sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Eleições 2018: Haddad no segundo turno e Ciro (ou Alckmin) por um bola para desbancar Bolsonaro

Pesquisas eleitorais não são apenas retrato de momento, são retratos muito falhos, com erros grosseiros mesmo a um dia do pleito. Ainda assim, é o que se tem para fazer alguma análise sobre o cenário eleitoral.
Quando comentei o primeiro debate, na Bandeirantes do golpe, falei que parecia que os candidatos estavam cientes de que disputavam a segunda vaga para o segundo turno - a primeira era do PT. O crescimento de Haddad era esperado e óbvio - só algum acontecimento muito fora do comum impediria seu crescimento: o PT nacionalmente conta com cerca de 30% do eleitorado, teve uma queda nesse índice com os ataques promovidos pelo consórcio golpista, mas diante do exagero na dose da mídia e da condenação sem provas de Lula por crime que sequer foi especificado, houve um efeito rebote e o PT está no mínimo no mesmo patamar, com a militância mais aguerrida que em tempos não muito distantes. Por mais que fosse dificultada a transferência de votos de Lula a Haddad, sua identificação com o PT já tenderia a garantir votos suficientes para uma das vagas. Sua escolha também se mostra acertada por quebrar a resistência de antipetistas menos radicais, daí a insistência da mídia e dos adversários de marcá-lo como sendo do PT.
Alckmin parte para o tudo ou nada. Sobe o tom dos ataques contra Bolsonaro, marca posição como antipetista da gema, e ameaça o Brasil de se tornar uma nova Venezuela da mídia, se elegerem um dos "extremistas", tentando fazer valer a clivagem que há mais de um ano a mídia tenta produzir, sem sucesso, de que o PT seria um extremista de esquerda, um Bolsonaro de sinal invertido. O problema é que por não empolgar corre risco de definhar ainda mais para Ciro Gomes, que se mantém firme perto dos 15% das intenções de voto, faz discurso de alguém muito bem preparado e não exatamente antipetista, mas pós petista, que acaba palatável não apenas aos não petistas que nada tem contra o partido de Lula, como entre antipetistas lights, com alguma capacidade de discernimento entre um candidato do campo democrático e um maluco com fortes pendores ditatoriais e sádicos. Ciro, se se mantiver onde está, crescendo um pouco, pode chegar ao segundo turno. Alckmin primeiro precisa derrubar Bolsonaro e então partir para uma operação abafa tentando superar Ciro. Ainda não conseguiu a primeira tarefa, pode ser que consiga, porém acredito que dificilmente conseguirá também a segunda, a tendência é definhar ainda mais, caso Bolsonaro caia também.
Bolsonaro é, desde o início, o outro nome forte para o segundo turno, mas não está garantido. Não porque o sistema político tenderia para a polarização de sempre, PT-PSDB, como certos analistas e cientistas políticos desejavam, e sim porque é um candidato fraco, mesmo. Tem uma base de fanáticos e alguns tolos que se deixaram levar pela onda. Por um lado a facada foi uma sorte: quanto mais ficar quieto, melhor. Por outro lado, não: além de dúvidas sobre seu real estado de saúde, sua equipe dá mostras de ser mais estúpida que o próprio - quase um representante da Sorbonne entre seus partidários. Uma frase infeliz dele, de seu vice ou de seu guru econômico, se bem explorada pelos adversários (Ciro, Alckmin e a mídia), pode desidratá-lo a metade do que tem hoje, creio. Segurança pública (pouco explorada, na minha opinião), CPMF e aumento de impostos para a maioria da população, e agora Mourão atacando não apenas as mulheres, mas as mães - essa entidade semisanta - e seus filhos. Bolsonaro se defende com o discurso de que tudo o que se fala dele é invenção de esquerdista, fake news. Se em algum momento se conseguir furar essa defesa, ele cai. Duro é que falta pouco tempo, ao menos para o primeiro turno.
A disputa contra Bolsonaro pela sua vaga no segundo turno me lembra meu Paraná Clube, na série A, em especial quando ainda comandado pelo Micale (meu outro time, que torço por influência de meu avô, o Operário Ferroviário, se tudo der certo, se consagra campeão da série C amanhã): o time é muito limitado, ainda assim não chega a jogar mal, porém joga tudo por uma bola; duro que na grande maioria das vezes não apenas toma o gol primeiro, como dificilmente aproveita a bola do jogo que tem para fazer o gol. A comparação com o Paraná não foi sem propósito: o time não é apenas lanterna, mas caminha para a pior campanha dos pontos corridos, e isso serve de analogia para a dificuldade em se desbancar o candidato fascista de onde está - mesmo com alguma ajuda da mídia.
Há quem o veja como um novo Collor, com mídia e empresariado dispostos a apoiá-lo, para vencer o sapo barbudo, repaginado em dupla de galãs de novela. Não me parece ser o caso. A mídia hesita: se não bate, tampouco apoia. Creio que há dois pontos para esse comportamento: o primeiro, por saber que é candidato com grandes chances de derrota, então tentar, quem sabe, barganhar neutralidade com Haddad (com Ciro não vai ser preciso, por ora), em troca do partido não comprar briga quando assumir. O segundo, que Bolsonaro não tem um "vice-caução", como tinha Collor: o aventureiro alagoano podia ser posto no Planalto porque, qualquer coisa, tirava-se (como de fato se tirou) e no lugar havia um político sério, de carreira: Itamar Franco (o tal vice-caução é minha tese também sobre a aceitação das vitórias petistas nos últimos anos). Se eleito, eventual impedimento de Bolsonaro poria alguém ainda pior: não haveria escapatória fácil, com verniz legal, para os próximos quatro anos, e não há uma burocracia consolidada para freá-lo - pelo contrário, parte das altas esferas estatais já mostrou estar disposta a apoiar a instalação aqui de um estado neofascista aos moldes das Filipinas.
Luis Nassif fala em um início de pacto pela democracia [http://bit.ly/2QPGOEP], com supremo, com tudo - o que não deixa de ser bom, em alguma medida, mesmo que com efeitos colaterais. Pode ser não apenas a percepção de algumas frações golpistas (minoritárias, me parece) do quanto se perde com um governo Bolsonaro, como uma tentativa de manter a democracia brasileira em baixa intensidade, obrigada a ceder aos interesses dos de sempre, e ainda assim democracia - o que cai bem no exterior. Bolsonaro fora do segundo turno permitira um rearranjo mais tranquilo, com maior aparência de normalidade democrática - inclusive a própria derrota do candidato petista, com uso de todo aparato de terrorismo midiático para (mais) um golpe branco do tipo.


