quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Vinho estranho

Luciana vem me ver. Ao chegar, pergunto se quer beber algo: água, chimarrão, café (novidade na casa!), suco verde (que é vermelho, por causa da beterraba e não do meu daltonismo, apesar dos amigos não perderem a oportunidade para fazerem a piada), rum, gin, vinho tinto ou branco. Ela aceita vinho branco.

Mostro a garrafa do vinho argentino que comprei na minha última ida à fronteira, a Bernardo de Irigoyen, perto de Pato Branco, em 2018, junto com minha mãe e meu irmão. Saliento o guanaco em relevo acima do rótulo, e antes de ela formular a pergunta eu já respondo: “sim, comprei por causa da garrafa”.  Já tinha dado certo numa oportunidade, quando comprei saquê pela primeira vez, por que não daria de novo? Estava com Vannucci na Liberdade e nunca nenhum dos dois havia bebido saquê. Decidimos comprar um. Foi ele quem sugeriu comprarmos uma marca que não era a mais barata e cuja garrafa era bonita. Me pareceram argumentos sólidos. Alguns anos depois, quando fui na festa de aniversário da Paty, uma amiga cujo pai é dono de um restaurante japonês, vi que usavam do mesmo saquê - que encarei como prova insofismável da validade do argumento da garrafa bonita para bebida barata é sinal de qualidade.

Mas para agora o que há é vinho, e não saquê - retorno ao causo. Uma, duas, três tentativas, a cada vez que o saca-rolhas sai, só vem farelo de cortiça. A rolha está seca e só me sobra empurrá-la. Luciana assiste a tudo com desconfiança. Encho minha taça e experimento um gole sob o olhar atento dela. “Está estranho, mas acho que está bom, sim”. Ela recusa a oferta para provar: “eu preciso trabalhar amanhã, não posso passar o dia no banheiro por causa de um vinho ‘estranho’”. Eu ainda insisto, digo que não está ruim, ou melhor, não parece estar ruim, só um pouco estranho. Ela reitera a recusa e abro, então, o vinho tinto, comprado aquela semana numa promoção no mercado - os dois paguei praticamente o mesmo, entre R$ 30 e R$ 40, apesar dos quase quatro anos que separam as compras. Do tinto, a rolha sai sem problemas, deslizando macia para fora da garrafa, produzindo aquela exclamação sem falhas - “Pop!” -, que anuncia que ali tem vinho e não vinus acre - ou qualquer outra reação química que torne o líquido "estranho" -, o que tranquiliza Luciana. Devolvo o vinho branco à garrafa, passo uma água em minha taça e encho as duas com o vinho tinto.

Antes de continuar, a atenta leitora, o atento leitor vai se perguntar: por que raios pus o vinho de volta, se estava estranho? Ainda que eu seja de família classe média, meus pais vieram de famílias de classe baixa, nunca esqueceram disso (por questões de preconceitos vários, os termos costumam ser usados para nordestinos, negros e pobres, mas posso dizer que sou filho de um retirante com uma boia-fria) e fui criado em uma  simulação de economia de guerra, em que, por exemplo, não se joga nada fora sem motivo, porque “vai que precisa”. Sim, isso leva a situações sem sentido, como notou uma ex-namorada, quando eu havia instalado na cozinha o móvel que havia feito no curso de marcenaria, reorganizava meus víveres e vi que havia algumas castanhas portuguesas que eu ganhara de uma outra ex, cinco anos antes - certamente já impróprias para o consumo. Comentei isso com ela, e pus o pacote no armário, ao que ela perguntou: “se não dá mais para comer, por que está guardando?”, eu estava prestes a responder “vai que uma hora precise”, quando percebi que a razão era inconsistente, e com peso na consciência me vi forçado a jogar comida fora... Sobre essa ex-namorada, outro ponto bem a propósito neste longo parênteses: seus pais adoravam vinho, e tomavam apenas vinhos caros. Seu pai buscava qualquer pretexto para beber, e conversar comigo era um - eu gostava das conversas, ele contando, dentre outras coisas, da sua atuação no PC do B no final da ditadura e início da redemocratização. Numa conversa de uma hora e pouco, abria três garrafas, na qual eu bebia uma taça da primeira, meia da segunda e dois dedos da terceira - como forma de garantir que conseguiria voltar caminhando para casa -, e ele bebia o "resto". Não que ele não fizesse por hospitalidade (não era com todo mundo que ele aceitava dividir o vinho), mas, sem dúvida, eu era um ótimo interlocutor nesse sentido.

