quarta-feira, 29 de junho de 2016

Nós a um passo de nossa condenação [Diálogos com o teatro]

Qual a relação entre uma ditadura (dita) comunista e a nossa atual democracia (sic)? Para um respeitável cidadão de bem, sempre bem informado pelo William Bonner e o William Waack, que veste a camisa da seleção para bater panela contra o PT (tentando forjar desonestamente uma identidade com corrupção), nenhuma, é óbvio. Para este escriba, como ficou claro ao pôr a questão, a primeira relação entre ambas é o discurso farsesco que erigem sobre si. A Companhia Teatro da Dispersão, com a peça O espectador condenado à morte, de Matéi Visniec, dirigida por Thiago Ledier, me trouxe alguns elementos a mais nessa relação.
Não, o grupo não se propôs a fazer nenhuma releitura da obra do romeno à luz das sombras que tornam estes Trópicos sempre Tristes: simplesmente encenaram uma obra escrita em 1985, com uma ditadura de vinte anos como pano de fundo, e elementos do teatro do absurdo para fazer saltar o realidade tornada absurda - ou o absurdo tornado realidade. A enorme semelhança entre a peça e o cenário atual do Brasil não é obra dos atores, mas dos personagens da nossa história recente, Sérgio Moro, Gilmar Mendes, José Serra, Eduardo Cunha, Michel Temer, Aécio Neves, Fernando Henrique Cardoso, entre outros, cujos nomes já foram esquecidos, passados seus "fifteen minutes of shame", como certa feita cantou Marilyn Manson. No máximo, cenografia e figurino ajudam, muito sutilmente, a fazer a ligação.
O mote da peça é simples e contraditório: um crime será cometido e é preciso julgar o condenado. Não sabemos qual o crime, e isso pouco importa: estamos diante de um tribunal que precisa fazer valer a lei, ou pelo menos precisa demonstrar seu poder. Elege-se aleatoriamente um suspeito, logo acusado, portanto culpado - a retilínea lógica da justiça para ditaduras e seu asseclas. Inicia-se o julgamento com meias intenções de manter os ritos formais: o juiz proíbe que o promotor chame o suspeito-acusado-culpado de criminoso antes do veridicto. Soa justo. Ao mesmo tempo, inicia a sessão sem a presença do advogado de defesa. Deveria soar absurdo, mas se observarmos nosso entorno e não nossos pressupostos teóricos, novamente soa justo, ou melhor, soa a Justiça brasileira. Garante-se, de qualquer modo, um arremedo dos ritos formais para garantir a parecência de imparcialidade do julgamento e de presunção de inocência do réu-criminoso. Sabemos todos qual o objetivo (repare o substantivo no singular) do juiz, do promotor, e não muito depois, do defensor, apenas ficamos aguardando quando será dado o veridicto e a sentença - anunciados desde o início da peça.
Foto: Patrícia Mattos
São chamadas as testemunhas, para que os ritos sejam seguidos. São nove no total, mas já na segunda a fantasia de todos cai: promotor, escrivão, juiz, defensor, testemunhas - da justiça toda, marcada pelo rasgar literal do fardão do juiz -, todos vociferam contra o criminoso - cuja culpabilidade está gravada na testa, segundo o defensor -, desejando não apenas sua condenação, mas seu aniquilamento - muito afim à lógica totalitária que acalenta de stalinistas a fascistas, incluída nossa Grande Imprensa e seu rebanho paneleiro. O promotor reclama: todos acreditam que o espectador é o culpado, por que só o próprio que não?, enquanto o defensor roga ao criminoso, num cinismo digno de FHC, que confesse tudo em público e que com isso alivie o peso de sua consciência e satisfaça a justiça e a sociedade: todos sabem que é um criminoso, por que não confessar? Trinta anos antes da peça ser escrita, essa confissão seria chamada de "auto-crítica", trinta depois, de "delação premiada", o mecanismo por trás, contudo, segue o mesmo - e nada tem de democrático ou justo.
