quarta-feira, 23 de abril de 2008

A campainha

Cheguei em casa ontem no meio da tarde. Não deu cinco minutos e tocou a campainha. Olhei pela janela o pedaço de rua que me é permitido ver e não vi ninguém. Nesses casos, geralmente, não atendo: ou é para a casa da frente (cuja campainha é somente para os iniciados, tão escondida fica), ou é alguém vendendo algo que não preciso e não comprarei. Se fosse algum amigo meu, deveria saber que ou fica no pedaço que enxergo, ou liga para avisar que está tocando a campainha e quer ser atendido. Se é do correio, nunca falei nada, mas também ficam nesse pedaço que me é visível. Voltei ao meu afazer do momento, que era ler o jornal (saíra cedo e sequer tivera tempo de folhear antes de ir para uma aulinha na universidade). Mais dez minutos, e novamente a campainha. Repito a operação anterior, e não vendo ninguém, não atendo. Suspeito que talvez fosse as três meninas – na casa dos seus dez anos, não mais – que estavam sentadas em frente a casa ao lado quando cheguei, que estivessem fazendo uma das mais tradicionais traquinagens da sociedade contemporânea, tocar a campainha e correr (ou se esconder). A idéia me diverte, pois lembro de quando eu tocava a campainha e me escondia, quase ao lado dela: era evidente que era eu quem tocava e não era difícil me achar (se não me engano, uma vez me acharam, e tomei um pito). Será que ainda há isso em pleno século XXI? Volto ao meu jornal.
Por um longo tempo não fui incomodado pela campainha. Não contei, mas creio que deve ter dado uns quarenta minutos. Mas ela toca novamente. Novamente, ninguém a vista. Passo a suspeitar que, como já aconteceu uma vez, ela fora tocada há um certo tempo e o botão meio que enroscou, passando a tocar automaticamente de vez em quando, sem necessidade de ninguém para pressioná-lo. Saio com a cara fechada (não sei porque), para ver se é isso mesmo o que está acontecendo. Vou seguindo a passos duros pelo corredor que me separa da rua. Escuto, na casa ao lado, certo fuzuê. Ao abrir o portão que me leva ao pátio da frente consigo escutar uma das garotas, bastante eufórica, falar num sussurrante alto “ele abriu o portão! ele abriu o portão!”.
Vou até a campainha, verifico se não era mesmo problema nela. Na verdade, vou para não perder a viagem. Ainda tento manter no rosto o semblante fechado, de gente séria, de gente adulta, que não admite ser perturbado e ter seu tempo perdido por conta de uma besteira como essa, como a dizer “crianças irritantes! Não entendem que um adulto é ocupado demais para isso?”. Mas não consigo. Tenho um sorriso já estampado no rosto. Me seguro para não gargalhar alto e estragar a brincadeira das meninas. Volto a passos leves pelo corredor. Retomo o jornal. E me decepciono com as meninas terem cansado da brincadeira tão cedo.

Campinas, 23 de abril de 2008

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