Luciana vem me ver. Ao chegar, pergunto se quer beber algo: água, chimarrão, café (novidade na casa!), suco verde (que é vermelho, por causa da beterraba e não do meu daltonismo, apesar dos amigos não perderem a oportunidade para fazerem a piada), rum, gin, vinho tinto ou branco. Ela aceita vinho branco.
Mostro a garrafa do vinho argentino que comprei na minha última ida à fronteira, a Bernardo de Irigoyen, perto de Pato Branco, em 2018, junto com minha mãe e meu irmão. Saliento o guanaco em relevo acima do rótulo, e antes de ela formular a pergunta eu já respondo: “sim, comprei por causa da garrafa”. Já tinha dado certo numa oportunidade, quando comprei saquê pela primeira vez, por que não daria de novo? Estava com Vannucci na Liberdade e nunca nenhum dos dois havia bebido saquê. Decidimos comprar um. Foi ele quem sugeriu comprarmos uma marca que não era a mais barata e cuja garrafa era bonita. Me pareceram argumentos sólidos. Alguns anos depois, quando fui na festa de aniversário da Paty, uma amiga cujo pai é dono de um restaurante japonês, vi que usavam do mesmo saquê - que encarei como prova insofismável da validade do argumento da garrafa bonita para bebida barata é sinal de qualidade.
Mas para agora o que há é vinho, e não saquê - retorno ao causo. Uma, duas, três tentativas, a cada vez que o saca-rolhas sai, só vem farelo de cortiça. A rolha está seca e só me sobra empurrá-la. Luciana assiste a tudo com desconfiança. Encho minha taça e experimento um gole sob o olhar atento dela. “Está estranho, mas acho que está bom, sim”. Ela recusa a oferta para provar: “eu preciso trabalhar amanhã, não posso passar o dia no banheiro por causa de um vinho ‘estranho’”. Eu ainda insisto, digo que não está ruim, ou melhor, não parece estar ruim, só um pouco estranho. Ela reitera a recusa e abro, então, o vinho tinto, comprado aquela semana numa promoção no mercado - os dois paguei praticamente o mesmo, entre R$ 30 e R$ 40, apesar dos quase quatro anos que separam as compras. Do tinto, a rolha sai sem problemas, deslizando macia para fora da garrafa, produzindo aquela exclamação sem falhas - “Pop!” -, que anuncia que ali tem vinho e não vinus acre - ou qualquer outra reação química que torne o líquido "estranho" -, o que tranquiliza Luciana. Devolvo o vinho branco à garrafa, passo uma água em minha taça e encho as duas com o vinho tinto.
Antes de continuar, a atenta leitora, o atento leitor vai se perguntar: por que raios pus o vinho de volta, se estava estranho? Ainda que eu seja de família classe média, meus pais vieram de famílias de classe baixa, nunca esqueceram disso (por questões de preconceitos vários, os termos costumam ser usados para nordestinos, negros e pobres, mas posso dizer que sou filho de um retirante com uma boia-fria) e fui criado em uma simulação de economia de guerra, em que, por exemplo, não se joga nada fora sem motivo, porque “vai que precisa”. Sim, isso leva a situações sem sentido, como notou uma ex-namorada, quando eu havia instalado na cozinha o móvel que havia feito no curso de marcenaria, reorganizava meus víveres e vi que havia algumas castanhas portuguesas que eu ganhara de uma outra ex, cinco anos antes - certamente já impróprias para o consumo. Comentei isso com ela, e pus o pacote no armário, ao que ela perguntou: “se não dá mais para comer, por que está guardando?”, eu estava prestes a responder “vai que uma hora precise”, quando percebi que a razão era inconsistente, e com peso na consciência me vi forçado a jogar comida fora... Sobre essa ex-namorada, outro ponto bem a propósito neste longo parênteses: seus pais adoravam vinho, e tomavam apenas vinhos caros. Seu pai buscava qualquer pretexto para beber, e conversar comigo era um - eu gostava das conversas, ele contando, dentre outras coisas, da sua atuação no PC do B no final da ditadura e início da redemocratização. Numa conversa de uma hora e pouco, abria três garrafas, na qual eu bebia uma taça da primeira, meia da segunda e dois dedos da terceira - como forma de garantir que conseguiria voltar caminhando para casa -, e ele bebia o "resto". Não que ele não fizesse por hospitalidade (não era com todo mundo que ele aceitava dividir o vinho), mas, sem dúvida, eu era um ótimo interlocutor nesse sentido.
Retomemos o vinho presente, agora o tinto. Ao beber o primeiro gole, noto o que estava estranho no branco. Terminada a taça, aviso que vou voltar ao argentino. Luciana, reticente, recusa. Talvez a segunda taça tenha feito ela baixar a desconfiança, talvez tenha visto que eu, após um gole e uma taça, seguia vivo e normal (quer dizer, normal dentro do esperado após duas taças); talvez porque tenha notado que apesar das muitas partículas de rolha flutuando, o líquido era mais encorpado, mais denso que o tinto que bebia, e aceita quando insisto para que o prove. Pois tão logo bebe o primeiro gole, me critica: “Por que não me deu logo de cara este vinho!? É muito bom!”, “Mas eu te ofereci”, “Você falou que estava estranho”, “Mas eu estranhei”. Ela não dá conta de ir além de uma taça, de modo que me sobra boa parte da garrafa.
No dia seguinte irei pesquisar na internet, para quem sabe comprar novamente, mas desistirei: meu salário de funcionário público desvalorizado não me permite: custa quase trezentos reais, mais o frete. Isso também explica meu estranhamento: desacostumado, desde que terminei com a ex acima citada, a beber vinhos de melhor qualidade, não fui capaz de reconhecer quando me deparei com um. Certamente se os pais da minha ex lerem esta minha crônica vão se perguntar por que não me ofereceram suco de uva, mesmo, diante de paladar tão primário.
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