sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Fernández e o bloquinho da Especular Chalana de Franca [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


“Quem é você, diga agora, que eu quero saber...”

“Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem amigos importantes e vindo do interior”

Pus Chico e Belchior neste começo para o texto não quebrar de todo o clima do carnaval, assim como Fernández F (F de “Funcionário do Topo”, não se esqueçam [https://bit.ly/cG221205]), sempre tem seu clima quebrado, até ir pro bloco. Ainda que não seja o mais empolgado com o carnaval (do tipo preocupado com fantasia e que fala no assunto desde que o ano velho terminou e o novo não começou de verdade), não se furta a essa mostra de brazilidade, sendo que o grande momento do carnaval paulistano para ele é a Especular Chalana de Franca. 

Como de costume (ao menos desde que conheço Fernández), o horário do bloco foi às 9h da madrugada. Como de costume, Fernández estava puto com isso:

Não basta eu precisar lembrar todos os dias ditos úteis - que são inúteis para as tarefas que são minhas, de meu interesse - que sou um trabalhador fodido; até no carnaval, vem a Especular Chalana de Franca me lembrar que eu faço parte desses 30% da população que tem que agradecer que pode ser útil aos 1%, enquanto tem 69% que malemal sobrevivem! Porra, nove horas da manhã?! 

E não adianta pedir calma.

Nove horas da manhã! Eu entro no trampo a essa hora! Só que como o bloco é mais longe, eu preciso acordar ainda mais cedo, em pleno carnaval! No meu tempo, matinê era para crianças! E era à tarde, ainda por cima! Eu não quero voltar a ser criança, isso eu faço na praia, eu quero voltar a ser adolescente, porra!

Essas frases com “no meu tempo” sempre me irritam, e Fernández sempre solta ela no carnaval e eu o corrijo, com a sábia frase da minha avó a uma conhecida dela, vinte anos mais nova: “se você está viva, este é o seu tempo, trate de aprender a viver nele”; ele se desculpa e assim seguimos também essa tradição nossa. A parte do “quero voltar a ser adolescente” em pleno carnaval eu ignoro, porque ele não tem culpa se quando eu era adolescente eu não tinha lá muito sucesso com os brotinhos, fosse carnaval ou velório - mas nos velórios eu entendia as razões de meu insucesso (evitar a palavra “fracasso”, me ensinou o nobre colega Carnegie tempos atrás).

Esse palavreado todo de Fernández é antes do Carnaval, claro. Este ano, fugindo à nossa tradição, não foi proferida a última vez na sexta-feira, mas no domingo de carnaval, quando fomos almoçar na Ocupação Cozinha 9 de Maio (por conta da posse de Mandela, em 1994), e meu broto até se assustou, pois dali iríamos para o Bloco do Fuê (“Quebrando os ovos do patriarcado pra fazer bolo de capitalista à clara em neve”, diz seu slogan). Quando meu nobre colega foi ao banheiro, ela me perguntou se ele gostava mesmo de carnaval, ou ia apenas para prestigiar Meireles.

Nos despedimos no fim daquele bloquinho, ele ainda não sabia se iria para casa, dormir cedo para a Especular Chalana de Franca, ou ficaria um pouco mais. No dia seguinte, passei a ficar preocupado: início da noite perguntei como tinha sido no tão aguardado bloquinho, e ele nada de responder, até quarta-feira. Pensava em passar no seu setor antes do fim do expediente, mas nos trombamos sem querer no corredor: ele de óculos de sol e bananas de ouvido. Entendi seu recado, apenas disse que da próxima vez que avisasse que estava tudo bem, ao que ele se desculpou e reclamou que eu não precisava gritar.

Deixei para perguntar como tinha sido na sexta, quando marcamos de almoçar. O encontrei ainda com cara de ressaca - ao que ele disse que já estava bem, quase 100% recuperado -, contou um pouco do que lembrava, que no domingo havia achado mais fácil virar a noite e ir direto para o bloquinho, disse que tinha aproveitado bem a folia e concluiu:

Foda que já este fim de semana tem mais, no pós-carnaval. Eu estou que quase não aguento, mas que se há de fazer? É a vida...

Por um instante fiquei a pensar se esse conformismo se referia ao trabalho ou ao carnaval, mas aí lembrei do que ele sempre fala do horário da Especular Chalana de Franca, e vi que se referia a ambos.


16 de fevereiro de 2024.

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

Sem comentários: