sábado, 30 de junho de 2012

Apenas outra andança pelo centro.

Eu voltava apressado para casa, preocupado com a hora, se daria tempo de pegar a academia ainda aberta, e antes disso, de anotar os tópicos para esta crônica. Quase em casa, um homem com o andar ébrio e caixa de papelão dobrada debaixo do braço provavelmente busca um lugar para dormir sem ser importunado por algum segurança que não quer a "calçada suja". A padaria está sendo fechada: mau sinal. Passo por uma mocinha e seu cachorro de madame – agora toda mocinha que passo me pergunto se é minha vizinha que inadvertidamente (ou talvez em plena consciência, por que não?) se troca de janela aberta. Passo por uma madame e seu cachorro em forma de tamanduá. Cinco minutos antes, na av. Paulista, por muito pouco não sou atropelado na faixa de pedestres por um skatista. Me eximo de qualquer responsabilidade, por mais que naquele instante eu estivesse pensando que o rock meio grudento que um artista de rua tocava em sua guitarra, na saída do metrô Consolação, era uma boa trilha sonora para um fim de noite frustrada, e que a mocinha bonita que conversava próxima à entrada da estação seria um bom (e belo) motivo para uma noite de frustração (poderia ser também motivo para um ótimo fim de noite, mas fiquemos com o evento mais plausível): o sinal estava verde para mim, que sou pedestre.

A rua Augusta estava movimentada, diferente dos dois dias anteriores, surpreendentemente vazia – é certo que na quarta eu passara por ela durante o jogo do Corinthians, aí não vale. Passo por um casal de belas mulheres com quem havia cruzado na quarta – foi, inclusive, motivo para a conversa com a amiga com quem me encontrara aquele dia mudar de rumo, para sobre o que nos atrai em uma mulher (e eu, nessa hora, volta e meia falando do meu esboço para o doutorado) –, e preciso admitir: apesar de terem aparentemente a minha idade, no máximo, mesmo estando de calça jeans e não tailleur, têm aquele ar, aquele porte que desautoriza chamá-las de moças, jovens ou gurias: são Mulheres. Por falar em Augusta e mulheres, um leve gosto avinagrado me subiu à boca quando adentrei a rua, ao pensar em possíveis reencontros: felizmente foi só com o referido casal.

Na Augusta, nada que chamasse muito a atenção, nada além do que estou habituado a presenciar ali. No centrão, Boca-do-Lixo, sim, algumas cenas extraordinárias (para mim). Um homem se aproxima de um catador de latinhas, consideravelmente sujo: “quer trabalhar?” O catador aceita, e então o homem grita para dentro de um sobrado decadente “alguém aí quer trabalhar?”. Vários “eu” apressados saem de lá. “Só tem vaga pra mais dois. Só mais dois! É pra ajudar na mudança daquela mulher”, e aponta para uma mulher na esquina, uma perua com seus móveis – talvez antigos e pesados, para precisar de tanta gente? Pouco antes presencio uma cena que esqueço que deve ser comum ali, pela própria condição de marginalidade dupla da maioria que trabalha naquela região à noite (dupla enquanto ser humano e enquanto profissional): uma travesti cheira uma carreira oferecida por um potencial cliente. Não deixo de ficar chocado com a cena – tão óbvia e eu nunca pensara nisso? Descubro onde fica o teatro da Aliança Francesa. Acabei nessa região porque havia virado na rua do Arouche, atraído por uma batucada que parecia bizarramente uma manifestação – e era! Bandeiras do PSTU e outras vermelhinhas, um boneco do Bolsonaro com mordaça, cartazes pedindo a criminalização da homofobia. De início estranho, mas logo noto que faz sentido: sexta-feira à noite, Arouche, ato contra a homofobia: propício. Até a batucada, eu me perdia em meus pensamentos, falava a mim mesmo que talvez fosse de bom tom não ir além da av. São João nas minhas flanagens noturnas.

Andava pela av. Rio Branco e decido entrar uma perpendicular, para inicar meu trajeto de retorno ao lar – a confiar na minha bússola interna, e porque não queria andar muito. Estou no meio da quadra e ouço, no outro lado da rua, o barulho de uma garrafa estourando. Logo vejo uma pessoa saindo em perseguição daquela que atirou (ou bateu, não vi) a garrafa nele. "Anda complicado morar aqui nos últimos tempos", comenta um homem sentado sob uma marquise. "Mas tem muito apartamento pra alugar?", pergunta seu interlocutor. Faço, então, algo que não me autorizo normalmente, salvo na Augusta e na Paulista: dou meia volta e retorno por onde vim. E penso como se trata realmente de uma questão das mais complexas, como lidar com o centro de São Paulo: o que fazer com a população de rua? Essas pessoas têm direito à cidade tanto quanto qualquer outra pessoa. Muitas preferem viver na rua, e não querem morar em albergues cheio de regras, nem ter uma vida pequeno-burguesa como jovens doutores em direito creem ser a vontade de todos. Políticas higienistas, como têm sido praticadas pelos governos municipal e estadual, além de atentarem contra a dignidade desses cidadãos, não resolve o problema, no máximo o despacham para algum outro lugar – e isso vem de longa data, vide os contos de João Antônio. A dita esquerda também não sabe o que fazer, e prefere crer que o pobre e o marginalizado são a reencarnação do bom selvagem de Rousseau. Como garantir uma cidade tranqüila, relativamente segura (para todos, em que não haja nem assaltos, nem grupos de extermínio, nem pirados avançando contra você) sem atentar contra os direitos individuais, sem ter todo pobre como suspeito – ou pior, como um estorvo, quase um dejeto que não se pode mandar logo pra uma vala.

