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terça-feira, 7 de agosto de 2018

Eleições 2018: a escolha é entre a possibilidade democrática e a democracia de fachada.

O filósofo político John Rawls, no início da década de 1970, dizia que em um sistema democrático liberal bem ajustado era possível tolerar posições extremistas, pois pela própria dinâmica do sistema elas se suavizariam e tenderiam para o centro. Não apenas por obra do golpe, mas desde sempre, com nossa iniquidade pornográfica, o Brasil estaria longe de ser qualificado como bem ajustado pela teoria da justiça rawlsiana - daí podermos questionar se alguém como Bolsonaro e Malafaia teriam direito a expressar suas posições com toda a liberdade que o fazem. Contudo, se se abandonar veleidades ideais e trabalhar a partir de questão “ajustado para quem?” podemos ver, sim, um sistema bem ajustado - para os interesses dos de sempre, das elites -, com a peculiaridade de que as posições extremistas podem ser toleradas não porque tenderiam para o centro, mas porque o centro se volatiza de modo a abarcar os extremos (ao menos certo extremo) dentro de uma pretensa normalidade. Se a política seria a possibilidade de introjetar antagonismos sociais de modo a diminuir a violência bruta, aqui ela serve como caixa de ressonância para estimular ainda mais a violência crua das ruas - a liberdade de expressão sem limites e sem conseqüências serve como estímulo a mais para violências reais: abuso de autoridade, genocídio negro, feminicídio, e crimes de ódio diversos. E nem penso no Bolsomico, mas naquele ex-governador paulista, de alcunha Santo, que autoriza e estimula seus subordinados a cometerem assassinatos extra-legais, portanto criminosos.
É um sistema funcional: a normalização dos extremos, em especial da extrema-direita - via Veja, Globo, Folha, Bolsonaro e afins -, faz com que a política institucional antes de veículo para mudanças sociais que favoreçam a maioria, seja um freio (quando não uma marcha à ré) para buscas de modos de convivência mais pacíficos em prol de uma pretensa "voz das ruas" que justifica a manutenção dos privilégios baseado no escravismo secular do país - o judiciário assumir esse discurso é apenas a assunção de que o reformismo light e republicano do petismo foi demais para o país da Casa Grande e seus patos-sabujos. E quando o judiciário, autoinstituído poder moderador (versão pusilânime e antinacionalista da Guarda Revolucionária do Irã), se põe como serviçal da direita, em aberta defesa não da propriedade, mas dos privilégios (que ele também desfruta, por ser parte da elite), e se arrola amiúde o papel de civilizador destes Tristes Trópicos, crer na justeza das eleições e no respeito ao desejo popular é uma aposta de risco: o que vai tornar as eleições de 2018 legítimas para o judiciário - e a elite que nele se apega como em 1970 se apegava aos militares - é o povo "votar certo" (como dito por muitos anônimos seguidores do pato quando na derrubada de Dilma), daí a necessidade de censurar candidaturas e ideias.
O fato das eleições (ao que tudo indica) serem realizadas normalmente, em outubro, nestes tempos anormais não é por qualquer apreço à lei e à democracia por parte de nossas elites, mas se deve ao isolamento internacional que o golpe trouxe, ao medo de represálias e ao complexo de vira-latas de nossa classe média made in Miami: Trump, curiosamente, acabou por se tornar o grande fiador da consulta popular deste ano, ao negar a entrada do Brasil na OCDE por julgar que Temer não tinha legitimidade para uma decisão dessas; ao agir assim, jogou um balde de água fria em algum golpe branco do tipo semipresidencialismo ou adiamento das eleições por conta de uma pretensa violência fora do controle que justificasse intervenção militar em outras áreas do território nacional. O golpe no Brasil sofreu não apenas com a perda dos aliados democratas como ainda teve que se ver com um presidente ressentido, e isso complicou muito o fechamento do regime em uma democracia anódina, apenas para cumprir porcamente os ritos formais (como no caso do impeachment ou da condenação de Lula).
A estratégia de Lula e do PT de comprar a briga até o final com o establishment foi acertadíssima - isso todos sabemos, inclusive é dito (pelo não-dito) o tempo todo pela Grande Imprensa. É uma aposta de alto risco para o país, porém a única possível, visto que outra estratégia seria aceitar o golpe como normal - que não por ser corriqueiro deve ser tido por aceitável. O custo interno e externo para os golpistas é alto, e o cálculo que deve estar sendo feito, nas reuniões com Coronel Mendes e tucanos de alta plumagem, é em que momento tirar Lula da disputa traria menos "externalidade negativas": cassar sua candidatura a tempo de garantir a participação do PT ou não? A ausência do PT na urna pode ser usada como denúncia internacional, além de ser evidenciado pelo número de nulos ou abstenções - seria de se esperar menos de 50% de votos válidos, o que iria ser usado como fator a mais de propaganda petista. Garantir o PT na urna, com Haddad, tem como risco a vitória petista e o desmonte do "projeto" golpista - nesse caso, apelar para fraude é uma alternativa, e não nos iludamos, o Brasil é uma republiqueta bananeira, onde isso cabe sem muitos constrangimentos.
Essa discussão toda, que tem norteado esquerda, direita e imprensa, diz respeito ao executivo nacional. Como é de praxe na esquerda nacional, as eleições legislativas foram relegadas a irrelevantes, praticamente ignoradas - faz um ou dois meses que vejo alguma mobilização de pré-candidatos, enquanto a direita há dois anos prepara e fomenta seus jovens empreendedores políticos. Essa é a arma reserva que o golpe possui: ainda que autorizem o PT a assumir o Planalto em 2019, nada garante que o partido conseguirá governar - um novo Cunha ou mesmo um novo Botafogo como presidente da Câmara garantem a ingovernabilidade por quatro anos. 
O que temos para este ano, portanto, não é uma eleição onde está em jogo a escolha de governantes e projetos de país, é uma eleição onde se deve escolher por forçar em direção a um regime democrático legítimo (ainda que limitado e enfraquecido) ou uma pseudodemocracia de fachada, onde só vale "voto certo", tutelada por um judiciário temeroso da Grande Mídia, compactuada com interesses externos e antinacionais.

07 de agosto de 2018


sábado, 28 de abril de 2018

Quando um amigo passa o limite e assume ser fascista

Nunca havia feito isso antes - excluir pessoas do meu Fakebook por motivos políticos. Sou alguém que acredita - insiste em acreditar - no diálogo, no bom uso da razão. Não, não acho que sou o dono da razão, mas se não sei o que é o certo - sequer acredito em uma certeza única -, não hesito em ver muitas posições como claramente equivocadas - o fascismo e a desumanização do outro são algumas delas. Enquanto muitos já excluíam de seu Fakebook batedores de panelas nos inícios do golpe, eu via em meus amigos patos não má-fé, mas limitações de percepção, crítica e cognição, visto estarem demais imersos na linguagem espetacular, sob bombardeio intenso de uma mídia goebbelsiana: era difícil dialogar, mas eu  cria haver possibilidade, assim que surgisse uma brecha - poderia chamá-los para um uso razoável da razão.
Quem busca a razão para justificar injustiça e arbítrio mostra não fazer bom uso da razão. Quem comemora a desumanização do outro atesta sua incapacidade para a vida em sociedade. Não é uma situação definitiva - mas é limite, enquanto não for superada.
A condenação de Lula, faz vinte dias, foi a consagração do fascismo nestes Tristes Trópicos: a inversão do ônus da prova, a falsificação de provas, leis e ritos formais alterados conforme interesses pessoais de acusadores e juiz-inquisidor. Isso é julgamento nazifascista, stalinista - justiça é só um nome pomposo para a institucionalização do arbítrio dos mesquinhos. É o estado de exceção que vale para pobres pretos e periféricos democratizado a quem não lambe os pés dos poderosos - ainda que não os afronte. Alguém que acompanhou, mesmo que a distância, toda essa farsa nazifascista sul-brasileira, não tem como justificar o arbítrio ocorrido.  Não por acaso, muitos dos amigos que esfuziantemente bateram panelas estão silentes, quando não se dizem desiludidos com todas as instituições - executivo, legislativo e judiciário: notaram que até dentro de seu preconceito há um limite para o ódio. Ainda que tarde, perceberam que foram enganados, feitos de patos, ao endossar o coro dos manipulados pela mídia - agora calam, antes que se vejam novamente no ridículo de achar que pensam por conta própria enquanto repetem bordões vindos de cima. É a brecha para chamá-los à crítica, antes que a memória curta os induza novamente a agir como massa de manobra.
Comemorar uma prisão de um senhor de setenta anos (pois é, o vigor e a energia de Lula não raro faz com que esqueçamos que ele não tem quarenta, cinquenta anos) é gozar com a perversão institucionalizada - assim como os que gozaram com Maluf preso (agora que não tem poder algum). Comemorar uma prisão é uma aberração que a sociedade brasileira naturalizou, mesmo em suas fileiras progressistas: numa sociedade que já adentrou a modernidade, a prisão de alguém pode ser um alívio, nunca uma alegria. Preso deveria estar quem apresenta real perigo à sociedade - como quem fala em "escolher um que a gente mata depois" ou que é capaz de comprar agentes públicos que o investigam, por exemplo -, e não qualquer um, preso por um desejo de vingança que beira os primórdios da socialização humana - degenerado por todo o aparato tecnológico, que permite mil outras alternativas de reparação de danos e reintegração de desviantes (nem estou aqui questionando quem impõe o que é desvio o que é normal), assim como formas mais cruéis de tortura.
Quando vi em minha linha do tempo pessoas comemorando a prisão de Lula, ou tentando racionalizar uma justificativa para seu ódio tecnicamente equipado - ainda chamando os que bramem contra a injustiça como ressentidos -, me dei conta que haviam ali atravessado a linha da convivência humana, e adentravam decidida e declaradamente no fascismo: não vislumbro possibilidade de diálogo com quem não é capaz de identificar no outro um humano, um igual. E não há mais justificativa para manter sua posição - salvo severas limitações cognitivas, o que não é o caso - que não o prazer com a dor alheia, o desejo de aniquilação de tudo o que lhe perturba a pretensa harmonia de sua vida estreita e pusilânime. Não são ignorantes, não são burros, não são ingênuos: são pessoas de mau caráter, mesmo. Fascistas. Assassinos esperando sua oportunidade de serem o próximo a despachar o inimigo no trem para Auschwitz. Não por acaso hoje, dia 28, entro para ver se não fui precipitado em meu julgamento e vejo essas pessoas indignadas com cercas derrubadas pelo MST, exigindo justiça, e fazendo silêncio com os atentados contra o acampamento Marisa Letícia - se a Globo permitir, logo lançam um movimento "white fences matters". Confirmo que minha decisão foi correta: quem se regozija com a injustiça e (pretensa) humilhação de uma pessoa é capaz de sentir o mesmo prazer com qualquer outra - desde que não seja ela própria ou alguém muito próximo. Inclusive, não duvido que quanto maior a dor, maior o prazer - por que não, então, a morte, lenta, quem sabe sob tortura? Dispenso "amigos" que irão comemorar eventual condenação minha para a câmara de gás - incapaz que serei de provar minha inocência diante das convicções de meus algozes.

28 de abril de 2018

PS: já há muito tempo, por ter tido contato mais próximo, tomei decisão de romper com familiares nazifascistas - sabia que ali as possibilidades de bom uso da razão eram reduzidas. Acho que família não é justificativa para aceitar esse tipo de pensamento e ação (falo também em ação visto que um primo meu já integrou (não sei se ainda integra) gangues neonazistas em Curitiba). Mais curioso que esses parentes são os que mais falam em boas energias, amor: são professores de yoga, psicólogos exotéricos - tudo isso para no fim do dia achar que há pessoas e há não-pessoas, a despeito de serem todos homo sapiens.

quinta-feira, 29 de março de 2018

Só sobreviverá quem não reagir? Alckmin e os próximos passos do golpe

Ouso dizer que Alckmin é um dos principais personagens a ser observado para entender os caminhos que o golpe desenha para o futuro - para além dos que estão na ribalta. Sua declaração inicial sobre o atentado ao ex-presidente Lula, durante a caravana no Paraná, não parece ter sido um mero "escorregão", como classificaram alguns jornalistas. Teria sido se as eleições de 2018 fossem correr em condições normais - livres com tentativas de golpes brancos. Não é o caso. Por isso a fala de Alckmin pode sinalizar um cálculo político além do eleitoral.
Alckmin, é evidente, é o nome do establishment - econômico, midiático, judiciário-policial, político. Reparem que falo "nome" e não "candidato": ainda que tecnicamente lhe caiba a condição de candidato, de alguém que almeja um cargo, falar em candidatura daria a falsa impressão de normalidade democrática, com eleições livres e disputa aberta entre concorrentes. Ele é o nome porque já foi escolhido para assumir o Planalto em 2019, falta apenas achar um jeito de dar um verniz legal a essa escolha das elites.
Em novembro de 2017, quando Alckmin mostrou tirou do páreo Dória Jr, ficou clara a estratégia para dar legitimidade ao escolhido pelos donos dos poderes, ao emergir como o moderado, diante dos extremistas Bolsonaro e Lula (?!). Houve até aproximação desse político santo com a esquerda (?!) do seu partido - sinal a ser interpretado como altamente positivo, mesmo sendo evidente toda sua hipocrisia: nestes tempos em que o fascismo avança e esquerda se torna não apenas palavrão como condição suficiente para violência "legítima" contra o outro, fazer o papel de político aberto a dialogar e ouvir todos os lados é um exemplo de avanço civilizatório.
Mas, ao que tudo indica, esse avanço civilizatório é dispensável para os rumos que se pretende impôr ao país, e Alckmin pôde dar vazão a uma persona mais autêntica, ao dizer os tiros de ruralistas-fascistas contra a caravana de Lula eram a colheita daquilo que o líder popular plantara. Alguém que não tem apreço pela vida de uma pessoa não precisa de esforço para não ter apreço pela vida de mais outra. Alckmin, redundante dizer, nunca demonstrou maior respeito pela democracia (fora dos pleitos) e pelos direitos humanos, ao legitimar assassinatos extra-judiciais, por parte de seus subordinados, de pessoas inocentes (lembrem-se que num Estado de Direito, até que se prove a culpa, a pessoa é inocente), desde que fossem pretos pobres periféricos. Dizer que Lula colhera o que plantou foi apenas uma nova apresentação para seu "quem não reagiu está vivo", ensaiado dois dias antes pela "jornalista" Eliana Cantanhede, quando esta expressou sua preocupação com a caravana estar reagindo aos ataques sofridos - ataques legítimos, pelo que ficava claro no não-dito da frase. Sobrou por parte de outros políticos, expressar o pathos democrático surgido do golpe desde Curitiba: quem provoca pode apanhar e levar tiro - e por provocação pode-se entender querer fazer uso do direito constitucional de ir e vir por vias públicas de acordo com as leis de trânsito.
Contudo, não creio ser apenas o desabrochar da crisálida tucana, há ali cálculo político. A ida e vinda, de se desdizer no dia seguinte, não deixa de ser majoritariamente positiva para o bom moço da Opus Dei. Dois cenários justificariam a frase de Alckmin - e seu recuo.
O primeiro, mais positivo, vamos dizer assim, o governador paulista faz um cálculo visando as eleições previstas de outubro: sem Lula no páreo e ainda sem força para encostar em Bolsonaro (supondo que este também não será impedido de concorrer, possibilidade factível para dar verniz de imparcialidade ao judiciário), sua frase mostra o abandono do corte de político de centro para um mais à direita, imaginando que a disputa seria com Bolsonaro - se não pela vitória, por uma vaga no segundo turno. Seu recuo posterior pode ser reinterpretado na temporada eleitoral como um ceder ao "patrulhamento ideológico" das esquerdas - num segundo turno contra um nome progressista. Ou pode ser usado - se for para buscar votos na esquerda - como um mero lapso, e melhor votar nele que em Bolsonaro.
O outro cálculo que o governador pode estar fazendo seria o de agradar não o eleitorado geral, mas de um possível colégio eleitoral. É certo que não há nada na lei que fale em eleições indiretas para presidente, entretanto tampouco há o crime de não possuir um imóvel, e isso não impediu a condenação de Lula por não ter adquirido um imóvel que um juiz e uma emissora de tevê queriam que fosse dele.
A frase de Alckmin tanto contribui para a construção da narrativa da prisão de Lula - necessária até para a segurança do ex-presidente -, como o gabarita para uma eleição via congresso ou senado - que se não for o atual, será tão ou mais conservador, ao que tudo indica -, e o legitima perante as forças repressivas que detém o poder de fato no país (judiciário, polícia, militares). Em suma e em conclusão: o "quem não reagiu está vivo" deve ser a palavra de ordem dos golpistas, com o ponto que quem define o que é reação são os reacionários - como reportagem sobre a caravana de Lula no Rio Grande do Sul, quem foi armado intimidar partidários do ex-presidente foram policiais da brigada militar [http://bit.ly/2Ijhxha], se um destes tivesse reagido, teria pedido... como pediu a democracia, ao reagir contra o 1% dando voz à população, reagiu: foi alvejada, e agora luta para não morrer. Bem feito.

29 de março de 2018




terça-feira, 20 de março de 2018

Escuta "policial" e reação estereotipada - um exemplo prático

Eu havia terminado meu texto anterior, "O que conseguimos escutar?", fechara o LibreOffice para deixar o texto decantar um pouco (João Cabral de Melo Neto dizia que para um poema deixava meses ele na gaveta, antes de retomá-lo; como escrevo crônicas, se muito deixo um dia, salvo quando esqueço), e ao entrar no Fakebook me deparo com uma postagem do professor Gilberto Maringoni muito próxima do que havia dito, apenas em tom altamente polemista. A começar que ao invés de pegar um tema secundário - greve dos Correios -, Maringoni foi usar justo o tema candente da semana - a execução da ativista e política Marielle Franco, do PSOL. A balbúrdia foi tanta que ele preferiu apagar seu comentário - por conta disso, não o reproduzo aqui, mas comento assim mesmo.
Na sua provocação, Maringoni leva ao paroxismo as reivindicações de primazia do discurso identitário, vinculando diversos assassinatos políticos da ditadura civil-militar de 64 e da democracia não à oposição ao regime ou aos interesses econômicos poderosos, mas pela questão de identidade - por ser negro, mulher, nordestino, mulher. Por fim, diz que não sabe porque outros haviam sido mortos, se eram do grupo opressor per se - homens, brancos, heterossexuais. 
As reações, desnecessário dizer, foram imediatas e majoritariamente raivosas - poucos questionavam o porquê daquela provocação ou se aquele seria um bom momento, além dos que apoiaram. E pode ser mesmo que o momento para tal provocação tenha sido infeliz, como de algum modo admitiu depois Maringoni: o ar sócio-político atual está mais que carregado, está envenenando - pelo Lula dirão os globoletes e seguidores patos, pelo fascismo estimulado por Globo e pato, dirão os minimamente informados -, com ânimos à flor da pele, o que ressalta ações reflexas ao invés de reflexivas. 
Ao começar a ler a postagem, eu mesmo achei muito estranha, estaria ele querendo dizer realmente aquilo? Ao fim, ficava evidente que não. Quer dizer, evidente após um pouco de reflexão - mas a internet é terra da reação imediata, e isso não orna com reflexão. Maringoni é do PSOL, não é um ex-comunista convertido (como Palocci, Jungman, Freire), não é do PSDB, MBL ou mesmo um obscuro dono de casa desempregado que entre um curso de iluminação e um de marcenaria, enquanto espera ser chamado em concurso, escreve crônicas eventualmente republicadas no Nassif On Line. Uma postagem como aquela com certeza teria algo por trás: ou ele sofrera uma pancada na cabeça, ou tivera a senha roubada, ou dizia muito além do que estava escrito. A postagem vinha sem maiores trabalhos argumentativos, o que já apontava o tom provocativo - pro vocar aquilo que está naturalizado. Análise de contexto, de trajetória do autor, de jogos de linguagem? Boa parte das reações foram como se se tratasse de Reinaldo Azevedo; e as respostas dadas pareciam ser robôs repetindo frases feitas, com pequenas variações: racista, machista, misógino. Isso apesar de não haver tom depreciativo às mulheres ou negros, ele apenas explicitava o que subjaz em certos discursos do ativismo identitário, que faz da trajetória formativa - sem dúvida importantíssima, vital no trajeto de militantes -, causa e consequência, início meio e fim de toda ação e reivindicação política, negando o contexto mais amplo em que se inserem, ou seja, negando o Estado de exceção (declarado ou por omissão) a serviço dominação capitalista, garantidor dos privilégios das elites predatórias do país. Marielle Franco não foi morta em emboscada por ser mulher negra periférica: negros, mulheres, periféricos, homossexuais e outras minorias são mortos aos borbotões todos os dias, sem maior alarde e sem maiores consequências que estatísticas. Marielle, mulher negra e periférica, foi morta por ser ativista contra um sistema no qual se insere o assassinato em série de negros, mulheres, periféricos, etc - teria sido morta mesmo se fosse homem branco.
Talvez realmente o momento de tal provocação tenha sido inoportuno; contudo a reação apenas evidencia aquilo que venho desde muito alertando: a escuta policial para quem está do lado, em busca do infiltrado ou de quem rompe com a pretensa pureza e perfeita harmonia (do movimento ou da sociedade); a negação do pensamento, da reflexão e da crítica; a divisão do mundo entre os do bem e os do mal (ou os do lado certo da história e os do lado errado da história), sem nuances, sem contexto, sem história; a separação bem delimitada e em clara verve de guerra entre aliados e inimigos (que não merecem a condição de humanos, ou seja, não merecem direitos, entre eles o de expressão), não é privilégio de fascistas ou dos que se deixam encantar pelo seu discurso simplista. As esquerdas e as forças progressistas e democráticas precisam urgentemente reagir e desbaratar essa forma de pensar, ou logo nossa escolha será entre mandar aqueles que escolhemos taxar como "bandidos" para o paredão ou para a câmara de gás.

20 de março de 2018.


