domingo, 16 de junho de 2019

Lula, o socrático

Ao assistir à entrevista do Lula ao Juca Kfouri e José Trajano, da TVT, dois aspectos ganharam nova dimensão para mim - questões secundárias, talvez, mas que ajudam a pensar o todo, a entender o principal.
Em certa altura, creio que trazendo uma pergunta de Frei Betto, o ex-presidente é questionado se se arrepende das indicações ao STF, e diz que não. Minha primeira reação foi fazer coro a parte da esquerda que o condena por não fazer uma autocrítica (a direita também faz esse tipo de condenação, mas é puro cinismo, porque ela o condena por tudo e por nada): "como assim não se arrepender de Dias Toffoli, 'Carmen Lúcifer' (como diz Igor Leone), Joaquim Barbosa, primeiro justiceiro televisivo de toga anti-PT?!" Ao invés de me achar com toda razão, tentei entender as razões que Lula poderia ter para dizer isso, além da evidente: se arrepender não resolve absolutamente nada, não desnomeia ninguém, e estamos falando de assuntos sublunares e não supralunares. Achei duas razões: a primeira, que sua liberdade está nas mãos do STF, e seus ministros, como espécimes exemplares do judiciário brasileiro, julgam não conforme a Constituição e as leis, e sim de acordo com desígnios secretos e subjetivos - a cor da roupa de baixo, se dormiu bem, o que o colega de academia vai pensar do seu voto, o que a tevê diz, o que ele ou ela enxergou na Bílbia na última epifania enquanto fugia do pecado do desejo da carne que o/a assomava -, logo, melhor não se indispor. A segunda é que, parafraseando Ciro Gomes, "o Lula tá preso, babaca", uma prisão arbitrária e indubitavelmente injusta, ainda assim, uma prisão, uma solitária. Destarte, o que lhe cabe é se afirmar de maneira positiva, até para mostrar a pequenez de quem o acusou e condenou, e não buscar suas falhas, porque isso não vai nem mobilizar quem cobra autocrítica nem demover quem tem convicção de sua culpa. Não que Lula não precise reavaliar pontos de seu governo, mas na prisão esse gesto soaria como uma capitulação aos seus algozes: assumir em tal situação que errou seria dar ensejo para fazê-lo assumir outras coisas mais, como o triplex, o sítio, a conta na Suíça, o atentado de 11 de Setembro. Por ora, a tarefa de crítica dos governos Lula e Dilma deveria ser feito pelo PT; porém o partido fica entre fazer coro uníssono ao Lula e tentar fazer o tempo girar pra trás e fechar acordos questionáveis como se o pacto de 1988 ainda vigorasse de fato.
O segundo ponto que me chamou a atenção está difuso pela entrevista, e mostra porque a elite e a classe média sem espelho tanto o odeia - e porque admira e idolatra Moro e Bolsonaro.
Lula não esconde sua origem, não se envergonha dela, não se acha inferior por isso. Mais, fora da lógica binária em alta no país (e no mundo) atualmente (e que não é privilégio da direita, parte da esquerda acadêmica é primária nesse aspecto há décadas), não se sentir inferior não implica em se sentir superior. O exemplo do não se levantar para o Bush é emblemático: não o fez por se achar superior, mas um igual. Além disso, Lula é uma pessoa ciente de e bem resolvida com suas limitações.
Costumo dizer, baseado em Sócrates, que há duas formas de se relacionar com a própria ignorância: ou você se orgulha dela e a utiliza como móbil da busca pela ampliação dos conhecimentos, ou você deliberadamente ignora o que não sabe, se imobiliza onde está seguro e se orgulha (ainda que pelo não-dito) da sua ignorância. Bolsonaro e seus seguidores, admito, abrem uma terceira alternativa: a pessoa que se sabe ignorante, se orgulha dessa ignorância e se orgulha ainda mais de insistir em ser ignorante - o ideal talvez fosse desaprender até chegar ao grau zero do entendimento e do conhecimento, mas é aquela metáfora do fruto proibido: uma vez mordido, não dá para voltar à completa ignorância.
Moro tem a soberba dos parvos deslumbrados com o elogio da própria mãe (o verdadeiro "idiota útil" que outro idiota útil viu nos manifestantes de 15 de maio), é o ignorante que quer destruir tudo (e todos) que aponta suas faltas, suas falhas, que contradiga a perfeição enunciada pela mãe. E dá sinais o tempo todo de quão mal formado é. Exemplo básico é o fato de não possuir sequer conhecimento da língua - sua e de seus chefes: é o "testo" de seu doutorado, o "conje" da sabatinada no congresso, os erros crassos de concordância toda vez que aparece falando mais que uma frase, seu patético inglês macarrônico. Tudo isso sempre escondido em sua face quase sempre séria, sisuda, quase sempre enfezada, de raros sorrisos comedidos e que não convidam a sorrir junto, sequer a querer saber o que teria despertado tal sentimento. Para quem se acha muito culto e erudito, é pecado mortal demonstrar tanta ignorância.
Lula, por seu turno, sabe de suas limitações e diante daquilo que não tem relevância, faz piada de si próprio: diz logo que só chama de Glenn porque pra pronunciar Greenwald iria dar nó na língua; mesmo na prisão Lula gargalha, transforma sua raiva em tiradas hilárias, como dizer que Dallagnol treinou bolinha de gude no carpete e a empinar pipa no ventilador (e mal sabe ele: sozinho, ainda por cima). É alguém que sabe que protocolos devem ser seguidos - e uma boa apresentação é parte do protocolo de um presidente -, mas também sabe o quanto eles tem de ridículo para serem levados excessivamente a sério, e que podem ser tensionados - sem ser ele o ridículo (como usar chinelo com terno). Lula é vivido, é alguém com leitura de mundo e contexto, é inteligente e fala em alto som de suas ignorâncias e de como tem tentado superar as lacunas importantes (saber sociologia, economia, história é importante, falar Greenwald ou advogado corretamente, não).
Tanto Lula quanto Moro/Dallagnol/Bolsonaro podem ser tidos como sínteses de elementos do país. Os neofascistas tem tanta admiração das classes média e alta (principalmente) porque elas vêem neles um reflexo de si próprias enaltecidas pela Globo: se reconhecem nas suas "qualidades" e se sentem elogiadas por William Bonner, Merval Pereira, Miriam Leitão e que tais. Já Lula é mais que uma síntese de uma democracia encarcerada para pilhagem do país e seu futuro, Lula é síntese do futuro que o país precisa: um país que reconhece e assume seu passado e que sabe que não pode ficar onde está - onde sempre esteve - e precisa se transformar, para desenvolver suas potencialidades.

