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sexta-feira, 17 de julho de 2015

Tudo o que é leve se desfaz no chão [Diálogos com a dança]

"Dançar na selva de pedra" - foi a leitura feita pela amiga que me acompanhou ao espetáculo Sim, da KeyZetta&Cia, na Galeria Olido. De minha parte, não saí com leitura alguma, e mesmo depois, pouca coisa consegui captar do que o espetáculo pretendia comunicar. Não, isso não é uma crítica ao espetáculo: não quer dizer que não aproveitei ou não gostei, apenas não entendi, não consegui decifrá-los em códigos que me são familiares - e como o estranho, o estrangeiro, me atrai, estar em território desconhecido, me deparar com signos alienígenas pode ser algo prazeroso, ainda que um prazer diferente de quando me deparo com algo que me é familiar.
Este blablablá sobre mim mesmo pode soar egocêntrico e sem muita relação com o espetáculo que me propus comentar, contudo mostra ou uma severa limitação deste escriba ou algo sobre a companhia. Sem negar limitações razoáveis de minha parte, prefiro atribuir o estranhamento ao mérito de Key Sawao, Ricardo Iazetta e demais integrantes. Sim foi o quarto ou quinto espetáculo da companhia a que assisti - já deveria estar, portanto, mais familiarizado com sua linguagem. Sem contar que há um ano e meio sou aluno da Key Sawao.
A KeyZetta&Cia parece sempre disposta a pesquisar e experimentar elementos exógenos ou pouco usuais à sala de espetáculos e a apresentações de dança: sua veia é claramente na performativa, em jogos - questionadores - com o logos ou com o espaço. Sim dialoga com o espaço - e com a própria dança. Logo de cara, causa estranhamento a paisagem de um bosque pintada ao fundo, como cenário - não parece ornar com dança contemporânea. O chão, coberto de pedras brita, também desloca o espectador da sua zona de conforto - inclusive olfativa (daí haver máscaras cirúrgicas para o público se proteger da poeira) e sonora. A união entre esses dois elementos, admito, eu não consegui concatenar, diferentemente da minha amiga - talvez pelas pedras me remeterem imediatamente a estacionamento (não sou da cidade grande, onde shoppings oferecem estacionamentos asfaltados).
E são as pedras, em especial seu barulho, o que mais me chama a atenção: elas dão um grande peso aos gestos, a toda a dança. Me fazem lembrar de um dos meus trechos favoritos de Em busca do tempo perdido, no qual Proust comenta da importância da audição para dar corpo ao que é visto: “quanto ao surdo integral, visto que a perda de um sentido acrescenta tanta beleza ao mundo como o não faria a sua aquisição, é com delícia que passeia agora por uma Terra quase edênica onde o som ainda não foi criado. As mais altas cascatas se desenrolam, para os seus olhos apenas, mais calmas que o mar imóvel, como cataratas do Paraíso. Como o ruído era para ele, antes da surdez; a forma perceptível sob a qual jazia a causa de um movimento, os objetos movidos sem rumor parecem movidos sem causa”
Pode não ser agradável, mas Sim está intimamente ligado à audição, ao barulho das pedras sob os corpos que dançam sobre elas. Assim, todo gesto do espetáculo ganha corpo, esse corpo pesado que o balé clássico tenta fazer esquecer em seus saltos, que muito da dança - ao menos para o senso comum - tenta ocultar com seu ideal de leveza e superação da gravidade. Foi nos solos de Beatriz que essa condição e contradição me saltou aos olhos: seus gestos são leves, o movimento de seus braços me soam aquosos, mas o som desfaz a impressão de leveza que os olhos captam. Não querendo acreditar que aqueles gestos fossem capaz de tamanho peso, desconfio que o chão seja microfonado - minha amiga diz que não, e ela tem razão, uma vez que não há variação na altura do som, esperado conforme se aproxima ou se distancia do microfone.
Saio da Olido sem fazer ligação entre os movimentos dos intérpretes com o cenário e a trilha sonora de bosque com os sutis movimentos de luz com o chão cheio de pedras. A única ligação que consegui fazer foi entre a leveza e o peso - e para tanto, alguma coisa, algum preconceito, algum conceito há muito arraigado, se rompeu.

17 de julho de 2015


sábado, 28 de março de 2015

Frenético, alucinado, heterônomo: o corpo coagido [diálogos com a dança]

No centro do palco surge o dançarino em uma dança frenética, no ritmo da música eletrônica que toca alta e das luzes que piscam e se movem - não como estrobo, que parcela o movimento, mas vindas dos lados e de trás, fazendo com que tenhamos dificuldade em nos centrarmos naquele corpo que se apresenta genérico, se movendo sem sair do lugar. A música do tempo infinito. Me vem à mente o livro do psicanalista Tales Ab'Saber sobre a cultura eletrônica despontada sob o sol dos paradigmas neoliberais.
Acontece que O silêncio e o caos, do pernambucano Dielson Pessoa, não se propõe a falar, num primeiro momento, de cultura clubber: a obra foi concebida a partir do episódio de um surto psicótico do autor, em dois mil e dez, e dos quatro anos que se seguiram de tratamento.
Loucura, é disso que O silêncio e o caos trata - a questão é saber sobre qual loucura ele fala, de quais loucos.
Identifiquei nove momentos da coreografia. Do movimento solitário e frenético de um corpo genérico, Dielson desce à platéia, como quem almeja o encontro com o Outro. O sorriso vidrado e os movimentos estereotipados ininterruptos impedem um contato que não seja superficial e fugaz. Ele reclama cansaço, mas não pára - como se fosse obrigado a seguir sempre em movimento, sempre alegre. Dança pela platéia, retorna ao palco.
Como se a droga que usou estivesse perdendo efeito, ele vai diminuindo o ritmo, os gestos vão se sexualizando. Emerge um corpo andrógino, que logo se assumirá feminino - o corpo, não a pessoa. A feminilidade é interrompida por um corpo masculino antagônico: a marcha, a continência, o falar grosso. É no seu oposto que o protagonista afirma seu desejo. Dessa contradição parece emergir sua loucura: após isso ele pega um tecido, amarra à cintura - tem uma saia -; a seguir põe-no sobre os ombros - o transforma em manto - e proclama "eu sou o imperador!". No fim, cobre a cabeça e lhe resta a coberta com a qual se escondem os miseráveis. Arranca-a, faz o sinal da cruz, grita - "essa é a minha natureza!".
Delira. Afirma sua individualidade, sua desrazão o faz almejar ser sujeito numa sociedade reificada. Gesticula agressivo, fala sozinho, discute com seus espectros, desafia suas alucinações: "então me mata! Então me mata!". Não se acomoda em lugar algum - não sabe se fica no palco, se fica na platéia. O corpo colapsado não consegue mais seguir o ritmo da música - que segue alta e intensa - e das luzes - cujos focos seguem piscando de diversas direções. A fissão entre o corpo do artista e o espaço que o rodeia causa um incômodo na platéia, que até então mergulhava ela também no ritmo alucinado da música e dos movimentos. Também eu colapso, acompanho o desfazer de Dielson, que não consegue mais acompanhar o ritmo imposto pela música.
Ele pára, se ajoelha, chora, ri. A música e as luzes dão uma pausa. Os gestos se tornam mais leves - segue a necessidade do movimento -, perdem aquela carregada carga sexualizada do início. É como se tentasse se descobrir, para além de rótulos, para além do provar para o Outro. Porém ainda há o Outro nessa busca solitária. Ele pergunta: "é aqui, deus, que você quer que eu fique?" - eu me questiono: quem é deus, que Dielson, como tantos outros, evoca? Com quem se dialoga quando se questiona as alturas? Ele parece achar seu lugar numa réstia de luz, vinda de detrás de grades.
A música eletrônica retorna, num ritmo mais tranqüilo, longe das batidas impositivas do início. Dielson já não traz o sorriso vidrado - sua face pode variar de expressão. Ele vai diminuindo seus movimentos, até calmamente parar. Uma pausa de quem reflete, de quem decidiu ficar parado, não de quem é coagido a ficar assim. Ele ensaia não mais movimentos, mas posições - de como se pôr diante desse mundo alucinado que nos força a nos movermos sem sentido e até a exaustão?
O final é redentor para Dielson - não para nós. Nós saímos da sala Jardel Filho para seguirmos dançando o ritmo alucinado que um mundo louco nos impõe - até nosso colapso. Ou até termos coragem de enfrentá-lo para afirmar, sem nos violentar, nosso desejo de nos descobrir e de estar com o Outro.