PS: não que o combo 60 mil assassinatos/ano+polícia MILITAR+narcoestado+prisões brasileiras não possa ser considerado uma terceira via entre o paredão e a câmara de gás, ainda que em doses homeopáticas (não para quem sofre diretamente com toda essa violência, é certo) e sem enunciar claramente do que se trata.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

O gado que aplaude o chicote

Durante a ditadura civil-militar adotou-se a cenoura ideológica do "Brasil, país do futuro". Para o grosso da população, o Brasil vivia do futuro (e não para o futuro): o interregno ditatorial logo daria lugar a uma democracia das pessoas de bem, o bolo cresceria para logo ser dividido (Delfim Netto afirma nunca ter dito isso, o que parece ser verdade: ao que tudo indica, nunca passou pela sua cabeça a necessidade de dividir o bolo com a rafuagem, vide suas defesas das ações do governo golpista atual), em breve o Brasil se tornaria uma potência mundial; um amanhã radiante, para compensar o hoje funesto e mórbido ou, como (não) cantava Raul Seixas em "Como vovó já dizia" (censurada): "Quem não tem presente se conforma com o futuro.
Com a produção da memória (e do esquecimento) nas mãos do status quo (do espetáculo, diria Debord), foi preciso apenas uma geração para que a ditadura civil-militar não fosse mais que uma historieta distante, sem maiores implicações na vida, e o campo estivesse pronto para a semeadura de uma nova ditadura (desta feita, ao que tudo indica, encabeçada por juízes e procuradores, não mais por militares), a avançar brandamente como um zepelim sob o céu azul (seria Lula nossa Geni?).
Novamente tolhidos do presente, nos conformamos com o futuro. Contudo, ao contrário de 1970, a solidariedade social foi dinamitada por um individualismo cego e suicida, e o futuro que se sonha a partir dos escombros que habitamos é um futuro individual - a coletividade pode servir de alicerce para a "vitória" do indivíduo, não pode crescer junto (como atestam o ódio ao PT e aos programas sociais de minoração da miséria e aos de capacitação precária da mão-de-obra). 
Durante o almoço, ao meu lado, dois advogados conversam, ambos na faixa dos trinta anos. O rapaz conta do seu crescimento e do seu mais novo contrato. Não diz explicitamente, mas fica evidente que se considera um predestinado dos grandes fornecedores. Conta primeiro que conseguiu abrir seu escritório graças a uma indenização ganha contra o Carrefour, por ter incluído seu nome no CPC/Serasa após ter quitado sua dívida. Admito que não sou entendedor dessas questões, se a decisão de mandar o inadimplente (ou suposto) para a lista suja é automatizado ou depende uma pessoa, porém me chamou a atenção que seu nome ficou sujo por duas pendências: uma de cinqüenta e outra de trinta centavos. Graças a essa cobrança de oitenta centavos, o Carrefour teve que pagar três mil reais (na época, que não sei quando foi). Parece um erro grotesco de programação, ao mesmo tempo soa bastante plausível como ação deliberada de um funcionário insatisfeito com a empresa.
A mais recente proeza do rapaz é um contrato recém assinado, para ser advogado das Casas Bahia. "Na verdade - ele se corrige -, não foi a Casas Bahia quem me contratou; sou terceirizado". Tenho a clara impressão de que falou com orgulho que era um trabalhador precário - talvez fosse orgulho por estar trabalhando para uma grande rede. Ele prossegue e conta, admirado, do escritório que o contratou: "mudaram pra Alameda Santos. Ficaram com uma estrutura super enxuta. São os dois sócios, mais dois advogados e uma estagiária", mas tem cento e cinqüenta advogados trabalhando para eles. "Estão certos: não tem que ficar administrando pessoal, gastando com férias, décimo terceiro, essas coisas". Sua interlocutora concorda entusiasmada, cita um caso de um escritório que está seguindo "a nova tendência do mercado".
Reparo nos dois. O homem é negro, a mulher, branca. Não tem a menor pinta de que estudaram na USP, ou mesmo na PUC. Provavelmente conseguiram seus anéis de bacharéis graças ao Prouni do Lula. São peões sonhando ser patrões. E em nome do que acreditam que um dia virão a ser, batem palmas à própria exploração, comemoram a perda dos seus direitos, planejam fazer o mesmo e um pouco mais quando estiverem do outro lado do balcão, quando de gado se tornarem quem dá o preço no leilão. Se se tornarem. 
Se... 
A cenoura ideológica atual diz que é só você querer, que amanhã assim será, basta um pouco de esforço e abnegação. Propositalmente não diz que esse paraíso terrestre tem vagas limitadas e fila preferencial - e certamente os dois deslumbrados ao meu lado, um deles que acha que tirou a sorte por ter conseguido três mil reais de indenização, estão longe de entrar nessa fila, se não tiverem sorte ou um jeitinho heterodoxo de resolver a vida. Negar a própria realidade em favor do que ingenuamente acreditam que um dia se tornarão: negar que são oprimidos, embalados no sonho de logo se tornarem opressores. Paulo Freire, desenterrado pela extrema-direita (e terraplanistas em geral) como educador-ideólogo a serviço do PT, esquecido de fato pela esquerda, se mostra atual, como nunca deixou de ser. 
Nosso trabalho de base se mostrou falho - e não só por comodismo com o PT no poder federal e adequação ao seu discurso despolitizante. Parte da esquerda - a com maior capital simbólico e cultural - nunca quis sujar os pés, sair de suas cômodas salas de aula da academia e tentar dialogar com a massa da população - dialogar e não civilizar, ensinar, conduzir: entrar em contato e ouvir medos e aspirações daqueles que tratamos por objeto (de estudo, mas não por isso menos objeto). Nosso diálogo é entre pares, em revistas que contam pontos que rendem uns trocados a mais, não com o diferente, com quem não teve a oportunidade de estudar em universidade de ponta. Daí que a universidade pública pode ser atacada de toda forma e poucos se indignam. Ou que a nova direita tenha encontrado solo fértil para impôr sua forma de encarar o mundo - fake news, ódio e gregarismo proto-fascista. Daí o discurso consolidado que condena os vagabundos (pobres) e louva o "vagabundo ostentação". Por isso não surpreende o gado que louva o chicote, e que a reforma trabalhista tenha sido aprovada sem maiores resistências. 
Sou otimista, e creio que há possibilidades de reverter esse quadro, até mesmo no curto prazo: apesar de todos seus títulos, os doutores golpistas são grosseiros e petulantes o suficiente para deixar pronta uma contra-narrativa que escancara a realidade sem a cenoura ideológica (diante de Moro, Mendes e caterva, até os linha-dura de 64 seriam "da Sorbone"). A questão é a esquerda e as forças progressistas saberem se aproveitar do momento para desvelar as mentiras, sem querer pôr uma verdade no lugar - deixar a cada um e cada uma descobrir sua verdade por suas próprias pernas. Sair da internet e das universidade e ir para a rua é parte fundamental nesse processo.

13 de dezembro de 2017

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Conversa sobre corrupção no ponto de ônibus

No ponto de ônibus, lembro um dos motivos que fazem com que eu tanto goste de metrô: cada três minutos vem um trem. Ao meu lado, um homem puxa conversa com uma garota. O assunto: corrupção. É meio-dia, o sol está escaldante, o termômetro aponta 34ºC, não sei que horas o ônibus irá passar (estou há quase meia hora, esperarei mais dez minutos), estou de roupa escura e tenho uma entrevista para doutorado ao cabo do trajeto, de modo que não me resta outra coisa que ficar ao seu lado e ouvir a conversa. Para meu alívio ela não descamba pro discurso de ódio, fica no senso comum das pessoas de boa vontade - as que talvez foram para a Paulista bancar o pato na frente da Fiesp, genuinamente achando que se rebelavam contra a corrupção, e não contra a constituição. Não houve, nesses dez minutos de platitude, ataques à encarnação do demônio, Lula e o PT, tampouco aos golpistas que tomaram o Planalto, nem mesmo elogio aos "slavadores" da pátria de Curitiba. Apenas boa vontade e ignorância - que pode dar origem a uma soberba auto-indulgente que conservadores sabem usar muito bem.
A garota concordava e complementava, quem dava o tom era o homem. Começou a conversa falando que o grande problema do Brasil é a corrupção. Para quem se informa pela grande imprensa, e há mais de uma década ouve falar de corrupção dia sim, outro também, normal achar que esse é o maior problema destes Tristes Trópicos - afinal, o que importam hospital e escolas em estados calamitosos, polícia assassina, desindustrialização, empregos precarizados que mal garantem a subsistência, isso para não falar no trabalho escravo legitimado pelo ilegítimo ou no possível regresso do país ao mapa da fome diante dessa mal que tudo justifica, a corrupção?
Com a concordância do maior problema do Brasil, resta o diagnóstico vira-lata: não podemos só culpar os políticos, que são corruptos - todos -, e precisamos assumir que é o povo brasileiro que é corrupto, é dado a trambiques e que, por conta disso, não tem direito de reclamar dos políticos. "Sertíssimo"! Somos um povo corrupto (talvez por sermos feitos majoritariamente de uma mistura de negros e mestiços com portugueses?), então por que perturbar o sono de Temer e sua quadrilha? Esse discurso é a mão que espera a luva do não-político - ao que tudo indica, para 2018 será a vez de Luciano Huck*.
Se somos todos corruptos, como mudar? Meus colegas de espera sabem: com nosso exemplo. Sim, negando a corrupção não apenas em palavras, mas agindo eticamente, para que as crianças aprendam com nossos exemplos edificantes. O exemplo edificante dado pelo homem seria escárnio, não fosse, ao que tudo indica, sincero. Ilustrou sua, digo, nossa missão ao falar de quem vê uma moeda de cinquenta centavos que cai do bolso de alguém. "Aí a pessoa vai lá e, ao invés de devolver, pega pra ela. Isso é corrupção. Depois não adianta reclamar dos políticos". O que falar da completa falta de medidas do homem? Uma moeda de cinquenta centavos ou uma carteira com cinquenta reais, isso pode fazer a pessoa uma "corrupta", mas não vai mudar muito a vida de um homem branco de classe média - daí não ser difícil escolher em manter a orgulhosa pureza ética. Queria ver o homem diante de 51 milhões de reais em dinheiro vivo, para pegar e usar como quisesse. Ouso pensar que sua moral fraquejaria. Ele sabe, contudo, que nunca terá a oportunidade de ter sequer um milhão sendo oferecido a ele em troca de algum ilícito - fica fácil, portanto, cobrar dos políticos a mesma retidão que ele tem diante de uma moeda de cinquenta centavos de outrem que brilha convidativa aos seus olhos. A segunda falta de medida vem de uma encarnação política que o homem faz do discurso econômico de Miriam Leitão e congêneres, jornalistas de conhecimento econômico nulo e qualidades de caráter idem (se você não puder pagar). Nessa perspectiva, moralidade é uma só, em casa, no trabalho, na política, na família, na cama. E a moral que vale é a que o homem, a mulher de classe média conhece: a mais estreita moral pequeno-burguesa individualista (meritocrática, normopata, machista, homofóbica, etc, etc, etc). De tanto ouvir dos comentaristas na televisão que o país é como uma casa (infelizmente a minha não imprime dinheiro nem cobra impostos, mas isso é detalhe), por que não achar fazer política é como cuidar dos filhos? Ou de uma empresa (pequena e familiar)? O Brasil não precisava de um gerente em 2006? Não escolheu a gerentona do PAC em 2010? São Paulo não elegeu o self-made man com o dinheiro do papai, o empresário de sucesso que faz politicagem mas é gestor? E não ressente a falta do velho pai dos pobres, sempre tentando matar ou reavivar seu legado? Talvez seja a hora, então, de entrar em campo o discurso do bom pai, que vai pôr, finalmente, ordem na casa e dar a cada um aquilo que merece (e não o que dizem abstratas leis que não valem nada e que por isso não compensa seguir)? Bala ao desordeiros, prisão aos favelados, contratos aos amigos, e uma estrelinha de reconhecimento pelos bons serviços à nação para a dupla ignara que conversava ao meu lado. Um bom pai, que sabe guiar sua família, é amoroso mas sabe ser duro e firme quando precisa, para não permitir que seus filhos se desviem do bom caminho (da heteronomia). Quem sabe se esse bom pai, homem de família não seja casado com uma loira?
Como disse, no tempo de conversa, não houve sinais mais claros do fascismo que borbulha no país, não houve discurso de ódio, não houve "tem que matar", não houve um inimigo encarnador de todo o mal. Havia duas pessoas inconscientes de como funciona a política e o Estado, inconsciente de seu papel na sociedade, de suas crenças e de seus preconceitos, que tentava pensar dentro dos limites estreitos que a "sociedade do espetáculo" autoriza que se pense - um pensamento que muitas vezes nega a si mesmo, mas que aqui simplesmente não saía do lugar, por não ter lugar para aonde ir. Um acúmulo de ignorâncias, que a escola não tentou desfazer, que a universidade não se incomodou em combater, e que os donos do poder, com o trabalho agressivo realizado pela mídia e igrejas, semeam em seu rebanho, mesmo nos não fanáticos. Ou a esquerda passa a trabalhar efetivamente para desarmar essa mentalidade apta a aceitar uma ditadura de extrema-direita salvadora, ou logo não nos restará mais alternativas.

