quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Relato (e divagações) de um dançarino acidental

Por três meses fiquei a me questionar "que cazzo estou fazendo aqui", três vezes por semana, quatro horas por dia. Questionava não por achar que estava numa furada, e sim por me desreconhecer, mesmo. Imaginava que se há quinze anos me acontecesse, como a Borges, de trombar com um eu do futuro a me contar a quantas ia eu e o mundo em 2016, eu acharia o que me seria narrado mais surreal que o próprio encontro. Pulo as questões do mundo, por demais óbvias a quem ainda não abdicou de pensar, e me centro em mim mesmo. Era com esse olhar de quem se enxerga surrealizado que eu me perguntava o que estava fazendo ali, positivamente surpreendido com a resposta: me experimentando e me divertindo. 
Tentei várias vezes reconstruir o caminho: por um lado, uma leitura a seco de Fenomenologia da Percepção, do Merleau-Ponty, que me levou pro yoga, que me levou pro tai chi; por outro, uma apresentação do Grupo Corpo em Ribeirão, vários Unidanças na Unicamp, a mudança pra São Paulo e a freqüência assídua à Galeria Olido; por um terceiro caminho ainda, uma amiga contando das aulas de dança que estava fazendo - técnica Klauss Vianna, curiosamente com uma das minhas paixões platônicas da Unicamp -, que me fez pela primeira vez pensar em dançar também, e a abertura de um curso de "Técnicas e pesquisa de movimento", da Key Sawao, no qual me meti - inicialmente eram dez profissionais de dança e eu, experiência apenas como expectador leigo e comentador sem propriedade. Ao cabo, estava eu na residência artística do dançarino Eduardo Fukushima, no Sesc Vila Mariana (timidamente e sem jeito, o Sesc começa a tentar incentivar a criação artística e não o mero consumo), investigando e ensaiando uma coreografia para ser apresentada.
Várias vezes me questionei se não estaria mais atrapalhando o Edu e a Bia (sua assistente de direção) que ajudando (éramos em trinta, dos quais vinte e oito eram profissionais das artes do corpo ou alunas do último ano de graduação em dança), ainda que não pensasse em desistir - se ele me aceitou na residência, que arcasse com meu corpo meio desajeitado. Com o tempo fui perdendo esse receio, atualizando minha auto-imagem, e compreendendo que se eu não tinha a técnica dos demais, há muito eu não sou o jovem desengonçado e travado, sem qualquer alongamento.
Mais perto da data das apresentações, comecei a me questionar se na hora eu não ficaria por demais nervoso. Me lembrava de meus tempos de colégio, século passado, época em me chamavam de Papa Léguas (por conta das pernas finas e compridas), em que me faltava coragem para apresentar os trabalhos, e eu chegava na escola com o trabalho feito e duas capas: uma com meu nome, outra com a de outros dois colegas - o Tiguerinha e o Alcino -, que sabiam que no dia eu amarelaria e chamaria os dois para apresentar o que eu havia feito - a vez que fomos aplaudidos pelo cartaz que eu fizera, fiquei com raiva de mim mesmo por não ter apresentado sozinho. Isso faz vinte anos, e hoje eu já dou conta de apresentar em público sem maiores dificuldades, abrindo congresso de medicina com quatrocentas pessoas sem gaguejar - me irmanei do lógos e sinto tranquilidade por trás do discurso racional. A questão era que não havia um lógos racional e claramente estruturado - eu muitas vezes sequer reconhecia qual a razão por trás dos movimentos, e isso me angustiava, até uma colega me sugerir não me preocupar tanto em pensar com a cabeça. Tarefa árdua: me expunha de corpo, sem um anteparo a disfarçar a alma - sem controle seguro do que estava apresentando ao Outro. Não por acaso, dos exercícios mais difíceis desses três meses foram os em que o grupo se dividia em dois, e um assistia ao outro dançar livremente.
E meu receio de travar e não dar conta de me soltar e dançar diante do público cresceu conforme se aproximavam as datas de abertura do processo. Para ajudar, duas semanas antes, mudou a disposição do público: não mais frontal, mas sentado ao redor do "palco" - e eu, que havia territorializado, desde a primeira semana, o canto escuro do fundo da sala, fui posto na situação oposta à que imaginava escapar, e tive que engolir a idéia de que estaria cara a cara com o espectador, pior, eu começaria em meio ao público, encostado na parede, mexendo na barbicha, "com cara de quem está de boa, nem aí", como disse Fukushima, certo ensaio, para minha cara de quem estava nervoso, tentando entender as instruções. Prêmio extra: foi-me pedido que não ficasse logo em pé, porque eu, com meu um metro e noventa (só eu e a moça que também não era da dança tínhamos mais de um e oitenta), era um evento nessa hora. Coragem!
Dia de estréia. Apesar do receio, nada do nervosismo vir. Fizemos o habitual tai chi para preparar o corpo para a apresentação. Nada. A hora que descermos pro camarim bate, pensei. Nada. A hora que voltarmos pra sala. Nada. Já a postos, duvidei que não bateria um frio na barriga a hora que abrissem a porta - quando opero luz, quinze minutos antes já estou pilhado, me convenço que é para não perder a concentração, e agora que estou na ribalta, faltando menos de cinco minutos... nada. A hora de começar. Nada. Do início ao fim, nada: me vi mais confortável que quando me escoro no discurso racional - no terceiro e último dia, ainda lamentei que a apresentação poderia ter durado mais. Amigos que foram assistir a "Residência em suspensão", brincaram: ao me verem sentado tranqüilamente, como se sequer fosse apresentar, com a roupa que há dez anos uso para quase todas as ocasiões, ficaram esperando a hora que eu iria passar a cuia de chimarrão - foi o que faltou para dar a impressão de estar na sala de casa.
Se me apresentei bem, não sei. Fukushima conversou comigo depois, me elogiou, e ainda que não tenha duvidado, não consegui acreditar: já havia sido demais eu ter me apresentado sem sobressaltos, que ainda tenha feito com qualidade, era informação demais para minha cabeça - que não parou desde então, tentando entender o que foram esses três meses, e, por que não?, o que foram esses três anos desde que comecei a fazer dança com a Key. Me desreconheço (inclusive neste texto, muito "querido diário").

21 de dezembro de 2016.

PS: Revisava a crônica quando noto onde posso talvez me reconhecer novo: no nome. Com dois Daniel na sala vejo o mesmo processo de quinze anos atrás, quando entrei na USP e, para diferenciar os Daniéis, passei a ser chamado pelo sobrenome - que desde então adotei e prefiro, ainda que não faça questão. A diferença: Edu não conseguiu lembrar de Dalmoro, que ganhou nova corruptela (já tinha virado Fanoruti com a Misson bêbada [http://bit.ly/2igpo22]): Dandoro. Talvez seja isso! Dancei já não mais como Dalmoro - certamente não como Papa -, mas como Dandoro.


Sem comentários: