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segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Casa vazia - retorno melancólico a São Paulo

Volto para São Paulo, para tomar a dose extra da vacina - não que Pato Branco não tenha, mas é tão organizado e bem divulgado que é quase como se não tivesse -, encontrar alguns amigos e pegar algumas coisas úteis que deixei para trás em minha saída às pressas, há quatro meses, com dez dias para organizar o que foi possível e ir acompanhar minha mãe em seu tratamento de saúde. 

Abro a porta do apartamento e sou tomado pelo familiar, pelo aroma característico de minhas casas - que uma ex-namorada certa feita definiu como misto de tênis pé com naftalina, talvez este cheiro vindo de tantas memórias guardadas, já que o antitraça mesmo, não tenho. O segundo momento é de estranhamentos. Primeiro, da ausência de meus gatos (que ficaram em Pato): chegar sem tê-los para me receber fez eu sentir a casa vazia como nunca sentira antes. Depois, das pequenas mudanças na ordem dos móveis: por um mês uma amiga ficou em minha casa (o plano era que ficasse enquanto eu estivesse fora), e também saiu às pressas, devido a questões pessoais. São pequenas alterações, nenhuma significativa, mas o suficiente para me lembrar: estive um tempo ausente, muita coisa aconteceu lá fora, e mesmo aqui dentro as coisas não são como antes.

Passo praticamente uma hora apenas respirando essas mudanças. Algumas dou conta de saber onde estavam antes, outras, simplesmente não consigo achar onde era seu lugar. O sofá da sala está mais para o centro, o arranhador dos gatos virado 90°, a mesinha de centro no centro da sala - mas encostada em que parede ela ficava antes? -, a espada de São Jorge longe da janela, a rede, recolhida. A cômoda do quarto em outra parede, o boneco para desenho de observação longe dos quadrinhos que ganhei da Dani e do Felipe. O banheiro sem os apetrechos dos gatos parece descomunalmente amplo - e demoro para me dar conta do que causava essa impressão. Na área de serviço estão os tapetes da casa (vários deles deixados pela antiga dona), não sei se limpos ou por lavar - seu cheiro é o mesmo de todo o resto da casa -, e uma profusão de caixas de papelão que deixo para os gatos: só então noto que a casa está limpa de todos esses cacarecos para os bichanos. Minha kombucha ainda está viva, um pacote de macarrão aberto fez uma prateleira se infestar de carunchos. Penso em Meio Sol Amarelo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Por ora a comparação é desmedida: a urgência se deu por motivos pessoais, mas se e quando toda essa guerra que se arma pelos fascistas de variados matizes estourar, meu regresso ao lar de São Paulo será apenas para uma casa vazia e com carunchos? Terei ainda uma casa? Ou terão queimados meus livros em praça pública, juntos com de tantos "comunistas", como fizeram com os 30 mil exemplares de Álvaro Linero, vice-presidente da Bolívia, em 2019?

Preparo um chimarrão. A cuia que uso é a mesma que aprendi a tomar mate - argentino -, em 1997, e ganhei de presente do Celestino quando me mudei de Pato Branco. As aulas no colégio em frente voltaram - trocaram o sinal, puseram o hino nacional no lugar de O Barbeiro de Sevilha -, mas as galinhas do pátio da escola, não. Coloco uma música para me acompanhar na solidão que me toma - a sequência mantém o clima nostálgico: Mogwai, Clap Your Hands Say Yeah, Songs: Ohia, Verve, Galaxie 500, Blick Bassi, Cícero - recordo que quem mo apresentou foi a Misson. 

Noto a ausência do cinzeiro que ela comprara para quando fumasse em minha casa - depois da sua partida utilizado como vaso para meu cacto, e após ele morrer também (tinha 19 anos), apenas uma recordação de enfeite enquanto espera novo uso. Encontro-o no armário dos pratos - e me questiono como terá sido sua ressignificação pela minha amiga. Na pia, uma caneca da Rosa Luxemburgo esperando ser lavada: "quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem". Eu complemento: quem se movimenta apenas no espaço que lhe é autorizado, também não. Às vezes o movimento não precisa ser no espaço físico, pode ser intelectual, pode ser da memória. Passeio entre lembranças, vazios e medos - que me prendem, os três. A mochila que deixei no sofá e uma sacola preta largada na porta do banheiro mais de uma vez fizeram com que eu visse Guile dormindo e Libertad à espreita. Mas estou sozinho. Será que eles também sentem essa ausência toda quando estou fora? Apresso minha saída para tomar a vacina - saberei logo mais, no caminho, que, apesar do bonito céu plúmbeo, será uma caminhada melancólica e ressentida por entre recordações, desejos e questões mal resolvidas.

13 de dezembro de 2021.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Uma tarde preguiçosa

A tarde é preguiçosa. Há um ar de feriado na casa, apesar de lá fora estar estipulado que é dia de trabalho, com as máquinas das construções em volta a abafar o som dos pássaros - ainda assim, há pouco escutei uma revoada de quero-queros. Com a internet fora do ar, meu irmão está a jogar computador - já foi fiscalizar se suas galinhas seguem todas no quintal: seguem. Minha mãe tira a sesta habitual - vai acordar daqui a pouco para a hora da fruta, três da tarde, tal qual meu avô fazia. Esqueceu a porta  do quarto aberta e Guile, meu gato, se abancou ao seu lado, guardando prudente distância para não acordá-la e ser posto para fora da cama. Minha outra gata, Libertad, dorme no sofá ao meu lado, na sala de visitas - que apesar do nome, poucas vezes foi utilizada para esse fim -, enquanto eu me espicho no sofá mais velho da casa, com mais de trinta anos, e o mais confortável também - e lembro ainda indignado que minha mãe deu as outras duas poltronas que compunham o jogo, assim como indignado fico quando lembro que meu pai deu o rádio três-em-um da National, de 1976, em perfeito estado. Na impossibilidade de assistir às aulas online, me deixo levar pela Isabel Allende, e seu A casa dos espíritos. A escrita doce da chilena me inspira a escrever também - ainda não cheguei na parte de decadência que se anuncia para o último terço. Diferentemente da do romance, a casa de minha mãe não fica na esquina, mas bem no meio da quadra, e nunca foi lugar para serões nem encontros sociais. O mais próximo disso deu-se por obra dos filhos, na infância, a trazer os amiguinhos (dos quais hoje não me resta nenhum), e das visitas de parentes (boa parte uma classe média a prestações e incompente que age como se fosse Esteban Trueba), também coisa de um outro tempo, de um outro mundo - vários dos quais ainda seguem vivos, infelizmente, e assombram feito almas infernais com ameaças de visitas cheias de ódios e nesciedades, que repilo com menos violência que, calado por anos, presenciei em suas palavras contra nordestinos, negros, pobres, gays, presidiários, maconheiros, políticos, comunistas, petistas (como meu pai, que preferia ficar quieto a se rebaixar a discutir com "panacas", como ele qualificava, numa sonoridade de tapa no PAnaca). Bem que Clara havia dito à Blanca que são os vivos, não os mortos, que devemos temer. Por mais que a casa tampouco tenha tido espaço para o sobrenatural, pergunto que espíritos poderiam estar a povoá-la agora. Meu pai, meu avô, os bichos de estimação que tivemos. Meu eu criança também vaga por aqui, creio. Desconfio que esteja lendo o livro por sobre meu ombro, pensando que achava mais legal quando em uma tarde assim eu passava vendo desenhos animados ou brincando lá fora: um tempo em que ao olhar pela janela eu tinha uma ampla visão do céu, entrecortada apenas por árvores, e não esse céu esquadrinhado por prédios de gosto de duvidoso e necessidade contestável - salvo a necessidade de enriquecer os ricos empreiteiros deste sertão latinazi de futuro estéril. Lembro que durante minha infância, da janela da cozinha, antes dos prédios brotarem como formigueiros, se as árvores não estivessem muito grandes, víamos o relógio da igreja matriz - assim como ouvíamos seu badalar a cada quinze minutos. Hoje não é possível vê-lo nem escutá-lo - mas se fosse possível, seria sem utilidade, já que está parado na hora errada desde que Frei Policarpo morreu.

27 de outubro de 2021


PS: Foto tirada três horas depois da crônica.

domingo, 19 de setembro de 2021

O ponto onde estou

Por estes dias, na casa de minha mãe - que foi a casa de minha infância e adolescência e ainda hoje chamo de "minha casa", ainda que "minha casa" também seja a casa de São Paulo -, fiquei a me questionar onde eu imaginava que estaria beirando os quarenta anos, quando ainda residia aqui. Que planos tinha aquele adolescente? Que esperava ele do futuro, essa matéria-vácuo da qual é feita a nossa vida, o nada que nos anima a permanecer vivos? Ainda que o corpo preso ao presente, tributário do passado, suportaríamos a existência sem a perspetiva do devir? Uma questão que a necropolítica que toma nossa sociedade nos impõe cada vez mais. 

