sexta-feira, 21 de fevereiro de 2003

Violência moral é coisa de maricas!

Passar rasteira toda vez que um colega passa, "pedir" parte do lanche no recreio, dar um apelido a um colega. O que tem isso demais? Trata-se de brincadeiras de criança, molecagens que sempre ocorrem nas escolas. Talvez a resposta não seja apenas isso. Demorou, mas finalmente começa-se a falar em violência moral no Brasil. O assédio moral (como pode ser chamado) seria situações de maus-tratos, opressão e humilhação que ocorrem entre colegas – geralmente nas escolas, onde são obrigadas a conviver juntas. São as brincadeiras de criança, brincadeiras "inocentes", que muitas vezes os adultos também participam.

E o que há de mal em apelidar um colega, ou fazer uma traquinagem como passar rasteira nele? São peraltices que não podem ser levadas a ferro e fogo. Os problemas principais são dois: primeiro que isso pode ser traumático à criança que sofre a violência, pode criar bloqueios, problemas de socialização, de auto-estima, entre outros; segundo, que os agressores não estão restritos às crianças: adolescentes e adultos também costumam fazer uso dessa violência.

Não é qualquer um que pode se dar ao luxo de praticar tal violência. Para tanto é preciso ter força, não somente física, mas poder de liderança sobre um grupo. A violência moral serve para garantir ou aumentar o poder e prestígio sobre o grupo, e é praticado normalmente contra "marginalizados", mas pode ocorrer dentro do próprio grupo, quando se escolhe um infeliz para Cristo por ter "orelhas de abano" ou qualquer outro "defeito" passível de gozação.

Não sabia que tinha esse nome, mas sofri na pele a violência moral. Tinha então oito anos e a turma toda, liderada por um colega, contra mim. Todo recreio, brincavam de me perseguir. O problema foi aumentando, aumentando até que pedi para sair da escola. Meus pais conversaram com a professora, com os pais do líder do grupo, e o problema entre mim e ele foi sanado, tendo ele se transformado, no ano seguinte, no meu melhor amiguinho. Por que me perseguia? Talvez porque eu fosse muito quieto, ou por pura implicância. Isso é algo corriqueiro nas escolas e não é necessário nenhum motivo além do "não fui pra cara". Na maioria dos países europeus os ministérios da educação obrigam as escolas a evitar esses atos, o que passa, necessariamente por uma conscientização dos pais.

Felizmente a saída no meu caso foi boa, e serviu para que anos mais tarde, eu suportasse outras violência do gênero sem maiores traumas (vale frisar o maiores).

Exemplos de violência moral que são encarados como normais há às pencas. Eu tinha doze anos e na minha escola havia um garoto, um ano mais novo, que tinha jeitos delicados; coitado... metade da escola tinha como principal passatempo do recreio ir atrás dele vaiando e chamando-o de bicha. A escola nada fez, não chamou atenção coletiva, não escolheu bodes-espiatórios, não conversou com pais, e o garoto não durou um ano no colégio.

Uma grande contribuição à violência moral é o cinema e os programas de tevê estadunidenses. Na sua maioria são programas de um preconceito nojento e um dualismo mocinho-bandido tosco no limite. Resultado: quem nunca teve um nerd na turma, sempre sendo alvo de piadas, bolinhas de papel e ridicularizações? No terceiro ano do COC Ribeirão de 2000 um dos "nerdes" da sala foi encontrado se batendo no banheiro. Tenho uma amiga que era taxada de nerde e se pergunta como que fulano ou beltrano, sendo pop, conversa com ela. Brincadeiras super-saudáveis, como se vê.

Mas estamos, por enquanto falando de "iguais". Quando há desigualdade a coisa fica ainda pior. "Me lembrei da empregada que se chama Maria/ Ela me dá comida, me dá roupa lavada/ Mas quando estou em casa ela é sempre humilhada/ Você precisa ver como eu trato a coitada/ Eu a rebaixo, a esculacho, fico dando risada". Os versos do Gabriel O Pensador não precisam de muita explicação. Além de ter que se contentar com um salário baixo e serviços pesados, empregados, faxineiras, serventes, limpadores de latrinas e trabalhadores afins ainda são obrigadas a suportar a humilhação dos seus patrões, dos seus "senhores". Mesmo trabalhadores mais graduados não estão à salvo, basta ter um chefe para haver a possibilidade de sofrer violência moral (por favor, não estou dizendo que todo chefe, nem que a maioria seja assim, mas quero apenas ilustrar que quando há a desigualdade hierárquica há a possibilidade da violência).

Ou seja, a inocente brincadeira de criança se perpetua até a idade adulta. Violência "invisível", mas tão danosa quanto a física, deve ser combatida por todos, o que implica, necessariamente, o reconhecimento dela e a disposição a mudar de atitude (não falo apenas dos agressores, mas às vezes você pode estar, de certa forma, estimulando um).

Aceitar as diferenças é um primeiro passo. Que tal começar hoje?


Campinas, 21 de fevereiro de 2003

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