Retomemos o vinho presente, agora o tinto. Ao beber o primeiro gole, noto o que estava estranho no branco. Terminada a taça, aviso que vou voltar ao argentino. Luciana, reticente, recusa. Talvez a segunda taça tenha feito ela baixar a desconfiança, talvez tenha visto que eu, após um gole e uma taça, seguia vivo e normal (quer dizer, normal dentro do esperado após duas taças); talvez porque tenha notado que apesar das muitas partículas de rolha flutuando, o líquido era mais encorpado, mais denso que o tinto que bebia, e aceita quando insisto para que o prove. Pois tão logo bebe o primeiro gole, me critica: “Por que não me deu logo de cara este vinho!? É muito bom!”, “Mas eu te ofereci”, “Você falou que estava estranho”, “Mas eu estranhei”. Ela não dá conta de ir além de uma taça, de modo que me sobra boa parte da garrafa. 

No dia seguinte irei pesquisar na internet, para quem sabe comprar novamente, mas desistirei: meu salário de funcionário público desvalorizado não me permite: custa quase trezentos reais, mais o frete. Isso também explica meu estranhamento: desacostumado, desde que terminei com a ex acima citada, a beber vinhos de melhor qualidade, não fui capaz de reconhecer quando me deparei com um. Certamente se os pais da minha ex lerem esta minha crônica vão se perguntar por que não me ofereceram suco de uva, mesmo, diante de paladar tão primário.


10 de agosto de 2022

sábado, 9 de julho de 2022

O Idiota, de Marcos Abranches e Sandro Borelli [diálogos com a dança]

Não sou crítico de dança, não tenho bagagem para tanto, por isso acho complicado classificar um espetáculo: pode ser muitas vezes que eu esteja guiado por uma questão de gosto, ignorando todas as referências artísticas que são trazidas. Assim, prefiro dizer que O idiota, espetáculo mais recente do dançarino Marcos Abranches, me foi uma decepção do início ao fim e além. Sim, eu tinha expectativas altas, por conta do que conhecia do trabalho de Abranches, mas não foi só por isso. 

O trabalho de corpo de Marcos está presente, mas parece desvitalizado; poucas camadas de interpretação se sobrepõem, as falas são rasas, óbvias, beiram o eruditês estéril, um professor sem carisma dando uma aula por obrigação; a dramaturgia parece pretensiosa, mas é superficial e tediosa. Há ainda a impressão de que havia problemas com o projetor (ou com o operador), que acabam chamando mais a atenção que o próprio artista, na expectativa de algo que amarre tudo aquilo e permita um salto qualitativo. Nada: a projeção, quando surge, muito pouco acrescenta. São poucos os momentos em que vejo aquele corpo que tanto me impressionou em 2014, com Corpo sobre tela, e em 2015, com a primeira versão de O grito. Me pergunto se o fato de eu não ter lido O idiota, do Dostoievski, no qual o espetáculo se inspira, não seria o problema, mas rejeito essa ideia: conhecer a obra poderia até me ajudar a fruir melhor a coreografia, mas depender de conhecimentos prévios é algo para uma tese, para uma discussão academicista, não para uma obra de arte. Com vinte minutos estou conferindo o relógio - pouco depois noto uma pessoa ao lado fazer o mesmo. É quando lembro do outro nome que está no programa: Sandro Borelli. Isso ajuda a entender: no palco está Marcos, mas o ritmo e a (falta de) profundidade é típico das coreografias que já vi de Sandro.