Breve intervalo entre o primeiro e o segundo ato. Nele, o escrivão convida o público a bisbilhotar toda a vida pregressa do espectador condenado à morte, coletada minuciosamente pela justiça (não havia conversas privadas, ao menos), e conclama que os demais espectadores saiam do anonimato, que legitimem o criminoso enquanto tal - e a encenação burlesca enquanto justiça. No segundo ato, já sem qualquer intenção de seriedade, tentativas das diversas personagens em justificar a ordem totalitária de adesão ao poder - que chega ao paroxismo de pôr em risco o próprio poder, se não devidamente resguardado por forças repressivas contra fiéis mais realistas que o rei.
Feliz na escolha do texto para o momento que vivemos e vivenciamos, com atuações e montagens convincentes - o que eu não sei dizer exatamente o que isso significa, numa peça que tem a burla como centro -, o ponto fraco ficou, na minha opinião, na construção do personagem do juiz.
Pelo programa ficamos sabemos que a peça foi escrita nos anos oitenta, no contexto da ditadura romena; a ambientação - sem o cuidado (e a necessidade) de parecer realista - remete aos anos sessenta e setenta do século XX, quando vivíamos, nós também, nossa (até agora) mais funesta ditadura; e o texto parece ter sido escrito no Brasil de 2015, 2016. Entretanto, o juiz acaba por fazer com que o petardo contra a situação político-institucional atual perca um pouco da sua força: franzino e desde o início decadente, em nenhum momento ele tem a arrogância que os juízes brasileiros se dão (profissionais do direito em geral, com excrescências excelências, meritíssimos de merda e doutores em porra em nenhuma, com o perdão do jargão chulo), na expectativa de que a distância de títulos seja sinônimo de respeitabilidade de um judiciário que se sabe caquético, e cuja atitude é louvada pela Grande Imprensa. Se se vislumbra a figura de um Coronel Mendes no juiz, se dá antes pelo ar de bufo (mais que bufão) que o ministro do STF naturalmente possui; falta, pelo menos no início, quando a peça ainda parece séria, a arrogância vestida de camicie nere (camisa negra) de um justiceiro Moro.
Ainda assim O espectador condenado à morte deixa no colo do público o aviso de uma bomba prestes a explodir: evidencia o conforto da proteção que o anonimato de massa nos oferece, e o inconformismo light que estamos dispostos a ter, via curtidas em redes sociais, para não perder esse conforto; nos coloca em xeque quanto à nossa passividade diante de arbitrariedades da justiça, que afronta direitos individuais básicos; deixa explícito que podemos ser o próximo a merecer o aniquilamento, considerados criminosos por capricho de uma corporação de mídia totalitária ou de juiz de província qualquer e por necessidade de sangue do poder e das massas manipuladas - criminosos por termos sentado num lugar infeliz, em que sequer a visão era privilegiada. Em um Estado que é democrático e de direito apenas enquanto farsa, estamos todos a um passo de sermos condenados à morte, morte simbólica ou via auto de resistência. Ou, se o suspeito-acusado-condenado não puder ser executado por qualquer motivo - como sua reputação internacional, por exemplo -, o juiz da peça deixa claro o que se pode fazer:
"Mas se não podemos matá-lo, podemos julgá-lo até a sua morte".
O espectador condenado à morte é espetáculo obrigatório para 2016 - antes que sejamos condenados à morte.