28 de março de 2015.


quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Uma flor no viaduto Santa Ifigênia [Diálogos com a dança]

"Se eu falar, não acreditam", comenta o vendedor da loja de instrumentos musicais sobre o porquê estar gravando com seu celular o que se passa defronte a loja. Por um momento fico a me questionar ignorâncias: será que ele é de tão pouca confiança, ou será que seus interlocutores só conhecem a dinâmica previsível e pasteurizada dos shopping centers? Acima da loja, no primeiro andar do prédio, uma mulher surge na sacada, talvez apenas por rotina de ver o movimento da cidade, talvez atraída pela guitarra que não toca nenhum sucesso musical e ainda assim se destaca. Logo outras três pessoas estão com ela, assistindo. Pedestres passam, alguns indiferentes, outros observando sem diminuir o passo, outros param para tentar entender o que é aquilo - ou talvez não seja questão de entender, mas de apreciar, tão-somente -, um vendedor ambulante de carrinho de controle remoto faz oitos com a Ferrari - e assim seguirá, salvo quando o rapa passar -, um segundo se protege do sol escaldante na fina sombra do poste de luz, enquanto oferece água mineral, pouco adiante outro guitarrista toca, esse, sim, sucessos, clássicos do rock, na sua roupa prateada. É em meio a essa paisagem banal do viaduto Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, que cinco dançarinos ocupam-no e interferem no caminhar de seus transeuntes.
Novos Experimentos, da iN SAiO Cia de arte, se insere muito bem naquele ambiente urbano, os protagonistas sabem lidar com a instabilidade de interagir com um público que não está ali para assistir a dança ou a qualquer manifestação artística. A inserção, entretanto, não é feita sem perturbar esse ambiente: ela pode ser sentida nos espaçosos átrios formados nos trechos em que os dançarinos se concentram: há algo especial, extra-ordinário acontecendo ali - a arte não está no quotidiano da cidade, das pessoas. Essa ruptura do ordinário traz reações as mais diversas, da ranzinza indiferença ao acompanhamento atento, apesar do sol e da pressa. Ranzinzice que eles muitas vezes são capazes de atenuar, pressa que eles conseguem estancar - logo no início, quando as duas dançarinas caminhavam lentamente uma em direção à outra, uma mulher claramente apressada não conseguia continuar sua marcha, na ansiedade de saber o que viria daquele encontro, dois passos, parava, outro passo, estancava, e as dançarinas em seu passo lento, ela se virava para assistir, até, enfim, ambas se encontrarem, a tensão se resolver e ela poder seguir seu rumo. Ou quando o carro de polícia teve de esperar o dançarino que não interrompia seu bailado para a passagem da ordem. Diferentemente da performance Os cegos, na avenida Paulista [j.mp/cG23dez13], Novos Experimentos pretende romper com o quotidiano num confronto com a banalidade, não com as pessoas que a vivem. Não se pretende agressiva, apesar de não deixar de ser crítica: acredita que os freqüentadores do centro são capazes de mais que olhar, são capazes de ver - basta um estímulo que os tire do cinza da rotina.
Foto: Fabiana Choi [fafayc.wix.com/fabianachoi]
O porém de sair com o intuito deliberado de assistir a uma apresentação dessas, a uma intervenção no espaço urbano, na ordem do dia, é não ser pego de surpresa, é não ser você a buscar alguém quem te explique o que se passa ali - é apresentação mesmo, já que não há nenhum círculo ou semi-círculo de espectadores, apenas cinco dançarinos espalhados, um guitarrista, quatro ou cinco fotógrafos e pessoas passando, algumas se detendo alguns poucos minutos? Me pego observando mais que meu habitual os espectadores, as pessoas que passam, os vendedores que comentam, o carrinho de controle remoto que faz oitos. Passa um rapaz numa bicicleta de entrega, distraído com seu celular - logo ele passará de novo, sem ser sugado pelo celular atentará para aquela estranheza e ficará um tempo a assistir à dança. Lembro do teatro da Vertigem, "A última palavra é a penúltima", apresentado na passagem subterrânea defronte o teatro Municipal - a diferença é que não estou preso em uma vitrine, e na minha frente (e ao meu redor) passam pessoas em seus trajes de todo dia, não atores.
Porém, não ser pego de surpresa pela dança não quer dizer que não pode ser surpreendido durante ela: uma mulher, já passada dos sessenta anos, acompanhada de uma criança, olhos cheios d'água, pede um abraço a uma das intérpretes. "Não tive como negar", comentou ela, ao fim da apresentação. Como não há como negar que para as pessoas que passaram pelo viaduto Santa Ifigênia ao meio-dia desta quarta-feira alguma coisa mudou, algum atrito no seu quotidiano aconteceu, algum colorido exótico elas tinham para reportar a seus próximos no fim do dia. Em que reverberará essa experiência? Impossível saber, pode morrer junto com o dia, mas pode ter sido uma flor que furou o asfalto.