16 de junho de 2019

quarta-feira, 5 de junho de 2019

A aceitação moral de um novo holocausto está dada [Zeitgeist 2033]

A ameaça feita por Trump ao governo mexicano, de taxar os produtos do país - 5% a partir de 10 de junho, progressivamente até 25% em outubro -, caso o México não dê um jeito nos imigrantes "ilegais" da América Central e do Sul que tentam chegar à "terra da liberdade e da oportunidade" pela via terrestre, é de uma degradação ética e política assustadora - e tão assustadora quanto é a forma como tem sido tratada pela opinião pública internacional.
Se a política criada pela Austrália, na virada do século, para "conter" imigrantes pobres de seu entorno - imitada pela Europa rica, que não quer os pobres que ela produziu em suas ex-colônias enfeiando seu discurso de terra avançada, da civilização e dos direitos humanos -, pagando para que ilhas como Nauru e Papua Nova-Guiné "acolham" tais pessoas em verdadeiros campos de concentração, que passam a viver num limbo sem perspectivas - não por acaso a taxa de suicídio é altíssima [www.bit.ly/2Myqquf] -, é condenável; a atitude do governo dos Estados Unidos, ao obrigar o México a tomar alguma atitude - qualquer atitude - para conter as caravanas de desesperados fugidos da miséria e da violência, sob risco de sanções econômicas capazes de pôr sua própria população - e o Estado - em risco de sobrevivência, é inominável: o horror imposto enquanto política de estado para pessoas indesejadas - e excluídas do rol dos seres humanos. No primeiro caso ainda há uma questionável compensação para arcar com esse ônus, no segundo, é apenas ameaça de miséria, sim ou sim.
Por sorte - "sorte" - dos imigrantes que chegam ao México, López Obrador, mandatário de centro-esquerda do país, não parece ter ligações com a máfia, nem ser entusiasta de seus métodos, e não deve, portanto, fazer uso de expedientes não de todo incomuns no país (na verdade ao sul do Rio Grande), de entes estatais entregarem ao crime organizado pessoas tidas por inimigas, para que esse dê sumiço - o caso mais emblemático é o massacre de 43 estudantes em Iguala, que certamente não foi o primeiro nem o último. O "se vire, pouco me importa como, ou arque com as consequências" posto pelos EUA é um convite a toda forma de desrespeito dos direitos humanos - até porque latinos, como os negros, estão mais para cucarachas que para gente, segundo a cosmovisão da direita americana -, um estímulo para que o trabalho sujo seja feito fora de suas fronteiras e o país não possa ser responsabilizado, mantendo assim seu discurso de país civilizado - algo que a Europa tem notório know how.
Assusta que a ameaça de Trump seja tratada pela opinião pública mundial (e mesmo americana) sem o devido alarme, sem a devida dimensão ética do caso, como se fosse apenas mais um front de guerra comercial que está para ser aberto. O ser humano, milhares, milhões de vidas - uma vez que ameaça a população do México como um todo - tratados como meio para obtenção de vantagens egoístas de um império decadente e degenerado, que segue a tendência do mundo dito judaico-cristão ocidental e civilizado (e também de um certo país tropical que não assume que não é ocidental nem civilizado), e busca "qualificar" sua migração, alegando "segurança" e incremento na produtividade econômica, no fundo o velho discurso de um século atrás, de "branqueamento" e pureza da raça e de homogeneização dos costumes repaginado. Os imigrantes (pobres e não-brancos) são os novos párias. Se não acarretará milhões de mortes como os holocaustos armênio na Turquia de 1910, judeu e cigano na Alemanha de 1930/40, negro da África desde o século XV, vai ser por benevolência de destino: as condições - materiais e morais - foram dadas e poucos viram problema nisso.

05 de junho de 2019

PS: Vejo as notícias, que o México já destacou agentes para a fronteira com a Guatemala. Se seguir princípios básicos de direitos humanos, uma ação tão inócua quanto o muro de Trump.