21 de setembro de 2018.


segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Flores negras nos subterrâneos dos brancos [Diálogos com a dança]

O que guardam os subterraneos de nossa sociedade, de nossa historia, de nosso ser? O quanto esses subterrâneos sugam da vida de pessoas tidas por descartáveis, o quanto fertilizam o que os proprietários das terras desejavam que fosse árido e estéril, de fértil basta os lucros do agrobusiness?
Subterrâneo, da Gumboot Dance Brasil, é um espetáculo de lavar a alma, de hipnotizar pelo trabalho de corpo e fazer acreditar que nos subterrâneos da sociedade e da história fervem devires que não enxergamos na superfície - e por isso devemos seguir lutando, a despeito das últimas notícias que tentam nos desalentar.
Dos escravos aos mineiros, a miséria de uma vida transformada em instrumento para o enriquecimento de algumas poucas pessoas e algumas poucas nações se torna em uma cultura rica, potente, forte e delicada, instrumento de afirmação de um povo - um povo difuso, sem limites territoriais e étnicos bem delimitados e por isso muito mais perigoso aos nacionalismos ocidentais.
Os grilhões da escravidão transformados em chocalhos, corpos negros transformados de objetos de trabalho em sujeitos de cultura: a humanidade pulsa e resiste onde homens brancos (e seus asseclas) gostariam que restasse apenas o conformismo e a força bruta instrumentalizada para seus lucros. Se os negros foram forçados a migrar para a América, servir de mão de obra em plantações brancas, que esta terra dê origem a uma nova cultura, de resistência e afirmação, mescla do passado que não conseguiram apagar e de possibilidades de futuro que senhores tentam em vão negar, fermentado nos nos vãos dessa sociedade racista, na luta e no reconhecimento da dor do próximo - é isso que me passa a primeira parte do espetáculo.
Subterrâneo me deu a forte impressão de que, ainda que sem contato direto com os povos andinos, os negros aportados no dito novo mundo souberam fazer do novo solo uma Pachamama: se não há ancestralidades milenares aqui, o suor e o sangue da primeira geração já teria bastado para fazer desta terra um solo sagrado e de pertencimento. 
Não por acaso, nestes tempos de golpe e neofascismos, os brasileiros que gritaram e gritam que querem seu país de volta não tem com a terra relação além de mercantil e mal vêem a hora para migrar para alguma terra branca - Miami ou Portugal (esquerdista). Nossa intelectualidade de esquerda, branca, não fica muito longe. Se não se reconhece no chauvinismo de seus pares egressos da academia, na primeira oportunidade tratam de migrar para os países centrais, em seus doutorados sanduíches que se transformam em oportunidade de empregos além-mar. É nos EUA e Europa onde estariam as melhores cabeças, dizem - coincidentemente brancas ou que pensam como brancos. Também eu tenho meus cacoetes de formação branca, e junto da tensão dos gestos e do ritmo do tambor, a primeira parte de Subterrâneo tem uma leveza que me remeteu aos barrocos Vivaldi e Boccherini.
A segunda parte do espetáculo, onde entram em cena mineiros no lugar de escravos, tão brutalizados e instrumentalizados quanto estes, me fez pensar no quanto essa categoria é sintomática do capitalismo: os escravos das Minas Gerais, no século XVIII, que financiaram a revolução industrial na Inglaterra; os escravos não declarados como tal das minas inglesas que sustentaram as indústrias de "seu" país no século XIX, para honra e glória do rei e alguns poucos; os escravos descarados das minas de diamante europeias em solo africano, até 1970 (ou mais), para brilho e glamour de brancos que lucram com suor negro. Se os mineiros ingleses eram brancos, o trabalho nas minas os transformava em negros, a fuligem imprimia-lhes a cor e o rótulo que brancos impingem a negros ou a quem faça trabalhos equivalentes: não-pessoas; descartáveis.
