quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Corpo-preconceito

É algo que me chamou a atenção desde que comecei a fazer dança contemporânea, há três anos, com a Key Sawao: o quanto o corpo não carrega de memórias, de medos, de prazeres, de conceitos, de preconceitos que racionalmente parecem muito bem resolvidos.
Nascido e crescido numa cidade pequena e interiorana (recentemente orgulhosa de produzir um dos líderes do nazi-fascismo tupiniquim deste início de século) de um estado reacionário de um país machista, nada mais óbvio que achar homossexualidade um desabono à pessoa, ainda que fosse seu direito, e não justificasse qualquer forma de segregação ou violência - postura que vinha de casa e era muito avançada para a cidade (e seus três gays assumidos). Ainda chocado me recordo do choque em presenciar quase todos os alunos da escola (confessional, católica) perseguirem um garoto de onze anos, durante o recreio, quando ele ousava sair da sala, xingando-o, vaiando-o e cuspindo nele, por ele ser "jeitoso". Também lembro que com dezesseis anos meu maior receio com gays era tomar uma cantada - coisa de adolescente inseguro em cidade fim de mundo. Pouco depois, já na universidade, em cidades maiores - ainda que provincianas e conservadoras -, levei um sem-número de cantadas e descobri que dizer um tranqüilo "não" resolvia a questão na maioria dos casos - houve alguns insistentes, em que precisei fechar a cara e sublinhar o "não". Fora isso, muitos colegas, conhecidos e amigos homossexuais - alguns assumidos, outros então em vias de -, a ponto de me livrar daquele preconceito de antanho, e ainda discutir com meus pais até eles assumirem de modo enfático que cada um faz o que quer da sua vida íntima e nos cabe tão-somente respeitar - e errado são os fiscais do cu alheio.
Encerro as digressões e volto para 2013, aula da Key. Ela dá um exercício que conheço da época que praticava yoga: fica-se de gatinho (ou de quatro, em linguagem mais sexualizada) e mexe de forma circular cabeça e quadril, cada um para um lado. Talvez a primeira vez que fiz essa posição, dez anos antes, ela tenha sido um tanto incômoda, não lembro; sei que agora ela me perturba profundamente, dada minha completa descoordenação de circular cabeça e quadril ao mesmo tempo, ainda mais para lados opostos. Em compensação, em outro exercício, uma breve seqüência de gestos passada pela Key, minha trava foi não motora, e sim psicológica: um desses gestos consistia em passar o braço sobre a cabeça. Não faço idéia das causas, sei apenas que ele ganhava uma conotação tão gay que tive dificuldade em fazê-lo e levei tempo para naturalizá-lo. Desagradável (e necessária) surpresa: não sabia que ainda tinha esse preconceito arraigado, melhor, nunca soube que tive esse preconceito tão arraigado. Não me pareceu, a exemplo dos meus dezesseis anos, insegurança quanto à minha sexualidade - até porque não vejo qualquer problema ou demérito em ser gay -, mas me rendeu algumas sessões de análise. Surpresa também desse inusitado trazido pelo corpo: ficar de quatro, dançar com outro homem, nada disso me levou a questionar minha masculinidade, agora passar o braço sobre a cabeça...

29 de dezembro de 2016

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