Acompanho a cena de dança paulistana há dez anos, nunca entendi toda a importância e deferência que Borelli tem. Do que conheço da sua produção, faz uma arte pretensiosa e superficial nos seus melhores momentos [https://bit.ly/cG140330], e revoltantemente racista nos seus piores (o blackface na capa de sua revista Murro em Ponta de Faca criticando os "privilégios" dados aos artistas negros é asqueroso). Uma arte branca, cis-hetero e classe média - ou seja, uma arte medrosa e limitada, feita a partir de um ponto de vista de um privilegiado que não se reconhece como tal. Talvez aconteça na dança o mesmo que acontece no teatro paulistano: um jovem branco, de classe média, heterossexual, que se diz de esquerda, com posições "polêmicas" sobre temas identitários, e adora cenas com algum tipo de violência escancarada, que ganhou um prêmio uma vez e passou a ser cultuado por tudo o que fez e faz depois, mesmo que não tenha produzido mais nada de relevante e poucas vezes tenha ido além de mais do mesmo, reiteradamente chamado para falar do que não entende e nem tem sensilidade para compreender (que seja a própria incompetência no assunto).

A hora que O Idiota mais perturba é quando o som sai alto e estridente das caixas, me forçando a tapar os ouvidos. O enunciar do ato a ser feito - "pôr o braço esquerdo", "colocar o paletó na cadeira" -, não quebra qualquer quarta parede, apenas puxa o espetáculo para o raso, justo num breve momento em que camadas começavam a se sobrepor - a conversa do personagem bêbado com o casaco e seu se apresentar como bailarino. Repetir o slogan da campanha de 2018 de Bolsonaro enquanto toca o hino nacional e faz posição de sentido foi um tapa na minha cara, que esperava algo que não fosse tão literal e óbvio.

Em dado momento as tatuagens de Marcos me fizeram divagar sobre o quanto a assimilação da cultura marginal não serve para incluir essas pessoas que estão à margem, apenas jogá-las ainda mais em guetos. Luis, que me acompanhava, disse ao final que também "fugiu" da sala em algum momento - sua divagação tinha sido sobre Duchamp na história da arte. Duchamp, tatuagens, beber uma cerveja do Bixiga Sem Medo depois; enquanto isso, diante de nós, um espetáculo baseado em Dostoievski corria sem nos causar impacto.

A outra decepção veio logo após os aplausos, quando Marcos voltou e conversou brevemente com o público.

Disse ele que quer ser um “adulto da dança”, quer ser visto como artista e não mais como “um coitadinho que se supera”. Esse tipo de fala é decepcionante: um artista com o trabalho que Abranches possui tendo que reivindicar que o olhem por quem ele é e não pelo preconceito com que muitos ainda o vêem: sua diferença como uma incapacidade - quando a única incapacidade está em quem tem essa visão, de ser incapaz de sair de seu preconceito alienante. Certamente ele não é tido por "adulto" não pela qualidade de sua obra, mas por outras razões - a começar pelo preconceito. Mas se a maioridade artística vier com O Idiota, não será sem profundo significado: essa passagem não com a apresentação de uma obra maior, mas justo o contrário, um espetáculo menor de sua carreira. Que ele sirva de combustível para se reinventar, rever suas parcerias e seguir experimentando e desenvolvendo aquilo que tem de melhor - sua dança como um reflexo do nosso quotidiano desajustado todo ele.

Lembro da primeira vez que assisti a uma dança sua: entrar na sala da Galeria Olido (que muita falta faz: a mudança das apresentações de dança para o CRD foi lamentável: interrompeu o processo de formação de público e fez da dança paulista uma arte de gueto para amigos e iniciados) sem saber nada da sua história, ficar impressionado com seu espetáculo, com seu trabalho de corpo, e me surpreender, no final, ao descobrir que aquele corpo cênico era construído a partir do corpo do próprio artista - a diferença imposta pela sua paralisia cerebral - e não era todo ele apenas interpretação. Assim, nunca o vi como um coitadinho, nem vi no palco superação: vi o trabalho de um artista a explorar todas as suas potencialidades e a nos jogar na cara nosso quotidiano opaco, conformado, limitado [https://bit.ly/cG131116]. 

Um artista do porte de Marcos Abranches ter que pedir esse tipo de respeito é decepcionante, e não podemos pôr na conta da extrema-direita e do bolsonarismo: é nosso fracasso enquanto sociedade, nosso olhar normativo querendo nos pôr como superiores aos diferentes.


09 de julho de 2022