20 de outubro de 2017

* Por sinal, comentava em 2016 sobre a possibilidade Huck como candidato à presidência [http://bit.ly/cG160510]. O sucesso de Doria Jr. em 2016, ao que tudo indica, acabou por ser seu fracasso; mas o roteiro deve ter sido aprendido, tanto para as eleições como para depois. Huck pode surgir com grande força em 2018 (se houver eleições).

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Youtubers: a ponta de lança da resistência progressista?

Faz um tempo desativei o rastreamento do Google, de modo a ser bisbilhotado apenas sem meu consentimento; como resultado, o Youtube tem apresentado sugestões de vídeos muito aleatórios para meus gostos já razoavelmente aleatórios (as propagandas seguem certeiras nas buscas que fiz). Hoje entrei para ver o novo vídeo do Porta dos Fundos. Serviu para dirimir minha suspeita de auto-censura por parte do grupo - a nova dona da marca, Viacom, poderia, talvez, estar pedindo para moderarem nas críticas religiosas, para não perder esse importante mercado consumidor que são os evangélicos (e católicos) conservadores-reacionários. Parece que o grupo não está se censurando, e sim aprofundado a crítica no ponto exato: o uso do nome de deus, e não o próprio.
Findo a esquete em que um deputado tenta convencer seus interrogadores da justiça que apenas praticava corrupção, e não qualquer ato sexual com outro homem - pois era pastor e não podia ficar mal com seu rebanho, caso fosse visto como gay -, me distraio e o Youtube engata um vídeo na sequência. Dois youtubers que nunca vi na frente respondem a um terceiro - ilustre desconhecido meu, como todos os youtubers, pelo visto. Por procrastinação crônica, fico a assistir.
A discussão que eles traziam era sobre o grande debate atual do Brasil, na falta de questões mais urgentes: se Hitler e o nazismo seriam de esquerda - ou mesmo comunistas. Uma questão quase pueril diante de quem defende que a Terra é plana. Só não inocente porque não estamos falando de algo enterrado no passado - a possibilidade de um segundo turno em 2018 (se tivermos eleições) entre Bolsonaro e Doria Jr que o diga.
A dupla que fez a tréplica prima pelo rigor e pelo respeito à inteligência daqueles que os assistem - mas numa linguagem que caminha para a do líder do MBL, K.K. (K?) (ao menos nos dois vídeos que vi desse pequeno apedeuta levado às páginas da Folha de São Paulo para falar sobre Power Rangers e atestar a qualidade e índole do "maior jornal do Brasil"), apenas um pouco menos cínica e dona da verdade - talvez seja minha ignorância da linguagem usada pelos youtubers do mundo. O boçal a quem respondiam tem a fala pausada dos velhos sábios donos da sacro-santa verdade - um O. C. ou L. F. P. metaleiro. Como os mestres, abusa de má-fé e usa de mil referências bibliográficas e citações descontextualizadas para justificar seu preconceito para um público desejoso de uma mentira envernizada (ou nem tanto) que encubra sua ignorância e justifique seu ódio (uma forma de fuga de suas vidas existencialmente miseráveis?).
Após os vinte minutos de vídeo, o Youtube me manda para uma outra tréplica contra o mesmo nazi-metaleiro. A questão agora é religiosa. E o youtuber da vez tem uma estética despreocupada, para aparentar que o vídeo foi gravado de sopetão, sem maior preparo, com ele exprimindo sua opinião como se não tivesse elaborado o discurso - ao menos ele realmente exprime uma opinião e não um veridicto divino.
Por conta própria, resolvo encarar o youtuber raiz desses vídeos que acabei por assistir - fui logo no primeiro sugerido, em que ele fala de religião. Diz que não é Jesus nem pretende sê-lo - mas age como se fosse o irmão mais novo dele, com a sensível diferença de ser um vida boa e que optou por fugir dos pregos e das cruzes e encruzilhadas da vida (linha reta é sempre mais rápido. Acelera!). Retira uma meia dúzia de passagens bíblicas para justificar homofobia e defender que Jesus pregava o ódio e a intolerância - ah, a Bíblia, esse livro maravilhoso que serve a qualquer propósito e ninguém se anima a seguir à risca faz um par de anos, pouco mais de dois mil. O nazi-metaleiro não tem trinta anos, mas fala como se tivesse a sabedora de um velho mandarim da China antiga. Seu público, pelo que dá para deduzir, deve ser como muitos dos meus tios e primos (em tempo: não posso escolher meus parentes, no máximo, como fiz, romper com eles): carente de um grande pai (dono de um grande falo) que diga o que é certo e o que é errado, se ajoelha para o primeiro que assumir o papel farsesco e repete o que ele fala como se pensasse. E aos homens-gado e mulheres-gado o ódio é sempre mais fácil de internalizar e entender - talvez por dinâmica interna.
Ao fim de uma hora de vídeos, os últimos vinte minutos do mais puro dejeto intelectual, a recusa soberba e orgulhosa do pensar - louvada como "coragem de falar o que pensa" nos comentários -, me pus a perguntar porque tenho perdido tanto meu tempo com porcarias (minha relação com a internet até merecia uma crônica).
De uma porcaria a outra, vou ao Fakebook, minha bolha política virtual. Lá, um professor universitário (da área de humanas e de esquerda) avisa que não há erro maior que responder à acusação de que o nazismo era de esquerda: isso seria dar verniz de assunto sério a um descalabro sem tamanho. A torre de marfim tupiniquim não me desaponta! E entendo que ter perdido meu tempo com os youtubers não foi em vão.
A ignorância de mundo do professor doutor e pós-doutor me fez entender a importância dos youtubers: são jovens dispostos a dar a cara e discutir no mesmo terreno (um dos) que a extrema-direita avança com sua ignorância planejada. Poucos são os professores universitários que se arriscam a "se rebaixar" e encarar a mídia de massa - ou mesmo um público amplo sem "formação superior" nem endinheirado -, levar alguma luz (e no atual contexto não é descabido esse tom salvacionista) a uma massa que tem como ídolos Neymar, Rodrigo Hilbert e Ana Hickman; que tem como formadores de opinião Bonner, Galvão Bueno, Datena e Luciano Huck. Esses poucos que se arriscam, tem dificuldade em achar uma linguagem que impacte muito além dos que tendem a concordar com suas posições - Karnal talvez fosse o grande nome desses iluministas-midiáticos, mas foi ele próprio seduzido pelo cio da cadela do nazismo (como ele mesmo dizia). Safatle, que vejo como sucessor da Chauí na empreitada midiática, é um dos poucos que se expõem, mas os dois filósofos recusaram maior jogo de cintura e preferiram afirmar desde cara uma posição - o que tem seus pontos positivos e negativos. Mesmo pela rede, a maioria dos professores universitários que sigo prefere discussões herméticas, nos seus melhores momentos, quando não destilam puro ressentimento contra o PT ou se auto-iludem de que ensinar teoria marxista para os filhos da elite é fazer a revolução - Luis Felipe Miguel, professor da UnB e uma das mais lúcidas vozes da atualidade, é uma exceção obrigatória de ser acompanhada! Os professores não-universitários, esses, quando podem falar em sala de aula sem risco de perderem o emprego ou serem intimidados pelos vigilantes do "Escola Sem Partido", devem ficar contentes - e a academia retira deles qualquer legitimidade para pleitear voz como especialistas na sociedade.
Ao fim destas duas horas de procrastinação depressiva pela internet, em grosseiras linhas gerais, ouso dizer que, enquanto a extrema-direita se organiza e ataca por várias frentes e em várias linguagens, se aproveitando de seu poderio econômico, sua hegemonia na grande imprensa e de um sistema educacional falido de alto a baixo, da pré-escola à pós-graduação - USP ou Unicamp serem as melhores universidades da América Latina beira a insignificância social, uma vez que o que é produzido ali dentro parece não extrapolar seus muros (ainda que o professor da Faculdade de Medicina da Unicamp, Paulo Palma, me faça temer que, sim, o pensamento acadêmico tem contaminado o país, e é por isso que discutimos se Hitler é de esquerda, e logo estaremos acompanhando uma discussão sobre se as balas utilizadas pela PM para execução de negros e periféricos deve ser paga pelas famílias que perderam seus entes queridos) -, a esquerda oscila entre brigas ressentidas entre partidos (quando não em movimentos oportunistas de políticos de expressão, como Luciana Genro), movimentos sociais que tentam acordar e se reestruturar depois da letargia otimista dos anos Lula (MTST é o grande ponto fora da curva), sindicatos transformados em impotentes grupos de lobby, e acadêmicos que dão mais valor às discussões herméticas sobre a epistemologia marxiana do que às condições objetivas da sociedade atual - a alienação da universidade pública frente a realidade que está inserida é tamanha que não percebe nem quando está sendo atacada: mesmo com o anúncio de seu desmonte, ainda antes de Temer assumir, e depois com a emenda constitucional que congelou os gastos com saúde, educação e segurança por 20 anos, nada, absolutamente nada fez, que não xingar um pouco no twitter. Nesse contexto, parece que a ponta de lança de alguma possibilidade de reação e mudança vem da juventude, com os secundaristas na ação direta, e com os youtubers, na frente de comunicação, formação e contra-informação. A despeito das boas intenções, é muito pouco para fazer frente.

