sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Nem cara metade, nem inteiro: a incompletude.

Na tentativa de desfazer as armadilhas do amor romântico é senso comum em postagens "good vibes" da internet - e mesmo materiais mais sérios - criticar a ideia da cara metade argumentando que seríamos inteiros, completos, não precisaríamos de ninguém para nos completar. 

A intenção pode até ser boa - diminuir essa dependência emocional de uma única pessoa. Contudo a tentativa é tão ruim quanto o original, a não ser que entendamos por sermos inteiros sê-lo na nossa incompletude. E se somos inteiros na incompletude, o clichê da metade da laranja volta a ser plenamente válido nessa argumentação. 

O que subjaz a tal raciocínio da inteireza do sujeito é a lógica ultraliberal dos tempos atuais (um dos combustíveis para o neofascismo que assola o mundo), de que um ser humano seria auto-suficiente, (quase que) plenamente independente dos demais, que "adicionaríamos" como complemento (ou  mesmo suplemento) em nossas vidas, mas longe de serem essenciais. 

A ideia de cara metade, fruto de uma leitura um tanto literal d’O Banquete reatualizada permanentemente pela indústria cultural, sem dúvida é bastante precária em várias dimensões. Em meio a sete bilhões de pessoas que habitam este rochedo que gira ao redor de uma pequena estrela haveria aquela única que nos completaria. Mesmo que insiramos o tempo nessa equação, acreditar que uma única pessoa naquele momento seria capaz de nos completar é também uma responsabilidade e tanto. Não só isso, acreditar que uma única coisa (pessoa, objeto, sensação, experiência, crença) seja capaz de nos completar, independente de todo resto é diminuir o humano a algo muito pequeno. 

Acreditar na completude do ser humano (no sentido de que nada lhe falta) é pobre. E aqui, a antítese pós-moderna de internet entra na mesma lógica que pretensamente critica: o ser humano completo sozinho é só uma versão ainda mais diminuída daquele que precisa da sua cara-metade para ser completo. Quem vai querer se relacionar se é inteiro, se é completo? Isso é o nirvana, e no nirvana não há desejo, nem interação - e não me parece que alguém que alcançou o nirvana estará buscando visualizações no youtube ou likes nas redes sociais com auto-ajuda rasteira (mesmo que embasado em títulos de doutor). Há algo errado nessa pretensa inteireza. E, como diz Álvaro de Campos, que reiteradamente cito em meus textos:

“E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...”

O ponto que escapa a essa crítica ao “cara-metadismo” - talvez fruto de uma crença iluminista? - é que somos incompletos, somos seres em permanente falta - para si e para os outros. E é essa falta que nos mobiliza. Como todos os seres vivos, somos dependentes do nosso entorno (daí a questão das mudanças climáticas), dependentes dos outros seres vivos, nos fazemos e refazemos permanentemente em nossas interações (e vale lembrar que em várias cosmologias indígenas a ideia de ser vivo é ampliada para muito além do nosso olhar viciado pela modernidade - e que o misticismo de classe média branca não rompe com essa lógica). Como seres inseridos no simbólico, dotados de uma “segunda natureza”, nossa dependência dos outros e das nossas interações é elevada à enésima potência - Robinson Crusoé, mesmo isolado numa ilha deserta, não consegue deixar de seguir os ritos da sociedade, como uma âncora mínima para lembrar da própria humanidade que o constitui (enquanto homem branco europeu). Quando não reconhecemos nossa incompletude, nossa falta, alguém vai mobilizá-las por nós - daí, por exemplo, a compulsão pelo consumo, como forma de dourar a pobreza a que aceitamos nos reduzir ao aderir à ideia de que seríamos inteiros. 

Há quem leve essa pretensa crítica (com a consequente defesa da autonomia absoluta do sujeito) a uma questão mais ampla, para além do amor romântico. Dia desses vi uma postagem, um desenho de quatro homens e uma mulher de quatro, na coleira, levados por bebida, cigarro, celular, jogos e remédios; na legenda: “Você é escravo de tudo aquilo que não consegue abrir mão”. O moralismo aqui explícito não é, no fundo, diferente de quem se opõe ao cara-metadismo com a ideia de completude. Somos escravos das outras pessoas, do amor, do sexo, do trabalho dos outros (ou então a sociedade colapsa), do dinheiro, da natureza, da Bíblia, da água, dos escravos que nos servem, dos senhores que servimos sem ver. Se algum grau de dependência ou necessidade é escravidão, não temos nenhuma possibilidade de fuga.

E é curioso como nessa busca iniciada no Iluminismo por superar deus, não tenhamos sido capazes de criticar um dos pontos principais do que fundamenta as religiões judaico-cristãs: a existência do completo, do que não falta. Nós, sujeitos da modernidade, incorporamos da ideia de deus (seja na sua versão laica, seja na religiosa) não no que ele teria de libertador, de potência criativa (que pressupõe alguma falta, algum desejo, ou não teria razão da criação), mas na prepotência castradora de quem saberia tudo - e vale recordar que o próprio deus não sabia bem o que fazia ao criar ao mundo, fazendo tudo aos poucos e sempre precisando se certificar de que o que acabara de criar era bom. 

O amor posto como um dado - e não como algo construído na relação, a cada relação, a cada dia -, o sujeito como completo e que prescinde dos outros. O que está em jogo é nossa relação com o mundo, é nosso envolvimento político com pessoas próximas e distantes: vai muito além de algo pessoal e menor.

14 de outubro 20222

Sem comentários: