domingo, 18 de fevereiro de 2024

Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo e as esquerdas


De Antônio, meu avô paterno, tenho duas lembranças vagas da minha infância: uma, num almoço da família do meu pai, era ele quem preparava o churrasco, num tonel de metal, entre a caixa de areia e as parreiras, na casa de Pato, mais ou menos onde hoje fica a churrasqueira; a outra, devia ser um fim de tarde, pelo sol alaranjado e oblíquo, talvez depois da escola: estávamos na cozinha da sua casa - ele então morava sozinho -, e meu pai reclamava que ele não tinha sequer banana, ao que ele respondia que tinha uma laranja, algo assim. 

Digo, essas duas são lembranças de antes de 1990. Depois tenho várias, e marcantes. Pois meu avô era alcoolista, e em maio desse ano teve um AVC. Como estava morando sozinho, devido aos comportamentos violentos gerados pelo álcool, demorou para o encontrarem. Foram nove anos morto em vida, sem conseguir sair da cama, sem conseguir se comunicar - e o geriatra sempre elogiava meu pai, que cuidou dele esse tempo todo (apesar de serem em nove irmãos), pois ele não possuía escaras, tomava sol, tinha a fisioterapia básica em dia, tudo feito por meu pai, com auxílio de minha mãe e Cecília, a mulher que trabalhava em casa naqueles anos (com férias, 13º, INSS e todos os direitos, mesmo antes de isso ser obrigatório). Eu era criança e muitas vezes tinha vergonha dele quando meus amigos iam brincar comigo, pois até a chegada de meu pai do trabalho, para banhá-lo e fazer os exercícios, ficava o cheiro forte de cocô. Meus amigos talvez se impressionassem mais com a figura daquele senhor deitado ou sentado, “falando” “bã bã bã bã”, às vezes chorando em seguida. Meu irmão, que tinha três anos quando o derrame aconteceu, sequer possui outra imagem dele que não de um homem numa cama.

Falo disso porque dia 18 de fevereiro é o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo. Não sei o quanto o álcool foi responsável pelo seu “derrame” - como se dizia na época -, mas lembro que diziam que a demora no socorro foi crucial para as graves sequelas com que ficou - e isso, sim, consequência do alcoolismo (e do patriarcado/machismo), que fez com passasse a dormir com um machado ao lado da cama, por suspeitar/delirar que minha avó tinha um amante.

Criticar o abuso de drogas, em especial do álcool, ainda é complicado dentro da esquerda e do campo progressista - como se não houvesse um degradê entre a abstinência e o abuso. Daí que geralmente restam aos setores mais conservadores a crítica ao abuso (e ao uso) de álcool e drogas, defensores da abstinência e da proibição - duas soluções simplistas e fracassadas, tanto no plano individual quanto coletivo. Ao mesmo tempo, a indústria da bebida, faz a farra e enche as burras*, graças a ostensivas e agressivas estratégias de publicidade [https://bit.ly/3I54kJR]. 

Na minha bolha de esquerda classe média, ao menos, vejo o quanto o marketing cervejeiro - em especial - tem conseguido bons resultados, impedindo uma visão crítica do problema e sua discussão a sério. É muito comum nos finais de semana fotos com copos e garrafas de cerveja, como tótem, como sinônimo de comemoração, como representante do deus da alegria e da felicidade. Contudo, nem sempre se sorri por felicidade, nem sempre se brinda a sério, nem sempre se bebe para celebrar - por mais que o diga. Como em um conto do Mia Couto (cujo nome me foge agora), em que o pai da noiva, gastando tudo o que tem e não tem na festa de casamento da filha, repara ao interlocutor que pela primeira vez a população local está bebendo para celebrar e não para se esquecer. 

Esquecimento, é com isso que a publicidade de cerveja trabalha. Esquecer que é uma droga, esquecer que ela tem poder de adição muito grande e difícil de se recuperar, esquecer que pode matar por abuso ou abstinência (sim, ela e heroína!), esquecer que causa uma série de problemas individuais, familiares e sociais - assassinatos, seja por motivo fútil, seja por atropelamento. Esquecer que é uma droga legalizada que dá muito lucro a particulares e muitos custos à sociedade.