17 de agosto de 2017

PS1: Não falei da direita não extrema; essa, infelizmente, desapareceu do Brasil, com a adesão do PSDB ao nazi-fascismo tupiniquim desde Serra 2010, engolido de vez por Bolsonaro e Doria Jr, fina flor do hitlerismo tropical do século XXI (e para registrar: este comentário pode me custar o emprego).
PS2: visualizações dos vídeos citados (até 12h do dia 18): Coisa de Nerd: 345 mil; Izzy Nobre: 456 mil; nazi-metaleiro: 464 mil. A título de comparação. Os últimos 3 vídeos do PSOL tem, respectivamente, 22, 442 e 2,3 mil visualizações; os do PT, quando muito, chegam a uma centena.


sexta-feira, 24 de março de 2017

Para que serve a arte? [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Em 2005 assisti ao filme Elefant, de Gus Van Sant, inspirado na chacina de Columbine (que por ser no estrangeiro ganha o nome de massacre). Um filme sobre a banalização das violências que sofremos e cometemos todos os dias - a história não é de dois adolescentes perturbados, é de adolescentes normais numa sociedade, essa sim, perturbada [bit.ly/cG050302]. Até então, bullying não era um termo corrente na sociedade, nem vulgarizado pela imprensa. Foi com susto quando me vi na pele dos personagens humilhados pelos colegas, que decidem se vingar a tiros de tudo e todos: tirando pela solução, era um retrato de muito do que passei na infância e adolescência - que eu abstraía tocando Beethoven ao piano.
Mais de dez anos depois, em 2016, assisto à dança Vértigo, das bolivianas Camila Bilbao e Camila Urioste [bit.ly/Cg160804]. Uma poética feminista, que para além do feminismo cutucou minha forma habitual de pensar: a crítica sempre pronta para o outro e ausente quanto a meus próprios hábitos (e generalizo esse hábito à esquerda brasileira em suas disputas fratricidas, especialista em autocrítica alheia). Alguns meses antes, assistindo a outra dança na mesma Galeria Olido, Percursos Transitórios, da Zélia Monteiro, me dei conta de tudo que eu trazia por resolver dentro de mim, quanto às perdas recentes e aos caminhos que a vida me exigia decidir [bit.ly/cG160623].
Entre o filme e as danças, em 2010, sei lá por que, a exposição do Helio Oiticica, Museu é o mundo, no Itaú Cultural, me trouxe uma epifania: foi quando tomei convicção que precisava mudar de vida, e isso começava por morar em São Paulo. Já morador da capital paulistana, sempre zanzando (ou flanando, para usar um termo chique) pelo centro, a exposição Espaço Imantado, da Lygia Pape, na Estação Pinacoteca, em especial sua obra Tteia nº 1, me abriu outra forma de perceber a cidade.
Por falar em epifania, um professor do curso de iluminação contou da que teve assistindo à peça O livro de Jó, do Teatro da Vertigem: até então ele se via confortável na sua bem paga carreira publicitária e pouco interesse tinha por teatro, foi ver a peça arrastado pela então namorada; depois dessa experiência, abandonou a carreira segura e preferiu se dedicar à iluminação cênica.
Não sei se é possível, no século XXI, definir com precisão e sem polêmica o que é arte e para que serve. Por mais que não seja o caso de achar tudo válido, uma definição única e fechada tampouco vale. Ainda assim me arrisco a dizer que uma das principais funções da arte - e aquilo que faz um grande artista - é nos desestabilizar. Uma boa obra de arte nos tira da nossa zona de conforto - não raro, nos joga na cara que nossa "zona de conforto" é antes "zona de comodismo", que de confortável nada tem. E estão enganados os leitores e as leitoras que adoram divisões simplórias do mundo, em achar que isso tem a ver com esquerda e direita: se o esquerdista Saramago me deixou catatônico uma semana com seu Ensaio sobre a cegueira; o conservador Borges me largou em um cipoal que até hoje me pergunto como sair com seu conto "O outro".
Provocar, ensinar a questionar (um ensino que nada tem de pedagogismo), oferecer formas novas de ver a nós próprios e de perceber o mundo que nos rodeia: a boa arte - ou a que busca essa excelência - tem em si  esse gérmen da subversão - na literatura, nas artes visuais, nas artes do corpo, na música, na arte urbana. A arte, se não corrompida pelo poder (econômico e político), é capaz de corroer o poder. 
Um graffiti na Avenida 23 de Maio lembrando dos assassinatos do nosso Estado que se finge de Direito, Amarildo e outros, grita aquilo que Globo e grande imprensa tentam calar; um pixo numa casa nos lembra que a cidade real nada tem da harmonia que políticos fascistas tentam nos impôr; uma peça pode fazer uma pessoa mudar de vida; um filme (e não uma peça publicitária de 1h30, feita em Hollywood e que passa na televisão) é capaz de fazer com que alguém perceba melhor seu entorno; um concerto aguça a audição para além da música; uma escultura aprimora a visão do quotidiano; uma dança que lembra das nossas dores...
É por isso que Dória Jr (o grileiro de terras gourmet) e André Sturm, respectivamente prefeito e secretário de cultura da cidade de São Paulo, fazem, desde que assumiram a prefeitura, uma cruzada contra toda forma de manifestação artística e cultural independente - ação reforçada pelo governador Alckmin (o bom moço cristão que estimula assassinatos extra-judiciais dos seus subordinados). Começou com a caça ao pixo e ao graffiti, por não serem "arte de verdade"; avançou sobre artistas de rua, que vendiam seu artesanato - que por estarem na rua não podem ser "artistas de verdade"; se estendeu aos artistas, músicos, dançarinos e atores, que até podem fazer "arte de verdade", mas por não serem úteis à sociedade e viverem "às custas do Estado", não merecem respeito nem financiamento; e agora avança sobre a população toda, ao acabar com o Vocacional e o Programa de Iniciação Artística (PIÁ), que traziam para o contato artístico crianças de 5 a 14 anos. Afinal, lugar de criança não é tendo aula de artes, e sim aprendendo alguma profissão subalterna (engraxate? telefonista? segurança?), quem sabe pedindo comida no Habbibs, ou cometendo algum ilícito até ser morto pelo Estado que nega a ele qualquer oportunidade de se desenvolver enquanto ser humano. 
Sturm foi claro no seu não-dito: o Estado só deveria reconhecer como detentor de direitos (em último caso, o direito à vida, pois sem dinheiro não se vive na nossa sociedade) quem é útil e subserviente ao poder. E ainda chama de fascista quem o critica - e ele sabe que pode falar isso sem preocupação, porque poucos assistiram a uma montagem de Terror e miséria no III Reich, de Brecht, ou assistiram ao Triunfo da Vontade, da Leni Riefenstahl, leram O Tambor, do Günter Grass, ou mesmo 1984, do George Orwell, para se dar conta de quem é o fascista na história. 
Os objetivos de Sturm na secretaria de cultura parecem ser dois: um segue a lógica da rede Globo: não permitir qualquer centelha crítica no "populacho"; o outro, segue a lógica de seu chefe, a do gestor do PSDB: o Estado só deve manter programas públicos que dêem lucro: se o PIÁ não dá lucro, não tem porque o Estado mantê-lo - já se o Cine Belas Artes, de sua propriedade, com entrada a R$ 40, não dá lucro, aí cabe ao Estado manter, porque, afinal, ele é branco, fez FGV, tem bons contatos, e o cinema atende a pessoas como FHC, e não Zé Ninguéns sem qualquer oportunidade de cultura e lazer [nao.usem.xyz/aru5].
A Globo, porta-voz da nossa elite ignara e que ajudou a eleger o lobbysta Doria Jr, tem o recorrente discurso de que "a arte afasta os jovens das drogas". A questão é que, para essa elite, só é aceito como arte aquilo que age como droga: se entorpece e impede de pensar. Se emburrece, embrutece, desumaniza, então é útil, então é arte, arte verdadeira, tem direito até a R$ 700 mil reais do governo brasileiro - via Lei Rouanet - para realizar sua arte em Miami. Nada de Picasso, Vik Muniz, Os Gêmos, Lima Barreto, Ferréz, Borges, Racionais MC's, Chico Buarque, Dudamel, Pina Bausch, o que o Brasil precisa, segundo eles, é de mais Romero Britto, mais Bia Doria, mais Paulo Coelho, mais sertanejo universitário, mais explosões hollywoodianas, mais novela, mais Faustão e suas dançarinas. Mais ignorância publicitária enfeitada com elementos artísticos: vende milhões, rende milhões, não faz pensar e não incomoda o poder - é útil. É a arte nos tempos do finanfascismo.

24 de março de 2017
PS: estou esperando a hora que Alckmin ou Doria Jr soltar um "quem quer arte, que vá para Paris". Sorte deles que nossa grande imprensa é uma grande agência de publicidade tucana.


Esperando a hora que começarem a mandar queimar livros e obras de arte degeneradas e que atentam contra a moral e os bons costumes, como as de Lygia Pape - expertise eles já tem, com a combustão de favelas e museus...

Como o secretário de cultura trata os artistas, afim à lógica PSDB-Globo.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Teorias conspiratórias

A morte do ministro Teori Zavascki em momento tão oportuno aos golpistas (ainda que o ministro não fosse nenhum grande homem dentro do STF), num país de reiterados acidentes oportunos aos detentores do poder, não deixou de levantar uma série de teorias da conspiração. Nada mais natural,. Algumas, porém, soam um tanto excessivas.
Me contou uma amiga que faz um curso de férias: sexta, já meio pro final da aula, tendo vencido o conteúdo antes do tempo, sobrando minutos para assuntos diversos, a professora resolveu tocar no tema quente do momento, a morte do relator da Lava-Jato. Perguntou se achavam se era mero acidente, ou havia sido planejado. Uma das alunas de pronto defendeu a tese de assassinato. Conhecedores de suas posições políticas, todos olharam para ela intrigados: será que teria, não pensado, que é demais, mas saído da bolha? E se até ela estava admitindo a tese de morte planejada, sinal que a coisa estava descarada e o golpe começa a perder seus apoiadores ingênuos. Ainda descrente, a professora reiterou a pergunta, se ela achava mesmo que havia sido assassinato, e ela, convicta: "É óbvio! Está claro que foi a mando do Lula!". 
Tão claro como a luz que a lua emite. Inteligência manda lembranças.

