta que ele preferiu apagar seu comentário - por conta disso, não o reproduzo aqui, mas comento assim mesmo.
Na sua provocação, Maringoni leva ao paroxismo as reivindicações de primazia do discurso identitário, vinculando diversos assassinatos políticos da ditadura civil-militar de 64 e da democracia não à oposição ao regime ou aos interesses econômicos poderosos, mas pela questão de identidade - por ser negro, mulher, nordestino, mulher. Por fim, diz que não sabe porque outros haviam sido mortos, se eram do grupo opressor per se - homens, brancos, heterossexuais. 
As reações, desnecessário dizer, foram imediatas e majoritariamente raivosas - poucos questionavam o porquê daquela provocação ou se aquele seria um bom momento, além dos que apoiaram. E pode ser mesmo que o momento para tal provocação tenha sido infeliz, como de algum modo admitiu depois Maringoni: o ar sócio-político atual está mais que carregado, está envenenando - pelo Lula dirão os globoletes e seguidores patos, pelo fascismo estimulado por Globo e pato, dirão os minimamente informados -, com ânimos à flor da pele, o que ressalta ações reflexas ao invés de reflexivas. 
Ao começar a ler a postagem, eu mesmo achei muito estranha, estaria ele querendo dizer realmente aquilo? Ao fim, ficava evidente que não. Quer dizer, evidente após um pouco de reflexão - mas a internet é terra da reação imediata, e isso não orna com reflexão. Maringoni é do PSOL, não é um ex-comunista convertido (como Palocci, Jungman, Freire), não é do PSDB, MBL ou mesmo um obscuro dono de casa desempregado que entre um curso de iluminação e um de marcenaria, enquanto espera ser chamado em concurso, escreve crônicas eventualmente republicadas no Nassif On Line. Uma postagem como aquela com certeza teria algo por trás: ou ele sofrera uma pancada na cabeça, ou tivera a senha roubada, ou dizia muito além do que estava escrito. A postagem vinha sem maiores trabalhos argumentativos, o que já apontava o tom provocativo - pro vocar aquilo que está naturalizado. Análise de contexto, de trajetória do autor, de jogos de linguagem? Boa parte das reações foram como se se tratasse de Reinaldo Azevedo; e as respostas dadas pareciam ser robôs repetindo frases feitas, com pequenas variações: racista, machista, misógino. Isso apesar de não haver tom depreciativo às mulheres ou negros, ele apenas explicitava o que subjaz em certos discursos do ativismo identitário, que faz da trajetória formativa - sem dúvida importantíssima, vital no trajeto de militantes -, causa e consequência, início meio e fim de toda ação e reivindicação política, negando o contexto mais amplo em que se inserem, ou seja, negando o Estado de exceção (declarado ou por omissão) a serviço dominação capitalista, garantidor dos privilégios das elites predatórias do país. Marielle Franco não foi morta em emboscada por ser mulher negra periférica: negros, mulheres, periféricos, homossexuais e outras minorias são mortos aos borbotões todos os dias, sem maior alarde e sem maiores consequências que estatísticas. Marielle, mulher negra e periférica, foi morta por ser ativista contra um sistema no qual se insere o assassinato em série de negros, mulheres, periféricos, etc - teria sido morta mesmo se fosse homem branco.
Talvez realmente o momento de tal provocação tenha sido inoportuno; contudo a reação apenas evidencia aquilo que venho desde muito alertando: a escuta policial para quem está do lado, em busca do infiltrado ou de quem rompe com a pretensa pureza e perfeita harmonia (do movimento ou da sociedade); a negação do pensamento, da reflexão e da crítica; a divisão do mundo entre os do bem e os do mal (ou os do lado certo da história e os do lado errado da história), sem nuances, sem contexto, sem história; a separação bem delimitada e em clara verve de guerra entre aliados e inimigos (que não merecem a condição de humanos, ou seja, não merecem direitos, entre eles o de expressão), não é privilégio de fascistas ou dos que se deixam encantar pelo seu discurso simplista. As esquerdas e as forças progressistas e democráticas precisam urgentemente reagir e desbaratar essa forma de pensar, ou logo nossa escolha será entre mandar aqueles que escolhemos taxar como "bandidos" para o paredão ou para a câmara de gás.

20 de março de 2018.


PS: não que o combo 60 mil assassinatos/ano+polícia MILITAR+narcoestado+prisões brasileiras não possa ser considerado uma terceira via entre o paredão e a câmara de gás, ainda que em doses homeopáticas (não para quem sofre diretamente com toda essa violência, é certo) e sem enunciar claramente do que se trata.