São Paulo, 18 de dezembro de 2014.


domingo, 7 de dezembro de 2014

K-popers no CCSP

Passando pelo Centro Cultural São Paulo ouço gritos histéricos vindos da sala Adoniran Barbosa. Dão a impressão de haver ou um astro pop a la Michael Jackson, Beatles, ou uma gincana de colégio muito empolgante e disputada. Na entrada da sala, um cartaz me diz que é algo nesse meio termo: "K-Pop Tournament", torneio de danças cover de bandas e cantores e cantoras pop da Coréia do Sul. Não sei muito detalhes, se é monopólio como a brasileira, ou olipólio, sei que Coréia do Sul possui uma forte indústria cultural, com novelas com ótimo nível técnico exportadas para os países vizinhos, e uma série de boys e girls bands e artistas solos que cantam um pop super redondo, com clipes e coreografias que impressionam pelo rigor - e, a exemplo de Nova Iorque, essa indústria cultural forte acaba por criar uma cena independente interessante. O CCSP é um lugar que reúne pré-adolescentes e adolescentes empolgados com bandas de k-pop: diariamente é possível ver grupos ensaiando, e aos finais de semana é impossível não vê-los. Por mais que considere as danças (e as músicas, via de regra) do estilo antes ginástica hiper-coreografada e tenha torcido o nariz quando escutei, certa feita, uma discussão ao meu lado em que três rapazes já acima dos vinte anos se diziam artistas por dançar k-pop, acho interessante se reunirem para dançar - desde que não exagerem no volume da música. Nutro a esperança desses jovens serem menos homofóbicos (há muitos gays, alguns que tenho visto lentamente se montarem para dançar como mulheres) e num futuro se dedicarem a uma dança mais que técnica e bonitinha, mas significante e causadora de tensões no público.
Enfim, à competição, que acompanhei brevemente, cinco músicas incompletas. Coreografias (as coletivas) muito sincronizadas, de precisão coreana, a sucessão entre os competidores praticamente sem pausas - tempo para o anúncio (impossível de ouvir por causa dos gritos) da próxima atração e já está a música rolando, os adolescentes pulando, a platéia gritando. Mais interessante que os dançarinos é o público, que não apenas canta junto (em coreano), como acompanha a coreografia, sentados, com gestos contidos. Isso para não falar nos gritos histéricos, de homens e mulheres, nos momentos oportunos: notei que as músicas possuem uma ou duas pausas, em instantes propícios para os gritos dos fãs. E não é torcida: é quase todo mundo gritando para todas as apresentações (o que me leva a perguntar por que fazer uma competição, e não apenas um dia de apresentações). Às vezes alguns cartazes, feitos de canetinhas e folha de caderno, são levantadas. Quem se apresenta segue impassível a tudo isso, concentrados na coreografia. Um casal (piá e guria), ao que tudo indica, vai além da coreografia oficial e se beija ao fim da apresentação - o público alucina. Eu dou risada, volto para casa, além de já me dar por satisfeito, tenho coisas na mochila pra guardar na geladeira. Me pergunto como não deve ser um show de um astro do k-pop, como anunciado em uma mesa perto da saída da sala. Acho graça, mas ao mesmo tempo minha jugular crítica me faz ter um quê de profundo incômodo com tudo isso.

