terça-feira, 7 de agosto de 2018

Eleições 2018: a escolha é entre a possibilidade democrática e a democracia de fachada.

O filósofo político John Rawls, no início da década de 1970, dizia que em um sistema democrático liberal bem ajustado era possível tolerar posições extremistas, pois pela própria dinâmica do sistema elas se suavizariam e tenderiam para o centro. Não apenas por obra do golpe, mas desde sempre, com nossa iniquidade pornográfica, o Brasil estaria longe de ser qualificado como bem ajustado pela teoria da justiça rawlsiana - daí podermos questionar se alguém como Bolsonaro e Malafaia teriam direito a expressar suas posições com toda a liberdade que o fazem. Contudo, se se abandonar veleidades ideais e trabalhar a partir de questão “ajustado para quem?” podemos ver, sim, um sistema bem ajustado - para os interesses dos de sempre, das elites -, com a peculiaridade de que as posições extremistas podem ser toleradas não porque tenderiam para o centro, mas porque o centro se volatiza de modo a abarcar os extremos (ao menos certo extremo) dentro de uma pretensa normalidade. Se a política seria a possibilidade de introjetar antagonismos sociais de modo a diminuir a violência bruta, aqui ela serve como caixa de ressonância para estimular ainda mais a violência crua das ruas - a liberdade de expressão sem limites e sem conseqüências serve como estímulo a mais para violências reais: abuso de autoridade, genocídio negro, feminicídio, e crimes de ódio diversos. E nem penso no Bolsomico, mas naquele ex-governador paulista, de alcunha Santo, que autoriza e estimula seus subordinados a cometerem assassinatos extra-legais, portanto criminosos.
É um sistema funcional: a normalização dos extremos, em especial da extrema-direita - via Veja, Globo, Folha, Bolsonaro e afins -, faz com que a política institucional antes de veículo para mudanças sociais que favoreçam a maioria, seja um freio (quando não uma marcha à ré) para buscas de modos de convivência mais pacíficos em prol de uma pretensa "voz das ruas" que justifica a manutenção dos privilégios baseado no escravismo secular do país - o judiciário assumir esse discurso é apenas a assunção de que o reformismo light e republicano do petismo foi demais para o país da Casa Grande e seus patos-sabujos. E quando o judiciário, autoinstituído poder moderador (versão pusilânime e antinacionalista da Guarda Revolucionária do Irã), se põe como serviçal da direita, em aberta defesa não da propriedade, mas dos privilégios (que ele também desfruta, por ser parte da elite), e se arrola amiúde o papel de civilizador destes Tristes Trópicos, crer na justeza das eleições e no respeito ao desejo popular é uma aposta de risco: o que vai tornar as eleições de 2018 legítimas para o judiciário - e a elite que nele se apega como em 1970 se apegava aos militares - é o povo "votar certo" (como dito por muitos anônimos seguidores do pato quando na derrubada de Dilma), daí a necessidade de censurar candidaturas e ideias.
O fato das eleições (ao que tudo indica) serem realizadas normalmente, em outubro, nestes tempos anormais não é por qualquer apreço à lei e à democracia por parte de nossas elites, mas se deve ao isolamento internacional que o golpe trouxe, ao medo de represálias e ao complexo de vira-latas de nossa classe média made in Miami: Trump, curiosamente, acabou por se tornar o grande fiador da consulta popular deste ano, ao negar a entrada do Brasil na OCDE por julgar que Temer não tinha legitimidade para uma decisão dessas; ao agir assim, jogou um balde de água fria em algum golpe branco do tipo semipresidencialismo ou adiamento das eleições por conta de uma pretensa violência fora do controle que justificasse intervenção militar em outras áreas do território nacional. O golpe no Brasil sofreu não apenas com a perda dos aliados democratas como ainda teve que se ver com um presidente ressentido, e isso complicou muito o fechamento do regime em uma democracia anódina, apenas para cumprir porcamente os ritos formais (como no caso do impeachment ou da condenação de Lula).
A estratégia de Lula e do PT de comprar a briga até o final com o establishment foi acertadíssima - isso todos sabemos, inclusive é dito (pelo não-dito) o tempo todo pela Grande Imprensa. É uma aposta de alto risco para o país, porém a única possível, visto que outra estratégia seria aceitar o golpe como normal - que não por ser corriqueiro deve ser tido por aceitável. O custo interno e externo para os golpistas é alto, e o cálculo que deve estar sendo feito, nas reuniões com Coronel Mendes e tucanos de alta plumagem, é em que momento tirar Lula da disputa traria menos "externalidade negativas": cassar sua candidatura a tempo de garantir a participação do PT ou não? A ausência do PT na urna pode ser usada como denúncia internacional, além de ser evidenciado pelo número de nulos ou abstenções - seria de se esperar menos de 50% de votos válidos, o que iria ser usado como fator a mais de propaganda petista. Garantir o PT na urna, com Haddad, tem como risco a vitória petista e o desmonte do "projeto" golpista - nesse caso, apelar para fraude é uma alternativa, e não nos iludamos, o Brasil é uma republiqueta bananeira, onde isso cabe sem muitos constrangimentos.
Essa discussão toda, que tem norteado esquerda, direita e imprensa, diz respeito ao executivo nacional. Como é de praxe na esquerda nacional, as eleições legislativas foram relegadas a irrelevantes, praticamente ignoradas - faz um ou dois meses que vejo alguma mobilização de pré-candidatos, enquanto a direita há dois anos prepara e fomenta seus jovens empreendedores políticos. Essa é a arma reserva que o golpe possui: ainda que autorizem o PT a assumir o Planalto em 2019, nada garante que o partido conseguirá governar - um novo Cunha ou mesmo um novo Botafogo como presidente da Câmara garantem a ingovernabilidade por quatro anos. 
O que temos para este ano, portanto, não é uma eleição onde está em jogo a escolha de governantes e projetos de país, é uma eleição onde se deve escolher por forçar em direção a um regime democrático legítimo (ainda que limitado e enfraquecido) ou uma pseudodemocracia de fachada, onde só vale "voto certo", tutelada por um judiciário temeroso da Grande Mídia, compactuada com interesses externos e antinacionais.