Se hoje a Europa vê a retomada do racismo, convém lembrar que ela não aguentou meio século livre da escravidão (e nenhum ano sem imperialismo): dizem que o Brasil foi último país a abolir a escravidão, meia verdade: quando vemos o que europeus faziam na África - a Diamang, em Angola, por exemplo -, é notável que a Europa manteve escravidão até o último quarto do século XX, mas, como bons civilizados, mantiveram-na longe de suas vistas, de suas cidades, apenas desfrutaram das riquezas extraídas do sangue negro enquanto proferiam belos discursos pela liberdade. O mundo Ocidental civilizado nunca foi contra a escravidão, apenas não gosta dela no seu jardim (o que mostra o atraso civilizacional da elite brasileira e seus patinhos amestrados).
Se vi leveza na primeira parte, na segunda, os mineiros do capitalismo consolidado me pareceram pesados, a tensão sem alívio, a necessidade da ordem militarizada: as botas dos mineiros mimetizando os coturnos dos soldados que os oprimem em nome da ordem e do progresso - sempre com os negros, nunca para os negros. O capitalismo enquanto guerra permanente, em várias frentes: guerra contra os trabalhadores, guerra contra o meio ambiente, a água, a terra, as florestas, as geleiras, os oceanos, os animais de todos os biomas; guerra contra os negros, indígenas e todos que ousam questionar a supremacia do lucro sobre a vida; guerra contra a Vida. Guerra generalizada, ideologicamente ampliada numa guerra de todos contra todos, trabalhadores brancos contra trabalhadores negros, tralhadores homens contra trabalhadores mulheres, trabalhadores nacionais contra trabalhadores migrantes...
Mas em meio a todas essas guerras, Subterrâneo nos mostra que a humanidade resiste e faz frente à desrazão da civilização branca. No melhor do espírito da dialética moderna, mostra que a cultura advinda da escravidão e da exploração negra foi capaz de sublimar a dor e ressignificar o quotidiano, transformando o que era dado por destino em futuro aberto ao devir, o que era submissão e vergonha em afirmação e beleza. Subterrâneo é a afirmação do negativo que muitos tentam negar - a escravidão e a dívida histórica que ainda temos com a população negra - e a afirmação do positivo que a cultura dita superior resiste a aceitar como tendo valor: o quanto as culturas negras, tidas por inferiores, bárbaras, sem refinamento, podem e devem se afirmar, com valor por si ou na sua capacidade antropofágica, em tudo o que pode ampliar os limites estreitos que vêm da Europa e seus imitadores (me recordo do artigo "A tradição viva", de A. Hampaté Bâ, uma amostra do quanto o mundo perdeu por causa do eurocentrismo, surdo ao outro). Enquanto cultura segura de si, pode ser altiva sem precisar depreciar as outras, não que baste por si, mas por reconhecer a si própria, saber de onde vem, e isso faz com que saiba de seu valor, e do valor de expressão cultural autônoma. Portanto, Subterrâneo não é um tapa na cara dos brancos, é um sopro de vida e alegria para todos abertos a e desejoso da construção de um outro mundo.

10 de setembro de 2018

PS: o espetáculo está em circulação por São Paulo. Infos na página do grupo: www.facebook.com/gumbootdancebrasil/