São Paulo, 07 de dezembro de 2014.

Ps: uma coisa que admito ser muito legal, mesmo estando nessa lógica de mercadoria é a t-girls band (isto é, transexuais), Lady (레이디)
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domingo, 28 de setembro de 2014

Dark Rooms ao nosso redor, dentro de nós. [Diálogos com a dança]

Entre o provocante e o anestesiado. Entre o infantil e o adulto. Entre o lúdico e o violento. Qual meio é esse em que se situa as salas escuras onde pessoas se encontram e se penetram, sem saber quem é o Outro? Os sentidos à flor da pele - mas quem habita essa pele? Entre a obrigação de gozar e o desejo de dilapidação do corpo alheio, há um sujeito que age ou apenas um corpo que reage? Esses são alguns questionamentos que _DARK_ROOM_, montagem de Claudia Paula para a iN Saio Cia. de Arte, provoca no público.
O palco fechado dos quatro lados e vazio no seu interior é ocupado por cinqüenta espectadores, junto com seis dançarinos e dois técnicos. As cenas - se é que podem ser chamadas assim - ocorrem em algum lugar dentro desse limite, entre os espectadores, que se movimentam para onde a cena aparentemente chama, e também se movem livremente pelo espaço. Nesse espaço algo abstrato, algo familiar - a maioria ali conhece, se não dark rooms, baladas que se assemelham ao palco -, há uma certa dose de risco, tanto para os intérpretes - um homem na meia idade que resolve apalpar uma intérprete, ou algum espectador que decide se juntar aos seis corpos suados -, quanto para o público - um chute no joelho, uma cabeçada no ombro, para ficar nos exemplos que me tocaram. 
Uma dark room é - no imaginário, ao menos - um lugar para quebras. _DARK_ROOM_ também provoca as suas: pausas na música, silêncio para conversas, interrupções do movimento - espaços para o encontro com o Outro, ou apenas momentos de constrangimento? Fico com a segunda opção: a música do tempo infinito não pode parar.
Não raro as cenas começam com certa leveza: jogos infantis ou adolescentes por corpos já feitos - o puxar a roupa ou o tapa de brincadeira, a alegria abobalhada adolescente -, porém não tarda tais brincadeiras perderem sua graça e não resta delas nada mais que agressividade: o tapa na cara, o empurrão que derruba, o apalpar violento: a descoberta do corpo Outro se transmuta em dilapidação desse corpo, caminho e empecilho para o gozo.
Em que medida o mero contato de pele satisfaz nossos desejos de reconhecimento? Esses contatos são capazes de reverter o desejo de aproximação em aproximação do desejo? Há sujeito por trás daqueles corpos que dançam? Há sujeito dentro daqueles corpos que observam? Ignorar o Outro permite aprofundar em si? Em que medida em nossas dark rooms particulares não fugimos desse contato com o Outro e, conseqüentemente, do contato conosco? O narcisismo desesperado nosso de cada dia é capaz de produzir algo mais que excitação, insatisfação, violência ou apatia? 
_DARK_ROOM_ é mais que um exercício de questionamento, é uma afronta à nossa normopatia, nossa capacidade de adaptação e aceitação. Precisa nas perguntas, _DARK_ROOM_ nos abandona sem respostas.