07 de agosto de 2018


segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Lost in Translation na Liberdade

Não sei por qual diabos, acordei com música dos Mamonas Assassinas na cabeça. Costumo brincar que tenho um DJ Interno que só toca podreira dos anos 80 e 90 - às vezes cantarolo para Natália a música que o DJ colocou e ela pergunta de onde foi que desenterrei aquilo, como se eu soubesse. Ela já até me fez assistir à animação Divertidamente para poder fazer piada com o tal DJ. Talvez Mamonas tenha sido vingança antecipada do DJ Interno por saber que o domingo prometia ser bom musicalmente - à noite iria à apresentação d'O Corpo (trilhas de Uakti e Metá Metá), e de dia, a um evento de Minyô, música folclórica japonesa, no qual cantariam Natália e Vinícius (além de outras 77 pessoas, as quais não vi todas, tendo perdido a parte principal, a do concurso que valia uma viagem para o Japão).
Ao chegar na Associação Kyôdo Minyô do Brasil, na Liberdade, me veio Legião Urbana à cabeça (por conta minha, não do DJ): “festa estranha com gente esquisita”, ainda que o destoante ali fosse eu, e sequer tenha sido a festa mais estranha que já fui na Liberdade - nada comparado a uma outra associação cultural japonesa, decorada para natal, onde serviam feijoada vegana em um evento indiano. Enfim. Num salão, o palco ao fundo tem uma discreta apresentadora à esquerda. Discreta quanto ao visual e ao local onde está, porque ela fala mais que apresentador de talk show empolgado com um assunto que gosta. Como só falava em japonês, não sei se o que ela falava era importante ser dito, ou seguia o padrão dos programas televisivos - só sei que falava e falava e falava. Num dos lados do salão, atrás de uma longa mesa, pessoas sisudas vestidas de terno com uma grande flor de origami na lapela, flores que me fizeram lembrar dos gibis da turma da Mônica, as medalhas de concursos nas histórias - desconfiei que eram os jurados da hora do concurso que perdi. As únicas coisas que eu realmente compreendia naquele salão eram a data, escrita em português, as bandeiras do Brasil e a do Brasil comunista que o PT queria impôr - conhecida no resto do mundo como bandeira do Japão. Nem mesmo o pavão ou fênix com cara de peru brincando um novelo de lã (símbolo do evento) me foram de clara compreensão. No início eu até tentei pescar algumas palavras, e achava que estava conseguindo: né, arigatô, uataxi, namastê - e sabendo que namastê é palavra indiana, passei a ter sérias dúvidas se eu entendera qualquer uma, além de Natária, quando chamaram Natália para o palco. Me senti Bill Murray no filme de Sofia Copolla, Encontros e desencontros ("tradução" medonha para Lost in Translation, só não pior que o nome dado em Portugal, O amor é um lugar estranho). As pessoas se levantaram e ficaram em silêncio, eu também; aplaudiam, eu também - inclusive os aplausos eram nos momentos mais aleatórios possíveis para minha compreensão ocidental. Como fiquei apenas na parte que não era concurso, foi interessante ver as reações do público, muito participativo e tolerante com falhas. Na primeira fila, duas senhoras marcavam com palmas o ritmo das músicas, para que nenhum dos amadores ali se perdessem. Alguns dos cantores esqueciam da letra - inclusive um que não parecia tão amador assim -, e a plateia cantava para ajudar. Outras horas acho que cantava junto só para cantar, mas pode ser que fosse outro lapso da letra ou do tom, não sei, estava bacana a festa, e estava boa a música. Na hora do almoço, quase todo mundo com seu isopor com o bentô - parecia recreio de escola infantil, cada criança com sua lancheira, com a diferença que eram um pouco mais velhos e não ficavam vendo e trocando o que cada um tinha, já que todos tinham o mesmo bentô (deixei para almoçar depois, já que Natália estava proibida de comer, pois iria cantar logo após o almoço). Enquanto almoçavam, homenagens a mais pessoas enternadas - uma tática esperta, deu pra cumprir essa formalidade sem incomodar a parte legal do evento. Após o almoço, os dois pontos principais a que vi: uma apresentação de taikô, a batucada japonesa, com um senhor que parecia o Henrique Meirelles cheio de vitalidade ao fundo (inclusive me fez pensar que uma cultura que não produz uma boa batucada deve ser olhada com certa suspeição); e uma senhora muito velha, de bengala e grandes óculos, cantando e dançando feito Liam Gallagher, ex-Oasis. 
E como quando assisti ao filme da Sofia Copolla, ao fim de duas horas pude sair de lá e tudo estava normal, pessoas falando português, a vida que segue, e o horário meio em cima para comer e ir assistir ao Corpo. Entretanto, por garantia, fomos a um restaurante onde todos os garçons falavam português. 

06 de agosto de 2018

PS: Aceito convite para algum evento de música folclórica e comidas gostosas da comunidade árabe (ainda que saiba que a imigração Argelina não é significativa para cá e não poderei desfrutar de música chaabi).