Parte da esquerda, assim como outrora comprou o discurso do cigarro, e fazia uso e se deixava fotografar com um na boca, porque era sinal de rebeldia e personalidade forte, agora adere sem crítica ao discurso da cerveja como sinônimo de alegria, de comunhão, de prazer, de ser mais um na multidão. É curioso como a cerveja se desenha como o oposto do cigarro (e outras drogas), como uma prova não de individualidade, mas de pertencimento, de apagamento das diferenças. Me parece impraticável uma propaganda de cerveja de um vaqueiro solitário no deserto texano, ou um slogan com “cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”: a cerveja trabalha com o apagamento do sujeito e o reforço do comportamento gregário, inclusive com forte pressão sobre os abstêmios (que não é meu caso, só para deixar claro), de que seriam chatos. É um ethos bem afim ao discurso neofascista.

Há tempos defendo que deveria ser proibida a propaganda de toda qualquer droga (inclusive legais, inclusive remédios), assim como deveria ser legalizada a grande maioria delas, com regulação e fiscalização severa sobre locais de venda e uso. Ao mesmo tempo, deveria haver uma campanha séria de alerta dos riscos e de prevenção ao abuso, feito por profissionais da saúde, e não por militares que tratam a questão como caso de polícia, defendem repressão a pobres (“vagabundos que não querem trabalhar” porque, sem qualificação, trabalham para o tráfico ganhando pelo menos quatro salário mínimos), a abstinência aos jovens (em patéticos, folclórios e inócuos cursos de Proerd), ao mesmo tempo que eles próprios usam drogas - há um caso explícito de um futuro deputado federal bolsonarista pelo Paraná que assume usar a drogra apreendida**.

Há também o esquecimento do porquê do abuso de álcool e outras drogas: uma vida sem sentido, sem utopias, pressão extrema nos estudos e trabalho. Quanto a estudos, lembro até hoje o clima pesado que tinham as festas da Unicamp, ainda mais em comparação com as da UFSCar, o desespero dos estudantes em tentar esquecer da pressão que sentiam - não por acaso, casos de suicídio ou tentativas de eram abundantes (eu ironizava muito isso no Trezenhum. Humor Sem Graça., seja com o curso de “Ikebana e harakiri” ou a Fapesp rebatizada de “Fepesp”). Já ao trabalho, senti na pele isso, e o abuso (ainda que "moderado") foi um dos sinais que notei que algo estava muito ruim na minha vida laboral, e apesar de ter buscado ajuda, não impediu que eu tivesse um burnout (conhecido em português como crise de estafa) violento, que até agora me alija de várias atividades (se alguém acompanha meus textos, notou um hiato de dois meses e depois uma produção bem lenta). A esquerda, acuada, tem lutado apenas para não perder o pouco que conquistamos, e não tem conseguido mais aglutinar pessoas em torno de um ideal, mobilizar em favor de um projeto utópico - e me refiro até mesmo a coisas simples, como a diminuição da jornada para 24 horas semanais, por exemplo.

Por fim, o outro esquecimento que as esquerdas costumam ter com relação à bebida é o das consequências disso dentro de cada classe: um alcoolista que é chefe de família na periferia é bem diferente de um alcoolista (ou outra drogadição) que reside em bairro nobre e cuja família não depende de seus ganhos, para ficar num exemplo bem básico.

Enquanto seguirmos ignorando essas diferenças de classe e de tudo o que o abuso de álcool e drogas implicam na vida de populações marginalizadas, e não começarmos com um discurso abarcando também questões individuais disso - para além de questões estruturais de violência policial da guerra as drogas -, em prol de um uso feito com consciência e “com moderação” de verdade, seguiremos entregando parte dessa população, sem utopias e preocupadas com as consequências mais imediatas das drogas sobre a família a discursos moralistas, de resoluções simplistas que vão resultar em violências - física, estatal, simbólica, emocional - contra essas mesmas pessoas. Enquanto isso, essa direita mais retrógrada, que encampa esses discursos, contentemente brinda nossa incompetência em ouvir a população.


18 de fevereiro de 2024

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Fernández e o bloquinho da Especular Chalana de Franca [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


“Quem é você, diga agora, que eu quero saber...”

“Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem amigos importantes e vindo do interior”

Pus Chico e Belchior neste começo para o texto não quebrar de todo o clima do carnaval, assim como Fernández F (F de “Funcionário do Topo”, não se esqueçam [https://bit.ly/cG221205]), sempre tem seu clima quebrado, até ir pro bloco. Ainda que não seja o mais empolgado com o carnaval (do tipo preocupado com fantasia e que fala no assunto desde que o ano velho terminou e o novo não começou de verdade), não se furta a essa mostra de brazilidade, sendo que o grande momento do carnaval paulistano para ele é a Especular Chalana de Franca. 

Como de costume (ao menos desde que conheço Fernández), o horário do bloco foi às 9h da madrugada. Como de costume, Fernández estava puto com isso:

Não basta eu precisar lembrar todos os dias ditos úteis - que são inúteis para as tarefas que são minhas, de meu interesse - que sou um trabalhador fodido; até no carnaval, vem a Especular Chalana de Franca me lembrar que eu faço parte desses 30% da população que tem que agradecer que pode ser útil aos 1%, enquanto tem 69% que malemal sobrevivem! Porra, nove horas da manhã?! 

E não adianta pedir calma.

Nove horas da manhã! Eu entro no trampo a essa hora! Só que como o bloco é mais longe, eu preciso acordar ainda mais cedo, em pleno carnaval! No meu tempo, matinê era para crianças! E era à tarde, ainda por cima! Eu não quero voltar a ser criança, isso eu faço na praia, eu quero voltar a ser adolescente, porra!

Essas frases com “no meu tempo” sempre me irritam, e Fernández sempre solta ela no carnaval e eu o corrijo, com a sábia frase da minha avó a uma conhecida dela, vinte anos mais nova: “se você está viva, este é o seu tempo, trate de aprender a viver nele”; ele se desculpa e assim seguimos também essa tradição nossa. A parte do “quero voltar a ser adolescente” em pleno carnaval eu ignoro, porque ele não tem culpa se quando eu era adolescente eu não tinha lá muito sucesso com os brotinhos, fosse carnaval ou velório - mas nos velórios eu entendia as razões de meu insucesso (evitar a palavra “fracasso”, me ensinou o nobre colega Carnegie tempos atrás).

Esse palavreado todo de Fernández é antes do Carnaval, claro. Este ano, fugindo à nossa tradição, não foi proferida a última vez na sexta-feira, mas no domingo de carnaval, quando fomos almoçar na Ocupação Cozinha 9 de Maio (por conta da posse de Mandela, em 1994), e meu broto até se assustou, pois dali iríamos para o Bloco do Fuê (“Quebrando os ovos do patriarcado pra fazer bolo de capitalista à clara em neve”, diz seu slogan). Quando meu nobre colega foi ao banheiro, ela me perguntou se ele gostava mesmo de carnaval, ou ia apenas para prestigiar Meireles.

Nos despedimos no fim daquele bloquinho, ele ainda não sabia se iria para casa, dormir cedo para a Especular Chalana de Franca, ou ficaria um pouco mais. No dia seguinte, passei a ficar preocupado: início da noite perguntei como tinha sido no tão aguardado bloquinho, e ele nada de responder, até quarta-feira. Pensava em passar no seu setor antes do fim do expediente, mas nos trombamos sem querer no corredor: ele de óculos de sol e bananas de ouvido. Entendi seu recado, apenas disse que da próxima vez que avisasse que estava tudo bem, ao que ele se desculpou e reclamou que eu não precisava gritar.

Deixei para perguntar como tinha sido na sexta, quando marcamos de almoçar. O encontrei ainda com cara de ressaca - ao que ele disse que já estava bem, quase 100% recuperado -, contou um pouco do que lembrava, que no domingo havia achado mais fácil virar a noite e ir direto para o bloquinho, disse que tinha aproveitado bem a folia e concluiu:

Foda que já este fim de semana tem mais, no pós-carnaval. Eu estou que quase não aguento, mas que se há de fazer? É a vida...

Por um instante fiquei a pensar se esse conformismo se referia ao trabalho ou ao carnaval, mas aí lembrei do que ele sempre fala do horário da Especular Chalana de Franca, e vi que se referia a ambos.


16 de fevereiro de 2024.

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.