Penso em Mathieu, do romance A idade da razão, de Sartre. Nunca sonhei ser livre - provavelmente porque nunca tivesse parado até então para refletir o quanto estou preso, não só na própria dureza da matéria que nos compõe e nos cerca, como nesse bem intricado jogo de espelhos sociais que oculta de nós nossa verdadeira condição. Talvez porque também nunca tenha estado preso forte o bastante para achar incômodo: e aqui não por ter tido uma falsa consciência de que seria livre, mas por ter tido pais que me autorizavam a experimentar bastante (ainda que menos do que, no fundo, eu gostaria), por ter tido a sorte de estudar a primeira infância numa escola que não me tolhia até o último broto, até me tornar um bruto reprodutor de uma cartilha, de uma cantinela do poder (ainda que toda educação, todo processo civilizatório, implique em renúncias e limitações), por ter sempre voado em pensamentos, esse rincão onde as limitações chegam muito mitigadas (eu nunca soube o que é tédio).

Ao pensar nas minhas aspirações de infância e adolescência, noto que havia uma ingênua crença numa liberdade classe média: de que meu futuro quem faz sou eu - ainda que desde cedo meus pais tenham me ensinado que há limitações, como não ter sido piloto de fórmula 1, porque meu pai não quis comprar um kart (deixa de lado o fato de que ele não tinha condições), ou jogador de futebol, porque meu pai não me autorizou a uma viagem de oito horas sem condições de segurança. Por sorte, trinta anos depois, ao menos eu não corro mais atrás dessa ilusão perversa. 

A criança de cinco anos que tiraniza Mathieu, cobrando dele a realização de suas esperanças, em mim fica restrita ao passado - ainda que o processo de isolá-la sem presentificá-la tenha levado árduos anos no divã, um trabalho complexo para superar a sensação de ser um fracassado a cada renúncia, desistência ou a cada... fracasso. E é por isso que posso repassar os sonhos daquele adolescente que fazia as tarefas de casa nos intervalos entre as aulas para poder passar a tarde jogando video-game, assistindo à MTV Latina, e indo jogar futebol às cinco e meia no Patão - depois substituído pelo "café com jornal" com os pais -, sem dor ao afirmar: para o Daniel de 1996, o daniel de 2021 é um grande fracasso. Uma retubante coleção de erros que não levaram a nenhuma grandeza (eu mesmo preferi passar a grafar meu nome todo em minúscula, como forma de não me pôr acima de nada), que desembocaram num grande nada a espera do amanhã.

Quando decidira por cursar psicologia, depois de um leque considerável de carreiras que me interessavam - arquitetura e urbanismo, nutrição, estatística, filosofia -, e optara por ser na USP de Ribeirão Preto, tinha posto para mim que minha meta era me tornar um intelectual - que então eu confundia, por ignorância, com a área acadêmica e de escrita. Talvez eu ainda persista com essa meta. Como meu objetivo na psicologia era pesquisa e ensino, e eu fazia questão de ser em algo que eu gostava, desisti do curso para fazer filosofia - dessa vez na Unicamp, por medo de morar em São Paulo, a cidade pela qual hoje sou apaixonado. 

E a vida foi se entortando: participei de projetos de extensão social, da rádio livre dos alunos (a Rádio Muda, e até hoje meu e-mail é o do programa que eu apresentava), fui dar aula de alfabetização para adultos e em cursinho popular. Descobri que leitura vai muito além dos livros, que títulos acadêmicos não tem uma ligação necessária com conhecimento, e que o diálogo com o outro, principalmente o vindo de outra realidade social, é um manancial de conhecimento que nenhum curso consegue suprir. Não só perdi meu preconceito uspiano (e unicamper também) com professor de ensino fundamental ("professor é professor porque não teve capacidade para ser pesquisador", como disse certa feita um ex-presidente da república que pouco investiu seja em ensino, seja em pesquisa), como vi que a burocracia na academia deixa pouco espaço para o que eu entendia como intelectual: uma pessoa com conhecimentos aprofundados e ao mesmo tempo uma razoável visão de mundo, engajado de alguma forma socialmente - que não na linha neoliberal "fazendo meu melhor estarei contribuindo para a sociedade". 