São Paulo, 28 de setembro de 2014.

ps: impossível não lembrar de alguns livros após assistir ao espetáculo. Três pulularam em minha mente: A música do tempo infinito, do psicanalista Tales Ab'Saber; Mal-estar na atualidade, do também psicanalista Joel Birman, e Amor líquido, do astro pop da filosofia, Zygmunt Bauman.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Dança de pequenos ruídos e amplas pinceladas

Uma dança de pequenos ruídos e amplas pinceladas, entrecortados por movimentos constritos e silêncios. Em Iki - Respiração, Toshi Tanaka obriga o público a se desfazer, temporariamente, da temporalidade fora da caixa preta da sala Paissandu, na Galeria Olido, centro de São Paulo. Obriga também a repensar não apenas a correria so nosso dia-a-dia, como qual a tônica desse universo apresentado por uma hora e quinze minutos. 
Silêncios, pausas, permanências, rompidos em um impulso - constrito -  para a pincelada de nanquim sobre o papel. Pincelada precisa - não no sentido de se expressar em um só golpe, mas de exteriorizar o necessário. Toshi golpeia o papel, ou apenas imprime nele a força criadora de sua coreografia? A relação agônica entre homem e meio vencida pela simbiose de ambos. 
Um mestre, quatro discípulos - leio na cena a força da tradição. Uma tradição que desconheço, não me diz respeito, mas me surpreende, com a qual me identifico - ao mesmo tempo que estranho. 
O som do vento, produzido guturalmente pelo artista, o nanquim, que escorre pelo corpo semi-nu antes de marcar o papel, a pincelada curva. As quatro telas pintadas são alçada no espaço - em uma delas, em seus amassados da performance, tenho a impressão de ver a silhueta de um corpo, suas dobras impressas antes da tinta. Será? 
O lento desdobrar do papel no chão, a ajudante tornada sombra, o reaparecimento de Toshi, corpo novamente coberto - e pintado. O cheiro de nanquim, o silêncio, os ruídos, o som gutural. A tradição, a performance, o estranhamento - a estranha sensação de se sentir diante de uma cena familiar que eu nunca vi, não entendo exatamente o que tenta fala, mas me toca.   

São Paulo, 24 de setembro de 2014

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O homem sem resistência

(Livre interpretação de Black Out, da Plataforma Shop Sui)


"O homem sem resistência" - se eu precisasse resumir em uma frase a coreografia Black Out, de Fernando Martins, da Plataforma Shop Sui. Algo bastante pertinente, diante do que diz o programa, de que a obra "relata os demônios interiores que atormentam um ser nas últimas horas de sua existência": há como resistir ao indefectível? Minha leitura, contudo, não foi de alguém em suas últimas horas, mas de um indivíduo em seu dia-a-dia, alguém que vive a vida que lhe permitem, se adaptando ao que há, sem questionar o porquê, tentando poupar o peito para evitar a dor.
Diante de um trecho de música repetido exaustivamente, compulsivamente, presenciamos um corpo que parece não pertencer ao seu sujeito - o qual está mais preocupado em desviar das luminárias e seguir para o próximo foco aceso. Em um trabalho corporal de impacto, vemos o intérprete fazer alegorias a, citações de movimentos estereotipados. Movimentos executados com precisão, mas que não lhe pertencem. E nesse estranhamento do sujeito consigo, não só os movimentos se desfazem, como o próprio corpo se desfaz. Mais: se desfaz enquato pessoa, em quanto sujeito. De não resistir em não resistir, de foco em foco, de ordem em ordem, ao não encarar essas pequenas e banais violências mudas, não opôr resistência a elas, fugir do enfrentamento, da dor, o sujeito vai sendo reduzido e massacrado em sua humanidade, ele se zoomorfiza - em boi, em pavão. Não por acaso seu grito - amplificado por um megafone - é metálico, não-humano. Um grito de desespero de quem não é mais ouvido em sua aflição. 