22 de janeiro de 2017

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

De ódio em ódio, para se sentir brasileiro

O Brasil é um caldeirão de ódio prestes a explodir. Cozinha esse caldo faz tempo, desde os primeiros portugueses, e as atuais gerações não conseguiram dirimir, sequer diminuir a fervura. Pior: em boa medida, deixamos de tentar. Esse ódio com o inferior (socialmente) vem de cima, como paradigmático, e desce até o ponto onde não há mais ninguém abaixo para humilhar. O questionamento ao de cima surge parca e precariamente, resta a revolta difusa a reforçar a ordem social. Esboços de reação às injustiças sociais não raro se desvirtuam rapidamente, guiados por essa mesma cultura do ódio, da necessidade de se achar um inimigo, um Outro estereotipado, personificação do Mal, a quem é imputado toda a culpa - pelos males a esses que, por conseqüência lógica, são do Bem. A outra face da mesma moeda - e ai de quem não ajoelhar e rezar por esse novo ódio, só pode ser favorável ao outro, quem não está conosco está contra nós.
Esta semana, esperava com minha mãe e meu irmão a hora de embarcarem, quando se aproxima um homem e puxa conversa. Pergunta se somos descendentes de poloneses, e diante da (óbvia) afirmativa passa a fazer elogios aos polacos e ao papa fdp. Não tarda, introduz novo assunto: "o atual problema do Brasil". Já imagino que vai falar do Lula, do PT e da corrupção. Me equivoco: não estou diante de um homem de bem de classe média, mas de alguém do "povo" - esse que certa esquerda Peter Pan julga ontologicamente como "do Bem". Começa a falar mal de nigerianos e haitianos, a quem classifica como bandidos - "todos bandidos, tudo bandido", repete. Como bem assinala Pedro Serrano em Autoritarismo e golpes na América Latina, "bandido" é a versão tupiniquim para "judeu" na Alemanha nazista, a senha para rebaixar a pessoa da condição de ser humano, livre conduto para qualquer atrocidade extra-legal: "o bandido não é tratado o cidadão que erra, mas como um inimigo da sociedade, que não tem reconhecido sequer os direitos fundamentais inerentes à condição de ser humano. Nesse contexto, sua vida pode ser suprimida" (p. 152). 
Nosso interlocutor da rodoviária, periférico (ainda que branco), talvez esteja em momento raro de sua vida: se sente um honrado cidadão brasileiro, alguém a quem é garantido o direito de odiar e pregar a eliminação do subalterno, sem medo de reação (afinal, imigrantes são sub-humanos, estão abaixo dele, sub-cidadão). Talvez pela primeira vez na vida ele se sinta alguém, integrante da irmandade da Casa-Grande, um ser humano com direito, um, que seja: o direito de aniquilar o Outro. Claro, não percebe que uma vez aniquilado quem está abaixo, passará a ser ele o próximo estorvo à felicidade geral da nação, o novo inimigo, voltará à condição de bandido aos olhos dos cidadãos de bem e dos apresentadores de tevê dos programas de fim de tarde. Não percebe que só temporariamente perdeu a pecha de bandido - por mais que não tivesse cometido algum crime.
Na internet, na linha do tempo do meu Fakebook, acadêmicos das diversas matizes da esquerda se atacam mutuamente em acusações de quem é o culpado do ponto onde estamos (o PT, a falta de união, o homem machista, os evangélicos, algum nome da direita que está em voga na mídia). É sempre mais fácil dizer que a culpa é do outro, desobriga de se comprometer em alternativas factíveis, e permite que se siga ignorando que o fracasso é antes de tudo seu (meu, nosso), é de toda a esquerda, de todo o campo progressista. Paulo Freire é só um nome pomposo para trabalhos teóricos, há muito parece não ter realidade prática no Brasil - que chafurda no ódio e na ignorância.

30 de dezembro de 2016

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A PEC da desestabilização

Com o Estado tomado pelas finanças, há uma busca agressiva por parte dos donos do poder pelo esvaziamento da política na sociedade, de forma a garantir a platitude necessária à maximização de seus lucros. A Política, a exigência dos "de fora" em serem incluídos no pretenso bem-estar geral da nação, desestabiliza, ou melhor, torna evidente a falta de qualquer estabilidade na sociedade contemporânea, é capaz de mudar rumos - os tais "contratos" que governos progressistas precisam respeitar quando assumem o executivo -, por isso deve ser combatida, por isso deve ser tratada como sinônimo de "palavrão" (quantas vezes Alckmin não desqualificou greves e movimentos reivindicatórios por serem "políticos", para não falar no seu pupilo, o lobbysta que não faz política mas disputa eleição e ainda não saiu do palanque). Uma das funções de Lula no executivo federal, enquanto grande conciliador nacional, foi dar um pouco de sossego a uma turba que se politizava via lutas e reivindicações sociais, e ameaçava questionar privilégios, reivindicar direitos. Houve quem anunciasse ali o fim da política. Exagero: Lula, inteligente e experiente, sabe que política é imanente à sociedade humana, o que o ex-presidente fez foi manter a política em intensidade muito baixa - talvez seu grande erro: conseguiu considerável apoio e tranqüilidade durante seu mandato, mas deu as condições ideias para a gestação da serpente que vem engolindo o PT, as esquerdas e a incipiente democracia brasileira.
O grupo que assumiu o poder com o golpe de Estado de 2016 aparenta mais esperto que o PT, mas tenho cá sérias dúvidas: parecem crentes demais para conseguir perceber o que se passa ao seu redor. A PEC 241/55 pode ser vista como a tentativa de institucionalizar o fim da política sem precisar recorrer a uma ditadura de linhas totalitárias (o golpe de 64, convém lembrar, manteve alguma política acontecendo). O golpe, contudo, pode sair pela culatra: soa absurda a idéia de uma sociedade que prescinda da política - e qual não é o principal instrumento de disputa política no Estado moderno que não o orçamento, desde a cobrança de impostos até a alocação dos recursos? Tentar sufocar a política é dar fermento para que ela ressurja com muito mais força e vigor - o que pode gerar reações igualmente vigorosas e violentas do lado oposto, da anti-política (de inspiração nazi-fascista). 
Ainda antes de possível revolta popular nas ruas, há sinais de que a PEC surge capenga, e quem o diz é um dos porta-vozes oficiais do golpe. O Datafolha não possui credibilidade, mas é reconhecido por ser falho e adulterar dados para favorecer suas posições - vale lembrar a notícia, a partir de dados forjados, deturpados e mal apresentados, que diziam que 50% da população queria a permanência de Temer, pouco antes do desfecho do golpe contra Dilma [http://bit.ly/2hPtcHp]. Pois é esse instituto quem anuncia que 60% da população é contra a PEC 241/55 [http://bit.ly/2hy0749], isso mesmo com toda propaganda feita pelo jornalismo da chamada Grande Imprensa, de que a tal emenda evitaria a quebra do país e permitiria a retomada do investimento e do crescimento. A lógica é simples: com dinheiro garantido para os juros da dívida, os "investidores" (termo genérico para especulador) voltariam a aplicar no país, por dar estabilidade ao seu investimento.
O dado do Datafolha deixa claro que, apesar da emenda constitucional, não deve haver estabilidade nos próximos anos, a não ser que se recorra a uma ditadura aberta e se implemente a tão sonhada paz de cemitério (com trabalhadores zumbis) que o mercado elogia. Se se mantiver o mínimo do lustro de democracia formal, a oposição à PEC deve ser bandeira forte em 2018, no mais tardar em 2022, quando seus efeitos serão sentidos (ainda que economia não seja ciência exata, há certos direcionamentos cuja direção é evidente e permite antever muito do que espera). Alckmin, nome forte da extrema-direita tupiniquim, já deu entrevista criticando a proposta [http://bit.ly/2gMX9Kj] - a esquerda, desnecessário falar. A tendência, portanto, é de permanente crise entre os poderes - com agudização da crise de representatividade dos políticos eleitos para o legislativo -, ou uma nova ementa à constituição que desfaça a PEC dos golpistas. De qualquer modo, contrariamente ao que dizem os analistas da Grande Imprensa, a PEC 241/55 deve afastar qualquer estabilidade jurídica e econômica, condição para atrair investimentos ou mesmo especuladores. Por mais um caminho, o golpe deve deixar como maior legado a instabilidade - e há aqueles que saberão ganhar muito com isso.

14 de dezembro de 2016


terça-feira, 25 de outubro de 2016

Ficção barata para 24 de outubro

Da veia aberta por motivo fútil, o sangue escorre discreto pelas páginas de notícias. Culpa das drogas, dizem na imprensa, já que seu discurso de incitação ao ódio contra as esquerdas e movimentos sociais produz apenas cavaleiros da paz e harmonia social. Os cidadãos de bem, arautos da moral, dão de ombros: quem planta colhe: se estivessem em casa, assistido a Datena ou JN, nada disso teria acontecido. Temo de, em breve, ver esses patriotas invejosos de Miami contabilizando aos milhões - com um sorriso no rosto - as vidas dos outros. A mãe chora por uma vida descartável aos amorosos maridos, bons pais de família que banqueteiam hipocrisias em Brasília. A ponte para o futuro é o triunfo da vontade da Casa Grande.

25 de outubro de 2016.


segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Meio fascismo, meio populismo: a vitória de Doria Jr em São Paulo