Sim, há quem consiga conciliar (como o Vladimir Safatle, Peter Pál Pelbart, Miguel Nicolelis, entre outros), mas são exceções: de meus colegas de faculdade, não sei se algum conseguiu; da minha parte, há tempos reconheci que sou uma pessoa bem mediana (e lenta de raciocínio), sem capacidade de conciliar, e fiz minha escolha - que é mais uma tentativa, já que não há posto a ser alcançado. A escrita virou um hábito, uma forma de eu organizar para mim mesmo meus pensamentos - e pô-los à prova, caso alguém queira ler (além de meus pais). E confesso: tirando os quatro livros que publiquei até agora ([memórias feitas de saudades], Trezenhum. Humor sem graça., Passageiro e Linha de Produção/Linha de Descartes), e alguns poucos textos (a maioria dos quais pretendo lançar em livros), dificilmente encontro algo que escrevi que me agrade. Os próprios livros foram lançados para uma satisfação pessoal, já que suas vendas não vão além de poucos amigos - inquestionáveis fracassos de vendas e crítica.

Me ponho a perguntar: e se o daniel tivesse realizado os sonhos grandiosos do Daniel, onde estaria eu hoje? Provavelmente "casado, fútil, quotidiano e tributável". Professor universitário em uma cidade média, em um relacionamento monogâmico estável (ou em busca de um), sem filhos, preocupado com burocracias, escrevendo artigos técnicos que só pareceristas leriam, conversando com pessoas sempre muito parecidas, e mal vendo a hora de chegar as férias para fugir do dia a dia (lembro agora que minha primeira namorada uma vez disse que me via no futuro em roupão, lendo jornal pela manhã, indignado com os desvarios do mundo, sem conseguir ir além da sala da minha casa com minha indignação; ela estava certa, se eu tivesse seguido "em linha reta").

Ter sido um fracassado, um traidor de meus sonhos infantis e adolescentes, me permitiu ser coerente àquela visão de mundo crítica e empática que aprendi com meus pais; me deu oportunidade de fugir de amarras sociais bem camufladas e tentar, sim, uma certa liberdade que aos quinze anos eu nem sonhava existir; me fez ir além da indignação impotente e tentar construir ações efetivas de transformação social em prol de uma sociedade mais justa e igualitária - que o diga cinco anos trabalhando junto à Pastoral dos Migrantes, mesmo sendo ateu; e meu atual trabalho junto a cooperativas de catadores de recicláveis. Me tornei um escritor de domingo (para usar outra expressão de Sartre) que sonha um dia em conseguir redigir uma obra-prima, mas não se cobra por ela - se não vier, não é por ela que estou vivendo -, enquanto planeja qual o próximo curso que vai fazer (corte e costura? palhaço? mais outra graduação ou mestrado?). 

"Só quero saber/ Do que pode dar certo/ Não tenho tempo a perder", diz uma música de uma banda de sucesso. Por sorte, a condição de classe média me permitiu perder tempo, fazer coisas aleatórias e sem utilidade prática imediata - ou mesmo quando tinham, não consegui seguir na profissão e isso não foi problemático (como iluminador cênico ou marceneiro) -, e pude, em meu trajeto de vida, aproveitar o caminho e a caminhada, sem ter o olhar fixo unicamente no destino. Melhor: pude, a partir de certa altura, sequer me impor destino a ser alcançado que não fossem pequenas vitórias, como a publicação de um livro ou uma apresentação de dança. Daí eu preferir a letra amargurada de um banda de menos sucesso: "Tudo o que eu sempre sonhei/ Tanto que eu consegui/ É tão bom estar aqui/ Quanto ainda está por vir?".

Não cheguei onde eu queria, e sim onde nunca imaginara. Tenho várias frustrações, nenhuma delas por ter abandonado os objetivos planejados e as rotas traçadas quando era mais jovem.


19 de setembro de 2021.


* Apenas para salientar: tenho plena consciência de que toda liberdade é limitada e condicionada.

** Para ser mais preciso quanto à frase de FHC que representa o pensamento de muitos acadêmicos: "Se a pessoa não consegue produzir, coitado, vai ser professor. Então fica a angústia: se ele vai ter um nome na praça ou se ele vai dar aula a vida inteira e repetir o que os outros fazem" (Folha, 27/11/2001)