29 de junho de 2016.

PS1: O espectador condenado à morte estará em cartaz em julho e agosto, no Viga Espaço Cênico, em São Paulo, quartas e quintas, às 21h.
PS2: Involuntariamente, muito feliz também o local de estréia: a Funarte ocupada, com um #ForaTemer sobre o "ordem e progresso" golpista no folder.
PS3: Advogo a tese de que Temer é só o bobo da corte que encabeçou um golpe de Estado dado por ditadores pós-modernos, sem um rosto específico, ou com vários rostos, a mudar conforme o ano e a ocasião, mas com uma função bem específica na engrenagem estatal, livre de qualquer controle público e, mais ainda, distante do povo. Uma ditadura dessa casta que desde sempre é uma das principais donas do poder nestas terras, uma ditadura judiciária - por ora mancomunada com o PSDB, enquanto este atender a seus interesses principais.


quinta-feira, 23 de junho de 2016

Percursos transitórios, tempos percorridos [Diálogos com a dança] [saudades feitas de afetos]

"Que demora pra começar", reclama a mulher atrás de mim, que demora para perceber que o espetáculo Percursos Transitórios, com Zélia Monteiro, já havia começado. Talvez a espectadora não fosse acostumada à dança contemporânea; contudo, antes disso, penso que todos nós andamos com dificuldades para perceber o começo e o fim dos eventos, quando eles não se dão por alguma convenção bem arraigada ou por alguma descarga espetacular de choque. Isso implica em muitas vezes não percebermos sequer o evento. Temos pressa - para tudo. E parafraseando Caiero: o mundo não se fez para apressarmos nele (apressar é estar doente dos olhos). O fruir da arte, muitas vezes, exige o abandono dessa pressa - para que possamos nos irmanar do seu fluir. Percursos transitórios tem seu tempo, feito de sutilezas e paciências. É um tempo estranho, que não é lento, mas é vagaroso. Seu discurso também é tecido vagarosamente, por trás do tule transparente que torna a luz e seus movimentos visíveis - às vezes mais que a própria artista. Melhor: luz que permite que o espetáculo seja visto e que algumas vezes toma toda a visibilidade da cena, impedindo que se veja qualquer coisa além da própria luz: a mesma fonte que revela, re-vela. 
No fluir e no meu fruir da apresentação, havia já desistido de tentar estabelecer qualquer diálogo mais racional com a obra, quando ela transitou para outro registro, numa simples mudança de luz. Notei então que, a exemplo da minha colega de platéia, eu tinha pressa - "que demora para eu entender", eu poderia ter reclamado. Por sorte, há muito sei que uma obra, um espetáculo pode ser aproveitado mesmo que não se compreenda - ainda que isso possa implicar num empobrecimento com aquilo que tal obra carrega (minha relação com a música de concerto vai nessa linha). Nessa variância da luz, o corpo de Zélia ganhou outra textura, rugosidades da pele despontaram, contornos dos músculos se destacaram, tornaram visíveis os efeitos dos anos - e dos treinos. É então que noto o quanto o percurso ali apresentado fala não só de um trajeto como também do tempo, essa coisa que não cabe nos relógios e nos calendários, que corpos denunciam, mas não contam tudo. Na sala está uma professora da PUC - eu fazia uma disciplina dela como ouvinte, ano passado, quando tive que largar as aulas. Isso faz mais seis meses, e eu juro que foi semana passada. Me dou conta que os amigos de quem sinto falta de notícias estão há seis meses eles também esperando resposta às últimas mensagens que me enviaram. Está na sala também minha professora de dança - faz dois anos e meio que tenho aulas com ela, e não seis meses, como sinto. Faz sete meses que não sei mais para quem escrevo - desde que perdi meu pai. Por um ano e meio escrevi à espera de uma resposta impossível da minha melhor amiga. Isso é muito ou pouco tempo? Eu deveria dizer que muito, afinal, é o que aponta o calendário, é o que cobra a sociedade. Não é, entretanto, como sinto - apesar das recriminações que já sofri por ser tão lento e paquidérmico. No palco, Zélia segue na apresentação de seu percurso transitório, provisório, fugaz - feito de referências muitas em muitos anos como artista -, que ocupa dilatados cinqüenta minutos que passam rápidos em meio a gestos lentos. Fico a me perguntar como Zélia não sente o tempo de cada um desses trajetos - o da sua vida, o dessa obra, o dessa apresentação -, qual deles terá durado mais?

23 de junho de 2016