domingo, 15 de julho de 2018

A construção (e naturalização) da anti-cidade

Pelo (pouco) que conheço de Paulo Mendes Rocha, deve ter sido de caso pensado que a frente do Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo, seja apta para que personae non gratae do estabelecimento - mas assíduos viventes do entorno - pudessem se sentar. A primeira vez que me dei conta disso, o espaço era ocupado por humilhados do parque com os seus jornais - pedintes, moradores de rua - e imigrantes negros. Hoje, ao passar em frente, os imigrantes seguem ocupando parte do espaço, porém dividem-no agora com pessoas aparentemente inseridas na ordem produtiva, que ali descansam enquanto observam o movimento da rua Dom José de Barros - talvez seja por conta do horário que eu tenha passado. Com a prefeitura tendo retirado os bancos da quadra de baixo - além de toda a lógica (urbanística e ideológica) que marca as praças de São Paulo -, esse pequeno espaço se tornou um dos raros pontos de estar e não de circulação - de pessoa ou de dinheiro: pode-se sentar ali despreocupadamente, sem ser obrigado a consumir ou seguir para algum lugar. A ver quanto tempo o Sesc resiste antes de "enfeitar" o vão sob sua marquise com estacas ou grades, como sói acontecer na cidade, com exemplo da própria prefeitura (não nos esqueçamos das rampas anti-pobres do PSDB de Serra).
Por enquanto, quem dá o exemplo da "cidade linda" almejada pela nossa elite é o Metrô. Em comunhão com a prefeitura e o CCSP, o Metrô entrou na luta para limpar a região da Vergueiro de não-pessoas - esses homo sapiens que não tomam banho todo dia e não consomem o suficiente para terem direito à cidadania. O CCSP, ainda durante a gestão Haddad - dando continuidade ao que havia começado com Kassab -, limpara os seus espaços internos e corredores de quem está lá para usar o centro cultural sem promessas de consumo - mesmo que alhures. Acompanhei de perto o processo de limpeza social, do um real para assistir a um filme, passando pela exigência de RG para entrar na biblioteca, ao cerco da assistência social a todo morador de rua que se utilizava do local (para funções designadas, nada subversivo, nem mesmo desrespeitosa com outros usuários) - até fazer com que fossem para longe, ou trocassem de calçada, ao menos -, assim como os seguranças perseguiam negros desprovidos de crachá funcional (é certo que nada comparável aos atos de manutenção da "higiene e harmonia social" que presenciei próximo ao Colégio Bandeirantes, cinco quadras distante).
Ao lado da estação Vergueiro, entre o elevador e a construção privada mais próxima há uma mureta. Espaço para passagem de ninguém, costumava ser ocupado por alguns desses pobres expulsos do CCSP, além de grupos de amigos, pessoas sem nada para fazer e casais paquerando. Talvez por conta do perigo para a ordem pública que seja pessoas paradas em local (iluminado e visível) onde não se vai a lugar nenhum - ainda mais mendigos, sem poderem ser enxotados -, mal exemplo para as crianças pessoas se beijando (inclusive pessoas do mesmo sexo, olha a pouca vergonha!), o Metrô tratou de isolar o local. A questão é que um raro ponto público para se permanecer foi desativado, como um aviso: "este local é de passagem, esta cidade se presta unicamente à circulação e ao consumo. Quer ficar de boa? Fique em casa, consumindo programação televisiva".
A estação São Bento segue lógica semelhante, talvez menos explícita, porque "justificada" - conforme fomos adestrados a aceitar esse tipo de argumento como justificativa válida. Parte da estação vai se tornar um centro de compras, logo, "logicamente", precisa ser cercado - até para explicitar que ali agora é um local privado, aberto ao público por um ato de vontade do dono, não por direito dos cidadãos. Grades já foram fixadas nas entradas da estação. O quê mais perverso nesse processo do largo São Bento-transformado em metrô-transformado em shopping privado é o slogan da propaganda do futuro centro comercial: "um oásis no centro de São Paulo". Nada mais óbvio que a publicidade valorizar aquele que lhe paga para falar bem, e o faça muitas vezes depreciando concorrentes. O slogan do shopping do metrô São Bento, contudo, não apenas se diz melhor que a "concorrência": ele diz que o entorno, mais que desinteressante e pobre, é estéril, praticamente morto - mortal. E a tal concorrência a que ele se opõe não são outras lojas, é uma cidade, a cidade que abriga esse "oásis", garante seu funcionamento - e tolera ser desqualificado dessa maneira (imagino se a prefeitura passasse a fazer publicidade em termos parecidos, chamado shoppings de pulgueiros existenciais em favor dos parques e praças, isso nos próprios shoppings). Porque oásis, convém lembrar, não surge em meio à mata tropical, e sim em meio ao deserto, onde poucos seres vivos estão aptos a sobreviver - e o ser humano se encontra em situação extremamente vulnerável. 
