“O Brasil caminha para um colapso”, avisavam os especialistas semanas atrás. Seguimos a marcha como se fosse inexorável, não sei se por cega inércia ou se por néscia convicção de que era alarmismo paranóico, e o colapso veio - agora é ser testemunha ocular da tragédia, torcendo para não ser mais que isso. Repetiremos o Equador, com mortos jogados nas ruas, ou conseguiremos uma saída italiana, com caminhões frigoríficos a retirar dos hospitais corpos humanos como se saíssem do abatedouro? Um amigo que reside no Canadá me manda uma foto de três anos atrás e pergunta se está tudo bem. Pergunta errada, ainda mais depois de ver a foto de um outro tempo, quando a necropolítica não tomara a sociedade brasileira como um todo. Vou bem no que posso estar, respondo, sem saber até onde pode-se estar bem com o que vivemos e o que nos espera para os próximos dias (quarta feira percorrerei a periferia sul de São Paulo, a trabalho, isso me deixa mais apreensivo). Meu irmão me envia uma foto do que encontraram no porão da casa da minha mãe: um gambá a assaltar a ração dos gatos. Lembro de gambá aparecer no quintal de casa faz mais de vinte anos: não tinha uma perna. O prendemos numa caixa de sapatos e o levamos, eu e meu pai, para próximo da zona rural e longe da Tandi, nossa cachorra, que por sorte não conseguiu pegá-lo antes de nós. Faz mais de um ano que não encontro pessoalmente com minha mãe, uma angústia me bate. Quando será a vez dela ser vacinada? Ainda valerá para algo a vacina? Pela segunda vez na vida me arrependo não saber dirigir: nesse um ano poderia ter alugado um carro e ido visitá-la, como meu irmão tem feito (meu outro arrependimento por não ter carteira era quando pegava carona na faculdade com colegas bêbados, sendo eu o único sóbrio). Dormi com pouca coberta, acordei com dor de garganta; faço as contas: não, saí há menos de quatro dias, logo não tem como ser manifestação de sintoma de covid. A vida na sua permanência tênue, a saudade batendo forte, a distância. É sábado à noite, eu estou em casa, na rede, jogando bingo no celular (quando deveria estar assistindo às aulas da faculdade). No som, não sei porquê, coloquei músicas que escutava quando adolescente (e ainda ouço): Metallica, Oasis, Pato Fu, Sheryl Crow, Gonzagão, Toquinho e Vinícius. Vinte e cinco anos atrás, eu estaria em casa, no computador, entrando em sala de bate papo do mIrc. Hay dias que no sé lo que me pasa, eu abro meu Neruda e apago o sol. Quinze anos atrás, estaria em casa, lendo qualquer coisa, talvez escrevendo, talvez jogando algo - ouvindo Radiohead, Mogwai, Mombojó ou Goldfrapp. Come on rain down on me, from a great heigh. O que me pega não é estar em casa num sábado à noite, é a condição que me faz estar aqui. Covid lá fora, aqui dentro ainda a remoer o fim de relacionamento: a sala vazia de móveis, apta para dançar, me lembra que falta meu par dos embalos das madrugadas de 2020. Amigos me perguntaram do meu sumiço, expliquei: é meu processo de lidar com tudo isto. E tenho dificuldade, não com o fim do relacionamento, que isso a experiência nos ensina a não superdimensionar, a dificuldade é a saudade, a distância forçada dos amigos, da minha casa de Pato, o não poder flanar despreocupadamente pela cidade para desanuviar pensamentos e sentimentos - quem sabe encontrar al diablo mal parado en la esquina de mi barrio, ahí donde dobla el viento y se cruzan los atajos. Dez anos atrás eu estaria no “QGinho” da Misson, ouvindo Kiss FM, em companhia do Marcos e do Djalma - em conversas sobre crises existenciais e piadas ruins, ela insistindo que eu lembro o Sheldon Cooper enquanto toca Teatro dos Vampiros: então os meus amigos estavam procurando emprego, enquanto nestes dias tão estranhos fica poeira se escondendo pelos cantos, as perdas se acumulando na memória (eu ainda custo a acreditar que César se foi). O rádio segue tocando as músicas de antigamente: canções do exílio - eu que por quatro anos recitei Gonçalves Dias para ganhar nota em português, com a irmã Maria José (e não entendia esse José se ela era mulher). Na playlist faltaram La Renga, Molotov e os rocks en castellano para completar minha trilha sonora adolescente. Faltaram os rocks bielorrussos em som alto que meu pai ouvia. Algumas vezes nesse último ano mandei mensagens acusando saudade a vários amigos. Responderam que também sentem. E a conversa encerra sem avançar muito, nessa saudade abafada que não consegue pôr em dias as não novidades dos dias sempre iguais nem trocar obviedades sobre o horror homeopático que nos corrói feito lepra confundida com uma psoríase. Mesmo a amiga que vinha encontrando com alguma frequência - cada duas semanas -, também ela está em seus momentos de se fechar, e há dois meses não fomos além de algumas poucas linhas. Não é falta do que dizer: talvez seja o cansaço, o fracasso, mesmo quando temos novidades. As notícias da minha mãe sobre o gambá e os gatos da sua casa fazem eu me sentir no exílio, um anti London London. Guile e Lilbertad permitem não me sentir tão sozinho. Lá fora faz uma noite bonita, famílias choram em velórios rápidos, pessoas tomadas pela loucura coletiva recusam toda dor que não seja a das suas alucinações como mimimi, o presidente debocha - não é coveiro. Noto que envelheci rapidamente estes últimos dias, tenho medo, sinto saudades, e tudo o que me resta é a sensação de impotência.
14 de março de 2021
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