quinta-feira, 6 de agosto de 2020

A foto da reforma do Vale do Anhangabaú e as críticas precipitadas e tardias

Foto de como está ficando o Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, gerou uma série de reações, de críticas, e algumas poucas reflexões. Como sói com críticas basicamente reativas, são rasas e pouco acrescentam, além de ressaltar a ignorância no assunto de quem a faz - há quem consiga fazer uma crítica com mais refletida, mas aí cai numa idealização que perde um bom tanto do contato com a realidade, como o caso do artigo “Como era verde o meu Vale: o Anhangabaú e o paisagismo inóspito de São Paulo”, por Antonio Hélio Junqueira, publicado no Jornal GGN, e falo isso como usuário pedestre frequente do Vale entre 2012 e 2018.
A crítica com base na foto atual é ao mesmo tempo precipitada e muito atrasada. Precipitada porque o vale ainda está sendo reformado. Poderia se questionar onde estão as árvores que constam no projeto. Contudo, para tal pressuporia o conhecimento do projeto - e nisso se mostra o quanto é tardia. Porque o projeto não é do Bruno Covas, e sim do Fernando Haddad. Foi pouco discutido com a sociedade, apresentado sem a mesma grita da esquerda que vejo agora em minha bolha branca-classe média-universitária-de esquerda, e desde o início era medonho, com poucas árvores, muito cimento - e centrado na gentrificação do centro.
Para agora, a grande questão - que chega a ser abordada muitas vezes, mas raramente como principal crítica - é a necessidade de uma reforma dessas, essencialmente cosmética (uma vez que não inaugura nada marcante, como um centro cultural ou esportivo), em um momento de crise econômica (mesmo antes da pandemia) e com uma série de problemas importantes e mais urgentes, inclusive no próprio centro - como a questão da moradia. Mas não deixa de suscitar outros temas importantes para o debate.
Para além da moradia, desde quando o projeto foi apresentado, ficou escamoteada a discussão dos usos - atuais e desejados - do centro da cidade e da população que o frequenta, e da qual se deseja que o frequente também. Pergunta mais que pertinente: esses novos frequentadores querem estar no centro, querem estar em contato com “gente diferenciada”? Porque dificilmente será apenas uma praça - ainda mais num país que costuma vê-las como mero locais de passagem ou de moradia de população marginalizada - que fará com que certas porções da população passem a ocupar um espaço (o exemplo do Largo da Batata citado por Junqueira não parece condizente, uma vez que se localiza numa região já devidamente habitada e gentrificada). Há um exemplo logo ao lado: o Sesc 24 de maio, na República, atraiu pessoas novas apenas o restrito espaço do seu interior super policiado, tanto que oferece transporte para o metrô e estacionamentos, como forma de evitar que seu público entre em contato com o populacho da região. 
Quais os usos que se quer do centro: moradia popular, moradia hipster, lazer para quem pode pagar? Lazer popular já há (ou havia, antes da pandemia), com vários bares com som ao vivo e grupos de pagode; e mesmo boa oferta cultural, com Galeria Olido (antigamente, andou sendo posta de lado, infelizmente), Centro de Referência da Dança, Trackers, cinema de rua, além do novo Sesc. Se é para lazer da classe média - poderia ser uma alternativa para a vida noturna, aproveitando que já é subaproveitado para moradia -, caberia pensar a reforma do Vale a partir do seu uso efetivo - mesmo que em transição - e não de uma ocupação idealizada e pouco factível no momento - a gentrificação por ora está (estava) centrada na região da República próxima à Vila Buarque e Santa Cecília, não aponta na direção da Sé. 
E, claro, outro ponto a se criticar: se é para gastar dinheiro público em praças e afins, é no centro que esse dinheiro deveria ser aplicado? Não faria mais sentido ampliar as áreas verdes e de convivência nas regiões de moradia já densamente povoadas?
As críticas que vejo na internet, via de regra, são de quem já não frequentava o Vale do Anhangabaú, desconhece que há muito não é arborizado (talvez tenha sido enquanto durou o projeto de Bouvard, de cidade jardim), e que nada ali convidava a estar, a permanecer, a ser local de convívio - quem a ocupava de fato eram os moradores de rua, como costuma acontecer nestes Tristes Trópicos. Não sei se o novo Anhangabaú mudará essa topologia humana, de qualquer forma, não vejo muita possibilidade de piorar - pode, quem sabe, ser uma alternativa menos radical à praça Roosevelt para skatistas, patinadores e afins. De qualquer modo, cabe criticar o momento em que se está executando e mais que isso, o projeto desde seu início; e isso implica em criticar a conversão do PT a ideais classe média hipster, em detrimento das necessidades e anseios das classes trabalhadoras das periferias.

