terça-feira, 13 de setembro de 2016

Quando professoras mandam, alunos embrutecem

Estou no Sesc. Obediente aos comandos pós-modernos, espero o painel luminoso avisar que é minha vez. Enquanto isso avanço com a leitura de Conhecimento do Inferno, do Lobo Antunes. Ao centro da sala, as mesas para inscrições, matrículas e afins. Ao centro desse centro, de um armário com ar de guichê antigo, impressoras cospem guias e formulários. Nessa organização espacial não há lugar para o conservador - penso em Todos os Nomes, do Saramago -, o mais próximo seria justo onde estão as impressoras. Sai a clara hierarquia entra o sutil panóptico. De repente ouço certa barulheira vinda de não sei onde - um tanto incomum a uma ala administrativa do sempre bem-comportado-bem-controlado Sesc. Logo aparecem os autores de todo aquele barulho: um grupo de alunos da rede municipal de São Paulo. Pelos dentes faltantes de vários, devem estar na faixa dos sete anos. Passam por mim fazendo pequenas brincadeiras entre si, apesar do olhar desaprovador da professora. Eles passam, volta o barulho. É outra turma. Param ao pé da escada que desciam - estou sentado embaixo da escada, sou o único desse lado da sala. "É pra vocês ficarem em fila", diz a professora, em tom duro. Os alunos são até mais comportados que o primeiro grupo, mas não andam na formação militar exigida pela professora. Ela reprime: "Eu mandei ficar em fila!". Mandar - o verbo me dói. Manda quem não tem autoridade, apenas abusa autoritariamente de sua hierarquia. Olho rapidamente a mandante: quem dá ordens a crianças de sete anos não é educador, é, no máximo, adestrador - a mulher não é professora, é uma fracassada que tem diante de si vinte futuros para destruir, e pela amostra que tive, não posso duvidar que o faria com esmero e prazer sádico. Reparo nos alunos, crianças que exalam inocência e certa impressão de medo. Um deles, ao passar por mim, me cumprimenta com um tchau tímido. Me surpreendo, e em certa medida até me desconserto: com minha comprida barba, depois de escutar o que dissera a professora, não me julgava alguém com ar muito simpático, ainda mais a crianças. Respondo com igual gesto. Outros se empolgam em me cumprimentar também - todos com tchaus. Eu vario em minhas respostas, ora tchau, ora jóia, ora só um aceno, ora sorrio. Passa o grupo todo. Outras duas turmas ainda estão por vir, em nenhuma delas vejo professora como a do segundo, ainda que não me pareçam simpáticas (de positivo, a professora do terceiro grupo era uma transexual). No último grupo, recebo novo cumprimento, de uma garota, que sai do gesto e vai para a falar: "oi". "Olá", respondo, e termina nisso nossa breve interação - reparo que esse grupo não anda em fila e isso não é problema para a professora. No pátio abaixo, cuja visão se abre atrás de mim, sentam-se nas mesas - talvez para o lanche, ainda que eu não veja comida. Há conversas, barulhos, certa algazarra. Lembro da minha infância, o barulho do recreio na escola Dona Frida, na esquina de casa - segunda escola da cidade, destruída para dar lugar aos lucros da especulação imobiliária. Volto ao meu livro: "um luxo que os asilados se não podem consentir porque os amputámos do passado e do futuro e os reduzimos, por meio de injecções, de electrochoques, de comas de insulina, a bichos obedientes de expressões trituradas pelo desinteresse e pelo medo". Com a algazarra ao fundo, noto que Lobo Antunes, se trocasse electrochoques por reprimendas e comas insulina por ataques à auto-estima, poderia estar falando da educação pública do estado de São Paulo depois de vinte anos de PSDB, da proposta dos boçais do "Escola sem Partido", da educação confessional evangélica ou das escolas apostiladas especializadas em formar idiotas que passam no vestibular, mas ele está falando dos internos do hospital Miguel de Bombarda, asilo psiquiátrico onde médicos transformam humanos em vegetais. Lembro da professora que manda, penso em muitos dos que hoje detêm o poder no país, de alto a baixo, do presidente ao pai da família tradicional brasileira: seu sonho é o de transformar toda escola em um Miguel Bombarda mirim, em que os alunos se conformam feito bichos obedientes à mutilação do seu presente, feita em nome de um futuro no qual sua autonomia não é maior que a de um boi, e em que o sentido da vida se esgarça em obedecer, trabalhar e consumir - sem pensar, sempre sem pensar.

13 de setembro de 2016.

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