Pode-se argumentar que se trata de força de expressão, o que estou totalmente de acordo: expressa uma concepção de cidade, preconceituosa e desqualificadora - e até um pouco desatualizada. Quem circula pelo centro sem preconceitos (e sem dar vacilo, é preciso admitir) sabe que São Paulo se parece com tudo menos um deserto: é rica arquitetonicamente (ainda que seja triste só haver construções recentes), é rica a "fauna" de tipos humanos, dos engravatados aos mendigos, é rica de situações banais a situações excêntricas, quase surreais - em compensação, é mais que conhecida a normopatia anódina que rege espaços privados de uso público como shoppings e Sescs, o que me faz perguntar se a propaganda não tenta justamente ocultar que se trata do exato contrário: o tal Pátio São Bento é, na verdade, um deserto em meio a uma abundante floresta tropical (de concreto e aço) que é o centro de São Paulo (nada diferente de golpistas que diziam, desde 2003, que o PT preparava um golpe). Em tempo: ainda que eu creia que um uso mais diversificado seria mais interessante - com comércio, área cultural (como salas de ensaio para teatro e dança), centros de referência a minorias ou migrantes, etc -, um uso comercial de todo aquele espaço da estação São Bento me parece muito melhor que o não-uso que dele era feito até pouco tempo atrás. O que questiono é cercar esse espaço público e ainda explicitar tal oposição com o entorno.
Cito esses exemplos - e o contraexemplo surpreendente do Sesc 24 de maio - da construção da anti-cidade, da cidade hypster, por serem mais facilmente visíveis - ainda que já estejam naturalizados. É possível a construção da anti-cidade de modo mais insidioso: a cidade hypster é essa cidade da pura positividade classe-média-alta que ofusca pelo brilho toda a sujeira que ela joga para debaixo do tapete - ou para as periferias. É a anti-cidade cuja assepsia social se faz (quase) sem grades e sem slogans toscos - basicamente com a força da grana e, vez ou outra, da polícia. 
É o processo que visualizo na Boca do Lixo, no centro de São Paulo, com seus novos barzinhos ajeitados se sobrepondo aos velhos botecos de gays de poucas posses e imigrantes que tentam a vida em SP, baladas descoladas fechando velhos puteiros, e novos edifícios para quem tem dinheiro - sem nenhuma contrapartida para quem trabalha nos serviços desvalorizados e não tem condições para pagar alugueis abusivos que filhinhos e filhinhas de papai podem. Crackeiros já foram expulsos da região, michês e travestis que faziam ponto por ali minguam - provavelmente porque os cliente se sentem intimidados diante dos conhecidos que agora frequentam o local, não porque essas pessoas encontraram empregos melhores. O ideal da anti-cidade hypster é Vila Madalena, Pinheiros, onde não fossem os porteiros, manobristas e pedreiros, poderia jurar que é Oslo, ou a novela da Globo: só gente branca com boas posses fazendo pose. Uma cidade que busca se ver limpa de diferenças sociais e raciais - não pelo fim das desigualdades, mas pela ocultação e exclusão dos diferentes não aceitos. 
A aceitação da anti-cidade hypster é um processo longo e permanentemente inculcado, via mídia e educação, segue à mesma lógica que nos anos 1980, 1990 e 2000 dizia que o centro da cidade era perigoso, porque habitado por pretos, pobres, putas, gays, drogados e gente "dessa raça", e chique era morar num condomínio fechado e passear nos fins de semana no shopping (porque a semana deve ser devotada ao trabalho em glória do deus dinheiro). Diante do fracasso desse tipo de vida - estreita, pobre e vazia -, volta-se para o centro da cidade - desde que ele seja limpo dos elementos perturbadores da harmonia social-racial, ou seja, desde que dada as condições para uma vida estreita, pobre e vazia, como a dos condomínios e shoppings. É exatamente a mesma lógica, que se não cativa exatamente os mesmos patos, cativa seus filhos, propondo basicamente a mesma solução. É a lógica da valorização do capital e exclusão dos sem-dinheiro-portanto-sem-direitos. Tão naturalizado que nós sequer vemos - quando não louvamos a "revitalização" do centro "degradado". E a anti-cidade vai se construindo com nossos aplausos, para usufruto apenas de alguns.