Ao ver o resultado das eleições em São Paulo, com vitória de Doria Jr. no primeiro turno, a sensação que se tem é de terra arrasada e triunfo do fascismo - campos de concentração bandeirantes, aqui vamos nós! Respiro e tento analisar a situação um pouco mais objetivamente: chego à conclusão de que vivemos tempos realmente preocupantes, mas não se pode vaticinar nada para um futuro breve - é possível reverter o quadro, ainda que o mais provável seja o aprofundamento de um Estado de Exceção aos moldes nazi-fascista, tal qual já acontece. A vontade é achar culpados por termos chegado aonde chegamos, porém penso que vale uma análise mais pontual, visando um próximo passo - a tal auto-reflexão que muitos da esquerda cobram de seus representantes é necessária e urgente, mas precisa ser feita junto com o embate político: não há possibilidade de fazer uma pausa para discutir e depois voltar a agir.
Sem mais delongas, à eleição paulistana.
As regras do jogo
Primeiro, é importante salientar que as regras do jogo têm influência direta no seu resultado. Um amigo tratou de levantar logo: "Gilmar Mendes é o presidente do TSE". Prefiro não acreditar em manipulação nesse nível no resultado das urnas, entretanto Coronel Mendes é o Coronel Mendes, tudo dele pode se esperar. Deixo de lado essa hipótese. Ao meu ver, o principal fator destas eleições foi a diminuição do tempo de campanha: a exemplo de Russomano, Doria Jr. também era um candidato-sabonete, e não suportaria nenhum embate direto: assim que fosse instigado a fazer propostas um pouco mais palpáveis, desidrataria. Entretanto, para achar esse flanco e explorá-lo, faz muita diferença se se tem 90 ou 45 dias de campanha - a regra favoreceu, portanto, candidatos oportunistas e antipolíticos, a exemplo do futuro prefeito paulistano.
Segundo ponto: o poder da mídia, cujo monopólio não foi atacado diretamente pelos governos petistas. Desde 1982 a Globo tenta diuturnamente, e em todas as eleições, dar golpes brancos. Conseguiu de 1989 a 1998, e vinha falhando fragorosamente desde 2002, a ponto de apelar para o golpe direto em 2016. Voltou ao modus operandi nestas eleições: eu estava numa cantina no sábado, o televisor ligado sem som, e pude ver no Jornal Nacional uma notícia em que se vinculava PT e algum crime eleitoral - só o PT. Entretanto seu maior triunfo, assim como dos golpistas, não foi a derrota do PT, foi a desmobilização da população: o desalento representado em votos brancos, nulos e nos que se abstiveram de votar - retorno a este ponto mais adiante, é aqui que vejo a possibilidade de reverter o ritmo acelerado para o fascismo.
Sobre os candidatos, em agosto eu comentava que a eleição seria uma verdadeira disputa pela sobrevivência política [http://bit.ly/cG160822], com Doria Jr. como o único apto a perder sem sofrer maiores danos com isso - no fim, o azarão venceu.
Luíza Erundida e o Psol-Raiz
O Psol, com Erundina, cresceu em relação a 2012. Ainda assim, esteve aquém do que se imaginava no início da campanha. Parte dessa queda se deve ao pouco tempo de exposição na mídia - ou seja às regras do jogo. É provável que outra parte seja por conta de voto útil no Haddad. Uma das falhas de sua campanha que me chamou a atenção foi seu colega de chapa: num momento em que se pede algo "novo" em política, uma chapa formada por um casal de velhinhos passa a imagem de antigo (estou aqui analisando em termos de marketing e imagem, independente de propostas e trajetórias políticas), um vice jovem passaria essa idéia - Erundina poderia mesmo inovar, tendo como vice uma mulher. Pessoalmente, não demonstrou querer usar esta eleição para outros vôos políticos - era mesmo uma questão do partido. Se no Rio Freixo dá novo alento à esquerda e ao Psol, em São Paulo, a esquerda ainda tem o PT como seu principal representante. Sem dúvida a participação de Erundina no pleito foi extremamente importante - união de esquerda não deve significar candidatura única (como eu disse alhures: é necessária a desunião sincrônica das esquerdas).
Celso Russomano
Russomano deve dar adeus a pleitos majoritários - talvez ainda tente senado em 2018 (caso haja eleições em 2018). Sem qualquer estofo político, e sem a mesma equipe de marketing e complacência da mídia que tem Doria Jr., não deu conta de manter sua vantagem. De positivo, sua campanha não se baseou em discurso de ódio ao PT e à esquerda, ficou ainda no esquema "catch-all party" - o discurso cata-tudo -, com tendência à direita. Propostas fracas, postura tímida e uma enxurrada de podres da sua vida pregressa minaram seu sonho de ser um novo Jânio Quadros.
Marta Suplicy
Como eu havia anunciado em agosto, Marta Suplicy era quem mais arriscava. Ao fim da eleição, definitivamente é quem mais perdeu: favorita se fosse ao segundo turno (onde ganharia os votos dos anti-petistas caso disputasse com Haddad ou da esquerda, caso enfrentasse a direita puro-sangue), esqueceu de combinar com os russos. Terminar em quarto lugar é um tremendo golpe em sua carreira política - e em seu enorme ego. Seus 10% mostram qual seu capital político real, provavelmente fruto da sua gestão à frente da prefeitura: sua adesão ao golpismo não deve ter lhe rendido um voto sequer. Mediu errado seu passo político e ao tentar se desvencilhar do PT indo para a direita, perdeu o discurso sem perder a pecha de petista - tentar voltar à esquerda me soa impossível, depois de ter votado pelo impeachment-golpe. É possível que perca ainda mais esse resto de simpatizantes daqui para a frente, e sobraria tentar se manter na política com base no fisiologismo de cúpula e currais eleitorais. Se tentar o senado em 2018 (caso haja eleições em 2018), pode perder novamente; suas chances maiores parecem ser na disputa do governo do Estado, ou costurando um amplo apoio dos partidos fisiológicos e de direita (aí precisa conversar com o Doria Jr), ou na expectativa de ir para o segundo turno e vencer com o voto "anti".
Eduardo Suplicy
Eduardo Suplicy não disputou a prefeitura, contudo, na disputa pela vereança, seus quase 6% dos votos mostram sua força. É nome forte para voltar ao senado em 2018 (caso haja eleições em 2018), se assim desejar, ou à Câmara dos Deputados, caso seja mais interessante ao partido garantir a maior bancada possível, para ter maior tempo de tevê e quetais.
Fernando Haddad e o PT
Ainda que tenha perdido a prefeitura, o segundo lugar do atual prefeito mostra uma força de resistência sua e do PT que não pode ser desprezada. Anunciado desde o início da campanha pelas pesquisas eleitorais como candidato sem quaisquer chances, com seu partido sofrendo feroz perseguição política da justiça, da polícia, e da imprensa nas datas próximas ao pleito, seus 16% são significativos - o PT não acabou, como alguns arautos da direita (e da extrema-esquerda) anunciavam em agosto. Se somarmos aos votos de Erundina e Marta, a esquerda (acredito que Marta teve seus votos ainda pela sua trajetória no PT) teve 31%, ou seja, mantém sua base de 1/3 do eleitorado - era o piso antigamente, hoje é o teto. Sem negar o quanto a esquerda foi golpeada, ainda mais o PT - que em 2012 se tornara a segunda força municipal e ganhara a principal cidade do país -, um terço do eleitorado da principal cidade do Brasil é um índice alto para um país cujo lema do governo central é "tirar o país do vermelho" (em outra demonstração nazi-fascista do presidente-golpista Michel Temer). No plano nacional, a queda do PT foi grande, mas chama a atenção não ter sido acompanhada do crescimento dos seus antípodas, da "direita-cheirosa" (PSDB+DEM+PPS), que cresceu menos de 10%, sem sequer recuperar o que perdera de 2008 para 2012 (1416, 1084, 1174 prefeituras, respectivamente). A grande tarefa das esquerdas é conseguir, a partir de agora e o quanto antes, formar a frente ampla, sem ir a reboque de um partido.
De volta a Haddad. Seu grande erro não é só de campanha, é de governo: não ter investido o suficiente em publicidade oficial. Infelizmente, é da regra do jogo: aparecer para ganhar: à mulher de César não basta ser honesta... A gestão Haddad priorizou o marketing de internet, mais barato, e deixou de lado grandes campanhas de publicidade. Começou a campanha com a fama de prefeito que não fez nada, e passou o período eleitoral enunciando tudo o que fizera - do bilhete único temporal a hospitais e creches nas periferias. Os 45 dias de campanha foram determinantes para que não conseguisse divulgar o suficiente sua gestão. Se por problema de comunicação ou realmente por ter não dado a devida prioridade, o mapa da eleição mostra que Haddad foi muito mal nos extremos da cidade, reduto habitual do PT - tendo melhor desempenho nas regiões central, oeste e sul-1.
Talvez o que tenha sido determinante para a derrota de Haddad foi o elevado índice de abstenções, brancos e nulos. Costuma-se dizer que cada um colhe o que planta. A Grande Mídia tem plantado intensivamente o desalento com a política, encontrando solo fértil naqueles que viam na política ideais mais nobres - como combate à pobreza e melhoria das condições de vida de todos -, e conseguiram desmobilizá-los o suficiente para garantir a vitória ao seu candidato, ao que tudo indica. A lógica é fácil de ser compreendida: por mais que ache Haddad melhor que os outros, ou que tenha feito um governo razoável, de que adiantaria votar nele se são todos "políticos", ou seja, são todos corruptos, são todos "bandidos"? Quase 40% dos paulistanos se absteve de votar ou não se sentiu representado por nenhum dos onze candidatos - isso num país cujo voto é obrigatório! Dos que foram às urnas, os votos válidos na capital caíram de 87% para 83% do eleitorado. Se esses 4% a mais que se abstiveram tivessem votado em algum dos candidatos derrotados, seria o suficiente para forçar o segundo turno. Eis nesse ponto onde ainda vejo esperança: construir uma contra-narrativa que dê conta de reabilitar a política e as esquerdas (poderia ser também a direita, mas uma direita de verdade, não esse atraso político que no Brasil assume a bandeira), de modo a trazer para política parte da população que sucumbiu ao canto da desolação. Isso, claro, implica em trabalho de base e diário, e não apenas em época eleitoral.
João Doria Jr.
Há diversos fatores a se levar em conta na vitória de Doria Jr. Um deles, que levantei acima, a desilusão com a política, que repercutiu no aumento no número de eleitores que não participaram do pleito ou não fizeram voto útil em algum candidato. Outro é que Doria Jr soube explorar quatro discursos diferentes: um discurso de direita, dois de extrema-direita e um populista de direita. Em tese, portanto, Doria Jr teve quatro tipos de eleitores: 1) os de direita, que votaram nele por acharem que um estado mais enxuto e concentrado em áreas prioritárias da administração é a melhor forma de se alcançar o bem-estar comum (proposta política apresentada de maneira muito tosca, mas ainda assim uma proposta política); 2) os anti-petistas radicais, que embarcaram no seu discurso de ódio de clara inspiração nazi-fascista: o candidato não se punha como crítico da administração Haddad, ele propunha a eliminação do PT e do prefeito - suas políticas seriam somente a conseqüência do PT ser a encarnação do Mal -; 3) os desiludidos com a política, que votaram no seu discurso de anti-político, também de inspiração nazi-fascista; e 4) os que compraram o sabonete Doria Jr-trabalhador.
Acreditar nesses quatro perfis de eleitores do Doria Jr que me dá alento de que não necessariamente começaremos o ano letivo de 2017 queimando em praça pública livros de autores degenerados.
Os eleitores de direita dificilmente formaram sua base: pelo racha dentro do próprio PSDB, pela ausência de uma opção razoável de direita e pela gestão econômica de Haddad, é de se acreditar que quem está nesse espectro político e é razoável (racional, diriam os economistas) votou no atual prefeito. A base cativa de Doria Jr - e do PSDB todo, cada vez mais - são os eleitores de extrema-direita, ou em um termo um pouco mais cru: o PSDB caminha a passos largos para se tornar um partido neofascista, se é que já não se tornou (uma das particularidades da extrema-direita século XXI tupiniquim, é que o "movimento" não funda um partido, conforme a análise do fascismo feita por Robert Paxton, e ainda hoje observável na França e na Alemanha, por exemplo, e sim é adotado por um partido já consolidado, como forma de sobreviver à sua iminente derrocada política e eleitoral). O discurso de extrema-direita do tucano teve duas frentes: de um lado, o discurso de ódio e contra o inimigo portador de todo o Mal; do outro, a exploração da desilusão com a política, causada pelos escândalos ocorridos também nos governos petistas - que antes de assumirem o governo federal eram os arautos da moralidade política no país -, mas principalmente pela forma como tais escândalos são explorados pelo "quarto poder" (que parou de se referir a si próprio assim desde que começou a ficar evidente que era de fato um poder para-estatal e que não estava sob qualquer controle legal). Mario Vargas Llosa (saliento: um autor descaradamente conservador, porém liberal), em La civilización del espectáculo, livro de 2011, comenta sobre a desvalorização da política: "Em muitos países e em muitas épocas, a atividade cívica alcançou um prestígio merecido porque atraía gente valiosa e porque seus aspectos negativos não pareciam prevalecer sobre o idealismo, a honradez e a responsabilidade da maioria da classe política. Em nossa época, aqueles aspectos negativos da vida política têm sido magnificados freqüentemente de uma maneira exageradamente irresponsável por um jornalismo amarelo com o resultado de que a opinião pública chegou ao convencimento de que a política é um fazer de pessoas amorais, ineficientes e propensas à corrupção" (p. 133-134). Berlusconi, na Itália, ascendeu pela porteira aberta por esse jornalismo nefasto; Doria Jr também - muito antes deles, em processo muito similar, na Alemanha dos anos 1930, Adolf Hitler. Ainda que muitas pessoas se sintam intimidadas e acabem emulando o comportamento raivoso dos neofascistas tupiniquins, não penso que só o discurso explícito de ódio dê voto suficiente - pode fazer muito barulho, é sua função fazer muito barulho, para parecer maior. Aí entra o discurso velado de ódio, contra a classe política e o fazer político; Doria Jr explorou isso não apenas se apresentando como o "novo", como reafirmando sempre e uma vez mais que não era político - deixando subentendido, até pelo seu "tenho todo respeito aos políticos, mas...", seu desprezo pelos seus colegas de profissão. Se apresentou, portanto como anti-candidato, apesar de fazer parte de um partido tradicional.
Só o discurso de extrema-direita talvez o pusesse na disputa pelo segundo turno (quero acreditar que não), certamente não foi o que o elegeu. Entretanto, será utilizado ao extremo pelos golpistas (Temer, PSDB, judiciário, Grande Mídia): as urnas da maior cidade do país legitimaram que a política seja substituída por gestores e tecnocratas totalitários - ordem e progresso.
Contudo, o grande lance da equipe publicitária do publicitário-patrão foi o produto "Doria Jr-trabalhador", construção populista digna de Jânio Quadros, apesar da incompetência de Doria Jr para aparentar popular - que o diga suas fotos provando pastel e café, que logo sumiram, visto que a Grande Imprensa acatou as regras dos publicitários do candidato. Eu realmente não acreditava que um populismo tão tacanho ainda tivesse vez na política - pelo visto, nem seus adversários. Prova do quanto nossa educação é falha e sofrível - e olha que ainda nem implementaram o "escola sem partido" ou a MP do governo golpista - e o quanto a esquerda e os movimentos de massa descuidaram da formação política: milhões de pessoas caíram no conto do vigário em pleno século XXI! Quando falo da responsabilidade da esquerda em permitir que esse tipo de candidatura encontre eco na população, claro que não tem como não atribuir a maior responsabilidade ao PT, por ter sido pólo das esquerdas até aqui e por ter ocupado o governo federal por 14 anos: a inclusão social via consumo e não via cidadania política foi o tapete vermelho para que o discurso do self-made man cativasse o recém-formado pelo Prouni, o tercerizado que conseguiu comprar seu carro em 60 prestações (e agora nem pode andar como se fosse o dono da rua, porque o limite de velocidade é 50 Km/h), a dona-de-casa aflita com o desemprego do filho. À diferença de Russomano, que no início se pôs como uma pessoa do povo, como qualquer eleitor; Doria Jr afirmava que já fora do povo, mas que agora era um vencedor - tudo conseguido com o suor de seu rosto, trabalhador que começou do nada e venceu por mérito próprio -, e que faria de todo paulistano disposto a trabalhar um clone do líder. Ainda que esse engodo publicitário que bebe no populismo aparente maior dificuldade em ser rebatido - num estado que já elegeu Janio Quadros, Adhemar de Barros e Paulo Maluf -, não penso que seja tarefa árdua em ser desmontado, pelo mesmo motivo que Russomano caiu: por mais que se diga anti-político e abuse do discurso de ódio, estamos numa situação política em que ainda, para a maior parte da população, o candidato precisa apresentar propostas para a cidade - propostas políticas, portanto -, as quais necessariamente surgem (ou mostram que não existem) quando o candidato é confrontado (Doria Jr precisa agradecer Marta pelo último debate). Em um eventual eventual segundo turno Doria Jr precisaria inventar um quinto discurso para não perder para Haddad. Levantar esse "se houvesse" é importante para sublinhar que a "vitória acachapante" de Doria Jr foi acima de tudo fruto de saber usar as regras do jogo, e não de necessariamente da adesão ao neofascismo por 3 milhões de paulistanos. Outra coisa: Doria Jr tem respaldo popular menor que teve Haddad. Deixemos de lado votos úteis e pensemos no total de eleitores: os 53% de votos úteis de Doria Jr, pouco mais de 3 milhões de votos, significam pouco mais de um terço do total de eleitores; ao ser eleito, em 2012, Haddad teve o voto de quase 40% dos eleitores (300 mil votos a mais que o tucano, em um universo de 250 mil eleitores a menos).
Administração Doria Jr e as esquerdas e forças progressistas
No atual quadro de crise político-institucional, qualquer tentativa de palpite para os próximos quatro anos é muito arriscada: nem se sabe se teremos eleições em 2018. De qualquer modo, se Doria Jr puser em prática sua retórica anti-PT radical, de acabar com tudo o que cheire a esquerda, é capaz de voltar até com os Palacetes Prates. Não acredito em ataque tão radical, por uma questão de, caso haja eleições, é bom não se queimar totalmente com os eleitores - Doria Jr é acima de tudo político, sua atividade empresarial é fachada para contratos com o Estado. A escolha das ciclovias e da velocidade das marginais mostra que o tucano vai marcar seu anti-petismo em questões menores, no sentido de que envolvem menor conflito com interesses poderosos - ao menos assim aparentam. Não é por não ser radical que não deverá ser temerária sua gestão: a depender da proposta que o PSDB tem há tempos apresentado à nação, privatização dos espaços públicos, sucateamento dos serviços públicos, repressão aos opositores por parte da PM transformada em política política estadual, nortearão a administração pública, e só não avançaram a trote rápido se houver oposição na câmara e nas ruas.
Às forças progressistas e democráticas, não apenas de esquerda, urge se unirem, não apenas politicamente, mas em ações coordenadas para recuperar o terreno perdido pela Blietzkrieg midiática e golpista. Lideranças políticas, intelectuais comprometidos com valores como direitos humanos e democracia, movimentos sociais e pessoas avulsas, precisam criar uma contra-narrativa que dê conta de não haver mais golpes (de Estado ou eleitorais) comprados com tanta facilidade - a exemplo do pós-impeachment-golpe, o pós-eleição foi impressionante morno no centro de São Paulo, muitos poucos comentários -, e que torne a política novamente um valor positivo. Importante nessa tarefa: ativismo de internet serve para sabermos que não estamos sozinhos, mas tem pouco influência fora do círculo dos convertidos: é preciso, sim sair da zona de conforto do Fakebook e ir para o embate, para o diálogo, para o desgaste do cara-a-cara com pessoas que não pensam como nós (mas que pensam).
Uma faixa da população, os 2% de Major Olímpio, da SS, digo SD, e parte do eleitorado de João Doria Jr, parece estar condenada à vidiotia pelos próximos anos, completamente zumbizados pela narrativa de Globo, Veja, Folha e congêneres, e sobre ela, pouco há o que fazer, que não impedir seu crescimento; outra parcela, os que não votaram ou anularam, e muitos dos que votaram em Doria Jr, mostra que gostaria de acreditar na política como transformadora (para melhor) da sociedade, mas sucumbiu ao bombardeio midiático: trazer essas para a política, não apenas a eleitoral, mas a quotidiana: que a cidade (e o país) se faz no dia-a-dia por todos e não a cada quatro anos, ao delegar poderes a representantes que não as representam. Vale lembrar que a esquerda - no Brasil e alhures - se forja na resistência, nas disputas nas ruas pela inclusão dos excluídos. É preciso despertar o fazer político que a década de sonolência petista nos desacostumou - reabilitar o "nós" coletivo que Haddad e Erundina puseram na campanha.