06 de agosto de 2020

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Bloco sanitário para caixa acoplada

Pouco depois de me mudar para São Paulo, dividi apartamento com um arquiteto recém chegado da Europa, contratado para trabalhar num dos escritórios de grife da arquitetura nacional. 
Um dos pontos interessantes da convivência com ele foi saber (ou melhor confirmar) alguns comportamentos das nossas elites econômicas, em especial as diferenças entre um novo rico - que vai para Nova Iorque, perdão, New York, escolher as banquetas para sua casa, a três mil dólares cada - e um rico tradicional - que acha extorsivo o valor do projeto do puxadinho para sua mansão nos Jardins, ainda que seja um valor irrisório para quem está na lista da Forbes como dos mais ricos do mundo, com alguns bilhões de dólares.
Outro ponto interessante foi ver que estar um (bom) tanto desconectado das coisas práticas da vida não é privilégio de filósofos, sociólogos, economistas e escritores (ainda que estes possam fazer bom uso desse alheamento). Pouco depois que ele mudou, perguntei se ele teria alguma sugestão de ocupar melhor o espaço do apartamento com os móveis que eu tinha. Na noite do mesmo dia me veio com a sugestão de quebrar a parede da sala, fazendo uma cozinha gurmê no meio, com um grande… interrompi suas ideias não tanto pelo clichê, antes porque o que eu queria era mudar móveis de lugar e não fazer uma reforma estrutural num apartamento alugado. Certa feita, veio intrigado contar da conversa no elevador que tivera com os vizinhos de cima, que questionaram se estava tudo certo em nosso banheiro. Disse que respondeu afirmativamente e vinha então me perguntar se tinha acontecido algo. Sim, tinha: do spot de luz gotejava há quatro dias um líquido viscoso preto e todo o teto estava pipocado de água infiltrada, por conta de um cano que estourara no apartamento de cima; mas ele não havia notado nada - e era o único banheiro da casa. Fosse ele o filósofo, eu até, quem sabe, poderia dar um desconto, mas ele era arquiteto!
O melhor foi uma vez que saído do banheiro veio ter comigo, que estava na sala, lendo. Diante do bloco sanitário em gel que eu havia posto no vaso, me contou que na Europa havia blocos sanitários para caixa acoplada, que se jogava na respectiva caixa e era desnecessário limpar o vaso (os três moradores da casa nos revezávamos na faxina, uma semana um limpava o banheiro, outro o resto da casa e o terceiro folgava), e me sugeriu que adotássemos tal expediente. Nem pontuei o fato de não acreditar que um bloco sanitário fosse capaz de substituir uma faxina feita com uma escova, apenas levantei que tínhamos um problema capital: nosso vaso sanitário não possuía caixa acoplada. Ele ainda ficou um tempo pensativo, levemente perplexo, levemente decepcionado com minha objeção, ao que, enfim, concluiu: "que coisa, então não vai dar para usar". Eu sei que parece piada, mas aconteceu.
Lembrei desse antigo colega de habitação porque na residência em que vivo atualmente o vaso sanitário possui caixa acoplada - e eu compro os tais blocos sanitários específicos, ainda que faça questão de passar a escova uma vez por semana, no mínimo.
Em geral, compro o bloco sanitário para caixa acoplada mais barato, "sabor" lavanda, que tem uma cor que não sei se é azul, roxo, índigo - sim, eu sou daltônico, e isso me traz algumas dificuldades com certos tons de cores (o que não me impediu de tentar ser iluminador cênico, o que permitia que eu me apresentasse como um dos poucos filósofo das luzes devidamente registrado no MEC e no MTE). Esses dias resolvi trocar de cheiro. Me chamou a atenção o silvestre: não pelo cheiro - pois eu estava de máscara e só pude ver sua cor, verde -, mas pela possibilidade de dar um ar mais bucólico ao meu banheiro, que às vezes, quando chego do trabalho, tem um acentuado cheiro de xixi dos meus gatos. Imaginei algo meio fazenda, que rememoraria passeio da infância: o cheiro da relva misturado ao das excretas bovinas - meu gato Guile, com quase dez quilos, já parece mesmo um boi. O cheiro do tal silvestre até era gostoso, mas as memórias antigas não vieram, e achei que deixava a água do vaso com uma cor estranha. Decidi não encafifar com isso, afinal, provavelmente devia ser obra do meu daltonismo.
Foi quando Sabrina veio passar o fim de semana em casa. Ao sair do banheiro, perguntou se havia algum problema com o vaso, pois dava a descarga e o xixi continuava ali - ao menos assim parecia -, algum problema com a água? com a caixa acoplada? Sabrina não é daltônica, de modo que vi que minha impressão era real. Expliquei que não, não havia nenhum problema e a urina que aparentemente se acumulava na retrete era bloco sanitário de "sabor" silvestre - ela acreditou. Espero não ter mentido.

03 de agosto de 2020.