São Paulo, 05 de setembro de 2014.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Cálamo e a cidade ao fundo

Cinco pessoas – três homens e duas mulheres – paradas na entrada principal do edifício Domingos Fernandes Alonso, de frente para a avenida São João. Uma luz forte ilumina eles e parte da calçada – imagino que o transeunte poderia ter a impressão de algo como uma vitrine, apesar de faltar o vidro que distancia o espectador da rua do que é apresentado, e apesar da luz vir de trás e não da frente. Chamam a atenção de quem passa. Algumas pessoas param para ver do que se trata – ficam um tempo e seguem seu rumo. Vinte metros longe, dentro do edifício, sentados nas escadas que levam ao Cine Olido, os espectadores que foram para ver “Cálamo: novos experimentos”, da iN SAiO Cia de Arte. Os quatro dançarinos (uma dos integrantes da apresentação é guitarrista, e fica no meio do caminho, tocando guitarra junto ao amplificador) circulam pelo saguão, sobem as escadas, descem-nas se arrastando, abrindo espaço por entre o público acomodado, trombam com pessoas que se dirigem aos caixas eletrônicos que há no caminho, saem do edifício, dançam na sua entrada – ou próximo dela –, onde se dá boa parte da apresentação, distante do público específico – no início ela ainda se focou um pouco mais nas escadas. A rua ao fundo ganha ares de cenário, numa apresentação com fortes características de performance, de muito chão e pouco ar, muitas quedas e poucos saltos. A cidade e seu ritmo ao fundo compõe com os corpos que caem, com as pessoas que remexem a roupa compulsivamente, que se jogam e ficam estáticas. No reflexo do vidro vejo o sinal para pedestres alternar vermelho-verde-vermelho. Dois policiais passam bem debaixo da luz, com a impressão de estranhamento. Estranhamento é a impressão de muitos dos que param para assistir. Um carroceiro passa indiferente. Ônibus e carros seguem seu trajeto na avenida. Um grupo de quatro garotas pára para ver, se assustam quando uma dançarina se joga aos seus pés – tomam distância, ficam um tempo mais assistindo à apresentação, e seguem. Os dançarinos puxam da rua algumas pessoas que estavam assistindo – ao que tudo indica, pelas roupas e desenvoltura, pessoas que estavam ensaiando em uma das salas da Galeria até pouco tempo atrás –, se tocam, se enroscam, se confundem. Quando estão próximos do “público”, nas escadas, uma senhora moradora de rua resolve entrar no saguão e dançar também. Foge quando um dos bailarinos se aproxima. O público ri. Duas pessoas circulam por entre os dançarinos, encarregadas de documentar a apresentação, como se fosse possível ter idéia dela por meio de foto ou vídeo. Perto da metade, já quebrado meu deslumbre inicial do recorte da cidade como parte da apresentação, começo a ficar incomodado com o fato d'ela acontecer tão longe. Decido inverter minha perspectiva. Atravesso o saguão em meio a um rapaz que rola no chão e uma garota que interage com duas crianças de cinco anos, se tanto. Na rua não tenho mais o cenário urbano, mas também não há mais coxia: a apresentação que temporariamente se encerrava com a saída dos dançarinos do saguão continua na calçada. O público espectador, passivo, ao fundo, longe dos bailarinos, não causa a mesma impressão como possível cenário: uma massa amorfa e, em certo sentido, desprezível – reagirão no final, se os dançarinos quiserem saber das suas reações. Fora do prédio, próximo do espaço onde os dançarinos desenvolvem por mais tempo a “coreografia”, encostado num orelhão, sei que então faço parte do cenário. Quando, por duas vezes me vejo cara a cara com um dos dançarinos, descubro ser cenário mais do que cenário: por mais que guarde alguma distância da entrada, não estou distante: sou parte da cena – mesmo que eu esteja só assistindo, segurando o queixo com cara de entendido. Corro o risco de ser levado pro centro do “palco”, ou de ser alvo de intervenção mesmo distante – assim como eles correm o risco de eu intervir na sua apresentação. Eles encerram “Cálamo” na entrada, distante do público espectador. Agradecem, agradecem quem aplaude da rua. Ali, próximos, a impressão de estarem numa vitrine continua: a questão é que a vitrine não é para a rua, mas para o público passivo distante.