03 de outubro de 2016.

Ainda não acredito que esse cara conseguiu se vender como trabalhador, que já foi do povo.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Pela aplicação da Lei de Talião no Brasil!

Não que o Brasil tenha sido algum dia um Estado Democrático e de Direito pleno - no máximo valeu para a parte rica e branca da população, hoje nem isso -, entretanto até 2015 mantinha-se as aparências, o que dava a esperança (pelo visto vã e ingênua) de que poderíamos caminhar para o que se chama de uma sociedade "civilizada", isto é, habitada por cidadãos e cidadãs com direitos civis e políticos garantidos, independente da sua condição. Tudo o que parecia sólido se desmancha no ar, e as ilusões perdidas sugerem que 2016 seja o ano da besta: golpe de Estado, encaminhamento para uma ditadura, discurso de ódio e incitação ao ódio em tempo integral nas concessões públicas de televisão (antigamente se restringia a certos programas) e na imprensa impressa (internet, sem empecilhos materiais, sempre foi espaço livre para o esgoto intelectual e político), políticos de extrema-direita com possibilidade de vitória em cidades importantes, e o show de horrores de judiciário: prisões arbitrárias, desrespeito à Constituição, crime lesa-pátria, torturas em Curitiba: vale qualquer coisa, desde que feita pelos amigos do rei contra o bode-expiatório eleito pelos donos do poder. Primeiro foi o colegiado do Tribunal Regional da Quarta Região legitimar o estado de exceção, ao dizer que tempos excepcionais exigem medidas excepcionais (de homens excepcionais, o senhor Adolf Moro?), ou seja, inventar leis retroativas conforme o arbítrio do juiz e seus pares, para que nelas se encaixem seus inimigos políticos, doravante podendo ser tratados por criminosos de crimes que inexistiam até o dia anterior. Agora é a vez do Tribunal de Justiça de São Paulo dizer que execuções extra-judiciais são legais - na política, o governador paulista Geraldo Alckmin é um dos grandes entusiastas dos assassinatos extra-judiciais praticados pela sua milícia política-militar -, ao anular o juri que condenou militares envolvidos na chacina de 111 (quem me conhece melhor sabe minha ojeriza a esse número) pessoas no Carandiru, em 1992 - e que respondem em liberdade, porque perigoso para a sociedade é petista, não assassino - os quais teriam cometido o assassinato em massa em "legítima defesa". "Tempos excepcionais exigem que se reescreva não apenas a história como os fatos", esqueceram de avisar o desembargador Ivan Sartori e seus pares. Nas redes sociais, "cidadãos de bem" e cristãos comemoram toda decisão que visa aniquilar pessoas que não concordam com suas posições ou não fazem parte do seu círculo próximo. Nada mais cristão, nada mais longe de Cristo - e depois torcem o nariz para Nietzsche quando ele disse que o último cristão morreu na cruz. Dostoiévski ironizava em O Grande Inquisidor, que se Cristo voltasse, morreria na fogueira. Hoje morreria apedrejado - que fogueira é coisa avançada para estes tempos. E não adiantaria Cristo dizer que atirasse a primeira pedra aquele que não tivesse pecado: nestes tempos, a primeira pedra há de ser atirada por um militar infiltrado - uma vez que pecado é algo individual, instituição ou ideal não pecam -, e as pedras seguintes estariam liberadas - não sei se era Cristo ou era do tempo, mas faltou malícia ao proto-hippie da era romana. E diante do Estado Democrático de Barbárie (com todo respeito aos bárbaros) que se instituiu nestes Tristes Trópicos, se torna cada vez mais necessário um movimento em defesa de avanços jurídicos mínimos: urge a implementação da Lei de Talião no Brasil, para garantir um mínimo de justiça à sociedade. Por exemplo: roubo de tênis ser punido com tênis, assassinato ser punido com morte, e não o inverso: roubo de tênis ser punido com morte e assassinato ser punido com tênis, a depender se o crime foi praticado por um preto pobre periférico ou um branco endinheirado. Reconheço, a Lei de Talião não me soa muito atrativa, mas direito romano é algo pra petralha e as regras que muito povos primevos seguiam nestas terras são desvalorizadas pelo simples fato de serem produto nacional - além de atéias -, e é preciso, diante desse estado de natureza hobbesiano que o judiciário tem implementado - a regra de todos contra todos -, algum código penal que forneçam um mínimo de eqüidade nas decisões de nossos divinos magistrados.

28 de setembro de 2016