E toda essa digressão porque ao sair de uma apresentação de dança de rua na Galeria Olido, resolvo não voltar pra casa direto, mas dar um rolê pelo centro. Ao lado da Olido, uma base da Polícia Comunitária Móvel. Defronte a ela, um policial segurando uma escopeta (não sou um entendido em armas, mas era uma espingardona dessas truculentas): eles querem angariar apoio da comunidade ostentando esse tipo de arma? Ainda mais num dia em que há um bando de jovens da periferia (não só pela apresentação de dança de rua como pelo som que está tocando no espaço de dança)? É para mostrar democracia, como a dizer "somos truculentos em qualquer lugar", ou é para avisar "cuidado, malandros, que estamos aqui só esperando vocês aprontarem"? Não sei, só sei que me sinto incomodado e ofendido com aquela arma na mão do policial sem nenhuma razão para que ele a segurasse.

E no fim, mesmo dando um rolê pelo centro, consigo anotar os tópicos para a crônica e chegar a tempo na academia.

São Paulo 30 de junho de 2012.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Ridículos

Comentário de um amigo à minha última crônica, "Moças no mercado ou balconistas", além de mais divertida do que a própria (sim, ela se pretendia divertidinha), me fez pensar um pouco mais do porquê do meu fracasso com Ruth, por exemplo – não era bem em Ruth, mas deixo a crônica sobre o "GFS" para uma próxima –, e foi um dos temas de um passeio-parlante que tive com uma amiga, hoje, que durou umas quatro horas (vinte quilômetros?). É certo que se se pensar que Ruth, a balconista, já figurou em mais de uma dúzia de textos não se pode falar em fracasso completo: me rendeu uma personagem para crônicas, ao menos. Em seu comentário, Alexandre fala da "bofetada do destino" pelo seu atrevimento em paquerar a atendente da livraria: ao se virar para apreciar uma vez mais o sorriso da moça – "uma dessas suas criaturas mágicas: doce, de sorriso sincero e alumiador, coisa tocante mesmo", segundo ele – meteu a fuça na quina de uma prateleira.

Apesar de ter aprendido a ser um pouco mais articulado com o tempo, não abandonei a timidez, ou melhor, não fui abandonado por ela, que me persegue como uma sombra – mesmo por onde não há luz. Para não chamar a atenção – apesar da minha altura e do meu jeitão de Pinky (do Pinky e Cérebro) não contribuírem muito –, para evitar alarmes e surpresas, tento não destoar do ambiente, mantenho involuntariamente minha cara de paisagem, e fujo de qualquer ridículo, qualquer embaraço. Depois lamento que não me percebam, e escrevo uma crônica do ridículo que consegui evitar.

Comentava minha amiga: o que foge da ordem, o ridículo, o cômico, é algo que não apenas chama a atenção, como pode ser algo que atraia – bofetadas do destino levaremos de qualquer forma. Pensei nas minhas "abordagens" a balconistas: sempre me restrinjo ao esperado de um cliente normal – inclusive com a receita na mão, para agilizar o atendimento! –, e deixo o ridículo para minhas crônicas, quando já não tem muita serventia que rir de si próprio. E como avisou minha amiga: evitar o ridículo é evitar também o atrevimento. Ok. Mas um tipo cafajeste tiraria de letra o ridículo e se garantiria no atrevimento; para um tipo mais do perfil "idiota" – que dispensa o convite de um guria linda pra comer um cachorro-quente depois da faculdade porque já jantou e deixa ela ir sozinha, por exemplo –, temo que me sobre apenas o ridículo, sem o atrevimento: eu vermelho pedindo desculpas por não sei o que e querendo sumir o quanto antes – sem olhar pra ver se a moça não estaria me dando bola.

Outra coisa que me chamou a atenção no comentário do Alexandre: ele trata do ridículo acontecido com uma leveza que muito se assemelha à do Francoy, de quem admito abertamente inspiração para minhas crônicas sobre Ruth – só não me inspirou mais do que a própria. Invejo essa leveza, ainda vejo minhas crônicas pesadas, e se tento aliviá-las, soam-me "querido diário". 

Enfim, a ver se no meu próximo encontro com Ruth – ou outra balconista –, não me permito alguma gafe, e que essa gafe me faça esquecer que eu pretendia escrever uma crônica.


São Paulo, 28 de junho de 2012.