Reparem em como prejudicaria toda a cidade ter cinco ou seis seres humanos sentados nessa mureta recuada

15 de julho de 2018.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Poesia alucinada para uma guerra civil (mal) disfarçada [diálogos com o teatro]

Se eu tivesse que resumir Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã em uma palavra, talvez fosse "fracasso". Ao salientar o fato de que dramaturgo, atores, equipe técnica serem negros, tratando de um tema negro, Buraquinhos deixa claro nosso fracasso enquanto sociedade: somos um enorme  fazendão, uma gigantesca sesmaria, onde casa-grande e sensala seguem firmes, fortes e hipocritamente disfarçados, repaginados de "o agro é pop", um pop onde negros seguem descartáveis e a meritocracia contempla sempre os mesmos, sempre brancos - de novidade um pouco mais democrática, o veneno na comida de quase todos. Quem sabe o dia em que haja realmente igualdade de oportunidades, descartável seja uma peça como Buraquinhos, e dramaturgos negros - assim como trans ou mulheres ou que minoria for - sejam apenas dramaturgos e dramaturgas, e o foco esteja inteiramente no seu texto, no seu trabalho, com sua questão identitária sendo um detalhe que perpassa o texto e não que o marca para fora do palco. Ressalto isso porque me pareceu importante o reforço nessa negritude nos agradecimentos ao fim da peça, ainda mais diante da qualidade do texto e da montagem: o texto de Jhonny Salaberg (que também atua) não entrou ali por cota, mas ser o primeiro negro contemplado em doze peças dos quatro anos de edital do Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos, do CCSP (no qual este escriba ficou como primeiro suplente em 2017, com Linha de produção), mostra o quanto de talentos negros e periféricos são descartados pela nossa meritocracia - pela minha experiência, me recuso a acreditar que Jhonny seja um talento fora do comum na periferia, incomum foi ter conseguido sair de lá.
Buraquinhos tem um enredo simples: uma criança negra que vai comprar pão em uma padaria em Guaianases, periferia de São Paulo, no primeiro dia do ano, e é abordada pela polícia militar - essa que tinha autorização de Alckmin para matar quem reagisse (e a ideia de reação é bem elástico nesse caso, respirar pode ser encarado como reação à abordagem da polícia). Nada de novo no front - de comprar pão e do que acontece no caminho. Se se trata de um drama típico da periferia, reverbera como drama humano em todos que resistem ao canto da sereia fascista, como atestam, próximo ao fim da peça, narizes fungando de negros, brancos, amarelos da plateia.
Buraquinhos poderia ir por um caminho fácil, pregar para convertidos, mas opta por uma trilha mais desafiadora e, apesar da temática, não se apresenta como uma peça de denúncia: afinal, o que há de novo para denunciar? Apesar de escrita em 2017, poderia ser a denúncia do assassinato de Marcus Vinicius pelo estado, no Rio de Janeiro. Eles não viram que eu estava com uniforme da escola? Eles não viram que eu tinha doze anos e só fui comprar pão? Daqui dois dias ou dois meses poderia ser a denúncia de outra criança assassinada pelos Estado - ou de jovens, ou de adultos, ou de velhos, sempre pretos pobres periféricos. Salaberg poderia enfileirar nomes e com breves dramaturgias denunciar a situação em que foram assassinadas pelo Estado, numa estratégia que parece antes dessensibilizar as pessoas que mobilizá-las ao agir - ou mesmo ao reflexionar. É, curiosamente, a mesma estratégia do futuro senador Datena e seus seguidores: apresentar tudo explícito, ao ponto de nada mais chocar, e anestesiar para a barbárie, para o sentir, tanto as pessoas que ainda se comovem com o Auschwitz a céu aberto que o Brasil tenta imitar sob a locução de Datena, Galvão Bueno, Bonner e afins - porque não podem se abater com toda atrocidade diária, de hora em hora, de cada 23 minutos, por uma questão de sobrevivência -, como as que não se comovem, porque não conseguem enxergar no outro um igual a si, uma pessoa, por ser negro, periférico, homossexual, transexual, imigrante, nordestino, crackeiro, estigmatizado qualquer (talvez porque essas próprias pessoas abdicaram de se reivindicarem humanas, brutalizadas por cobranças e resultados, no trabalho, na vida social, na vida pessoal, na vida íntima). Enfileirar mais do mesmo, apelar para escatologias (como certos dramaturgos brancos de classe alta que receberam para escrever sobre racismo), poderia servir para o autor se sentir mais leve, convencer as paredes do quarto que está mudando a realidade do país e dormir tranquilo, mas muito pouco serviria para tentar fazer as pessoas enxergarem aquilo que diariamente passa por seus olhos, se darem conta do que realmente significa. É uma criança, foi comprar pão, não voltou para casa porque a polícia a assassinou. Eram cinco jovens, iam a uma balada, foram parados por 111 tiros - o mesmo número de assassinatos na chacina estatal do Carandiru, 111 pessoas mortas covardemente.
Sua tentativa é, sem negar a razão, sensibilizar também pela emoção - pode até ter um efeito catártico, mas quebra com o discurso racional-acadêmico que põe tudo à distância e explica com a pretensa certeza de uma análise de texto de vestibular; ou com a escatologia que gera emoção pela emoção, e ao fim do espetáculo nem lembramos do que tratava, só que deu um aperto no estômago em algum momento e... por falar em aperto no estômago, que tal uma pizza? 
E não parece mesmo fazer sentido se centrar no discurso estritamente racional diante de toda a irracionalidade ali tratada. Um Piva periférico e negro vomitando espasmos de quotidiano e dor - dor evitável de um quotidiano que merece ser revolucionado. O rim, o pulmão que vazam pelos furos de bala enquanto a criança baila por cima os fios que enquadram o céu azul da periferia, preocupada em não deixar os pães cair, são poesia alucinada que emerge das marcas de sangue que o Estado estampa no asfalto; o coração que escapa pela abertura feita pela bala e voa sob a forma de uma borboleta-chuteira (teria feito um gol?) até a mãe arrasta gritos de sonhos que crianças e adultos - pretos - insistem em ter, junto ao cheiro do café, à pressão do feijão, e a casa típica da maioria dos brasileiros - retratada como pitoresca, por não aparecer glamurizada na novela (no máximo escarnecida em programas de "humor"), com carne de segunda, refrigerante de segunda, gente de segunda... gente como os soldados da PM, retratados como cães, verdadeiros chacais - o que me faz perguntar sobre o dito de ser o cão o melhor amigo do homem: o que é a amizade em uma sociedade como a nossa? 
Inclusive, me pergunto como não reagiria um PM sério - que não seja um perverso, como os retratados na peça e os que fazem muito da (má) fama da corporação [http://bit.ly/2KFiPZo] -, que tenha já sido brutalizado mas não de todo, diante de uma peça como essa: conseguirá se emocionar como os demais presentes, reconhecerá a necessidade de mudanças; ou seu espírito corporativo falará mais alto e preferirá negar o óbvio para preservar seus comparsas e a instituição? 
Me faço outro questionamento: diante do caminhar de nosso país, por quanto tempo Buraquinhos poderá ainda ser encenada sem ameaças a dramaturgo, diretor, atores e público? Mais quantas edições um espetáculo como esse poderá ser contemplado - ainda mais por um edital público? Que a presença de Buraquinhos na programação do CCSP este ano não seja recordada como um último suspiro antes de um período de trevas.


02 de julho de 2018

PS: A peça fica em cartaz até dia 15 de julho, de sexta a domingo, no Centro Cultural São Paulo, no metrô Vergueiro, com ingressos a R$ 20,00.