Eu voltava apressado para casa, preocupado com a hora, se daria tempo
de pegar a academia ainda aberta, e antes disso, de anotar os tópicos
para esta crônica. Quase em casa, um homem com o andar ébrio e
caixa de papelão dobrada debaixo do braço provavelmente busca um
lugar para dormir sem ser importunado por algum segurança que não
quer a "calçada suja". A padaria está sendo fechada: mau
sinal. Passo por uma mocinha e seu cachorro de madame – agora toda
mocinha que passo me pergunto se é minha vizinha que
inadvertidamente (ou talvez em plena consciência, por que não?) se
troca de janela aberta. Passo por uma madame e seu cachorro em forma
de tamanduá. Cinco minutos antes, na av. Paulista, por muito pouco
não sou atropelado na faixa de pedestres por um skatista. Me eximo
de qualquer responsabilidade, por mais que naquele instante eu
estivesse pensando que o rock meio grudento que um artista de rua
tocava em sua guitarra, na saída do metrô Consolação, era uma boa
trilha sonora para um fim de noite frustrada, e que a mocinha bonita
que conversava próxima à entrada da estação seria um bom (e belo)
motivo para uma noite de frustração (poderia ser também motivo
para um ótimo fim de noite, mas fiquemos com o evento mais
plausível): o sinal estava verde para mim, que sou pedestre.
A rua Augusta estava movimentada, diferente dos dois dias anteriores,
surpreendentemente vazia – é certo que na quarta eu passara por
ela durante o jogo do Corinthians, aí não vale. Passo por um casal
de belas mulheres com quem havia cruzado na quarta – foi,
inclusive, motivo para a conversa com a amiga com quem me encontrara
aquele dia mudar de rumo, para sobre o que nos atrai em uma mulher (e
eu, nessa hora, volta e meia falando do meu esboço para o doutorado)
–, e preciso admitir: apesar de terem aparentemente a minha idade,
no máximo, mesmo estando de calça jeans e não tailleur, têm
aquele ar, aquele porte que desautoriza chamá-las de moças, jovens
ou gurias: são Mulheres. Por falar em Augusta e mulheres, um leve
gosto avinagrado me subiu à boca quando adentrei a rua, ao pensar em
possíveis reencontros: felizmente foi só com o referido casal.
Na Augusta, nada que chamasse muito a atenção, nada além do que
estou habituado a presenciar ali. No centrão, Boca-do-Lixo, sim,
algumas cenas extraordinárias (para mim). Um homem se aproxima de um
catador de latinhas, consideravelmente sujo: “quer trabalhar?”
O catador aceita, e então o homem grita para dentro de um sobrado
decadente “alguém aí quer trabalhar?”. Vários “eu”
apressados saem de lá. “Só tem vaga pra mais dois. Só mais
dois! É pra ajudar na mudança daquela mulher”, e aponta para
uma mulher na esquina, uma perua com seus móveis – talvez antigos
e pesados, para precisar de tanta gente? Pouco antes presencio uma
cena que esqueço que deve ser comum ali, pela própria condição de
marginalidade dupla da maioria que trabalha naquela região à noite
(dupla enquanto ser humano e enquanto profissional): uma travesti
cheira uma carreira oferecida por um potencial cliente. Não deixo de
ficar chocado com a cena – tão óbvia e eu nunca pensara nisso?
Descubro onde fica o teatro da Aliança Francesa. Acabei nessa região
porque havia virado na rua do Arouche, atraído por uma batucada que
parecia bizarramente uma manifestação – e era! Bandeiras do PSTU
e outras vermelhinhas, um boneco do Bolsonaro com mordaça, cartazes
pedindo a criminalização da homofobia. De início estranho, mas
logo noto que faz sentido: sexta-feira à noite, Arouche, ato contra
a homofobia: propício. Até a batucada, eu me perdia em meus
pensamentos, falava a mim mesmo que talvez fosse de bom tom não ir
além da av. São João nas minhas flanagens noturnas.
Andava pela av. Rio Branco e decido entrar uma perpendicular, para
inicar meu trajeto de retorno ao lar – a confiar na minha bússola
interna, e porque não queria andar muito. Estou no meio da quadra e
ouço, no outro lado da rua, o barulho de uma garrafa estourando.
Logo vejo uma pessoa saindo em perseguição daquela que atirou (ou
bateu, não vi) a garrafa nele. "Anda complicado morar aqui
nos últimos tempos", comenta um homem sentado sob uma
marquise. "Mas tem muito apartamento pra alugar?",
pergunta seu interlocutor. Faço, então, algo que não me autorizo
normalmente, salvo na Augusta e na Paulista: dou meia volta e retorno
por onde vim. E penso como se trata realmente de uma questão das
mais complexas, como lidar com o centro de São Paulo: o que fazer
com a população de rua? Essas pessoas têm direito à cidade tanto
quanto qualquer outra pessoa. Muitas preferem viver na rua, e não
querem morar em albergues cheio de regras, nem ter uma vida
pequeno-burguesa como jovens doutores em direito creem ser a vontade
de todos. Políticas higienistas, como têm sido praticadas pelos
governos municipal e estadual, além de atentarem contra a dignidade
desses cidadãos, não resolve o problema, no máximo o despacham
para algum outro lugar – e isso vem de longa data, vide os contos
de João Antônio. A dita esquerda também não sabe o que fazer, e
prefere crer que o pobre e o marginalizado são a reencarnação do
bom selvagem de Rousseau. Como garantir uma cidade tranqüila,
relativamente segura (para todos, em que não haja nem assaltos, nem
grupos de extermínio, nem pirados avançando contra você) sem
atentar contra os direitos individuais, sem ter todo pobre como
suspeito – ou pior, como um estorvo, quase um dejeto que não se
pode mandar logo pra uma vala.
E toda essa digressão porque ao
sair de uma apresentação de dança de rua na Galeria Olido, resolvo
não voltar pra casa direto, mas dar um rolê pelo centro. Ao lado da
Olido, uma base da Polícia Comunitária Móvel. Defronte a ela, um
policial segurando uma escopeta (não sou um entendido em armas, mas
era uma espingardona dessas truculentas): eles querem angariar apoio
da comunidade ostentando esse tipo de arma? Ainda mais num dia em que há um bando de jovens da periferia (não só pela apresentação de dança de rua como pelo som que está tocando no espaço de dança)? É para
mostrar democracia, como a dizer "somos truculentos em qualquer
lugar", ou é para avisar "cuidado, malandros, que estamos
aqui só esperando vocês aprontarem"? Não sei, só sei que me
sinto incomodado e ofendido com aquela arma na mão do policial sem
nenhuma razão para que ele a segurasse.
E no fim, mesmo dando um rolê pelo
centro, consigo anotar os tópicos para a crônica e chegar a tempo
na academia.
São Paulo 30 de junho de 2012.
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