São Paulo, 12 de julho de 2013.

domingo, 30 de junho de 2013

Lupicínio, dança, Paulista e polícia – embalos de um início de sábado à noite.

Adentro o chuvoso domingo em SP assistindo ao muito expressivo e performático Arrigo Barnabé interpretando Lupicínio Rodrigues. Uma apresentação deliciosa para encerrar minha agradável noitada cultural, que começara naquele mesmo endereço algumas horas antes, com a Cisne Negro Companhia de Dança apresentando as coreografias “Revoada”, de Gigi Caciuleanu, e “Sra. Margareth”, do israelo-americano Barak Marshall. Nesta, a música cigana que algumas vezes é executada para embalar a dança dos doze serviçais da Sra. Margareth faz uma crítica sutil mas muito precisa da, vamos chamar, hierarquia dos povos na divisão internacional de trabalho. Entre as duas apresentações, com uma hora livre, ignoro a chuva e resolvo ir até a Paulista, dar uma olhada no movimento do sábado à noite. Ainda antes de chegar na avenida Brigadeiro Luís Antônio, dois catadores de latinhas: não sei se disputam os sacos de lixo ou se trabalham colaborativamente. Na Brigadeiro, uma agência bancária com uma porta de madeira provisoriamente no lugar da de vidro. Paredes gritam que R$ 3,20 é um roubo. Eu digo que R$ 3,00 também é – mas o momento não autoriza novas manifestações no curto prazo pelo Movimento Passe Livre, infelizmente. Dois mendigos dormem protegidos da chuva sob uma marquise. Passa outro por eles, e com a mão simula vários tiros nos que dormem. Pouco antes, outro morador de rua ajeitava a cueca. Na Paulista, o movimento é razoável – ainda não são onze da noite. Passo por um grupo de seis adolescentes, discretamente animados com a noite que começa. Em frente ao prédio da Gazeta, pessoas se amontoam no pedaço de marquise disponível (as escadas estão barradas por grades). Vou até o prédio da Fiesp, onde o ex-socialista resolveu pôr uma iluminação nacionalista, e resolvo voltar. No caminho, o grupo de adolescente está contra a parede, debaixo da chuva. Os que usavam bonés, os têm na mão. Reparo nos garotos. Dezoito anos, se tanto. Parecem bastante ingênuos. São ou morenos ou negros, e trazem no estilo a marca escancarada de serem da periferia. Dois policiais – um deles negro – se preparam para uma geral. Lembro de um amigo que conta que dificilmente quando vai pra noitada passa sem uma revista da polícia militar – ele não tem estilo de periferia, mas é negro –, a ponto de quase nem se incomodar mais – Pavlov talvez explique. Lembro também dos manifestantes na Paulista, dia 20 de junho, tirando foto com essa mesma polícia militar, naquele clima de comunhão nacional, quando, dizem, o gigante acordou. Certamente não eram esses garotos ou seus amigos e vizinhos quem tiravam tais fotos. Sigo meu trajeto rumo ao teatro Sérgio Cardoso. Ficam para trás os seis garotos da periferia, os dois policiais, e o prédio da Fiesp iluminado com a bandeira do Brasil, ostentando que, condizente com nossa história nacional de exclusão, a Paulista não é para todos.


São Paulo, 30 de junho de 2013.