*** Tudo o que sempre sonhei, do Pullovers:



**** O trecho do Sartre que fui atrás para complementar este texto, em tradução lusitana:

"«Uma vida», pensou Mathieu, «é feita com o futuro, como os corpos são feitos com o vácuo». Baixou a cabeça. Pensava na própria vida. O futuro penetrara‑a até à medula. Tudo nela estava em suspenso. Os dias mais recuados da sua infância, o dia em que dissera «Serei livre», o dia em que dissera «Serei grande», apareciam‑lhe, ainda agora, com o futuro particular, como um pequenino céu pessoal e bem redondo em cima deles, e esse futuro era ele, ele tal qual era agora, cansado e amadurecido. Tinham direitos sobre ele e através de todo aquele tempo decorrido mantinham as suas exigências e ele tinha amiúde remorsos esmagadores porque o seu presente negligente e céptico era o velho futuro dos dias do passado. Era ele que tinham esperado vinte anos, era dele, desse homem cansado, que uma criança dura exigira a realização de suas esperanças; dependia dele que os juramentos infantis permanecessem infantis para sempre, ou se tornassem os primeiros sinais de um destino. O seu passado sofria sem cessar os retoques do presente; cada dia vivido destruía um

pouco mais os velhos sonhos de grandeza, e cada novo dia tinha novo futuro; de espera em espera, de futuro em futuro, a vida de Mathieu deslizava docemente... em direcção a quê? Em direcção a nada."

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Apetrechos que nos permitem poupar tempo e atrofiar a atenção

Logo que saí da cidade de meus pais para estudar, eles compraram os móveis para minha nova casa, e dentre eles estava uma máquina de lavar roupas - meus amigos geralmente tinham tanquinhos, ou levavam no fim de semana para a mãe lavar (impossível para mim e as vinte horas que me afastavam da minha cidade natal). Como a máquina faz tudo, é pôr sabão e amaciante nos devidos compartimentos, ligar e ir fazer outra coisa: nunca tive necessidade de esfregar uma roupa, para decepção da minha mãe, que se queixa do que ela chama de "encardido" nas minhas camisetas brancas - que eu prefiro chamar de "cor adquirida naturalmente com o tempo e com o uso e que não a desabona". Por muito tempo acho que esse foi o único facilitador das atividades corriqueiras que tive.

Já morando na capital, comprei uma máquina de fazer pão (em Campinas eu preparava na mão): era pôr os ingredientes, decidir a hora pra ficar pronto (geralmente pela manhã, logo quando eu acordo) e não me preocupar mais. Tempos depois, influenciado por uma ex-companheira, adquiri uma panela de arroz: ainda que seja algo fácil de fazer, a referida panela evita que o arroz queime (e também que fique bom como quando preparado com temperos e tudo o mais no fogo). Outra aquisição foi uma chaleira elétrica: ao invés de ter que ficar cuidando para ver a hora certa de desligar o fogão para a água do chimarrão, correndo o risco de ora desligar muito fria, ora muito quente, é marcar os 80ºC e atender os insistentes pedidos de carinho que Guile, meu gato, sempre faz quando me ponho diante da pia da cozinha ou do fogão. Faz um tempo também que me muni de um robô de limpeza, um modelo recomendado, ainda que antigo, por não ser controlado por aplicativo, e que parece ter um sensor que identifica onde há focos de maior sujeira e se desvia deles.

Ou seja, enquanto escrevo esta crônica, é possível que "eu esteja" também lavando a roupa, limpando a casa, preparando pão, arroz e esquentando a água do chimarrão (além de ouvindo música, claro). 

Mais provável, contudo, que esse tempo que ganho com as quinquilharias que tenho em minha casa sirvam para eu perder uma hora a mais na internet com desnecessariedades supérfluas e redes sociais. Guy Debord, na tese 153 de seu livro de 1967, comentava que os avanços no ganho de tempo das atividades e deslocamentos ordinários das pessoas era revertido em tempo defronte a televisão: no século XXI, o avanço tecnológico nos permitiu ganhar ainda mais tempo e nos oferece como contrapartida um verdadeiro ralo de tempo, um meio de perder ainda mais tempo de modo demi-produtivo - produtivo para o sistema capitalista, não para nós.

Contudo, há algo mais que esses facilitadores da nossa rotina alteram, que é a nossa percepção e a própria relação com tudo o que nos rodeia: o pão que fica pronto na hora definida é diferente daquele que você decidiu pôr mais ou menos farinha na hora da sova, e que a depender da fome, preferiu não deixar crescer tanto; o robô que faz a faxina mudou drasticamente minha relação com minha própria casa: que sempre limpei por conta, e desde uma residência artística em dança com Edu Fukushima e Bia Sano, em 2016, passei a passar pano na mão e não mais com rodo (https://bit.ly/cG170107), era uma forma de me irmanar de meandros invisíveis dos entre-móveis - experiência hoje cada vez mais rara. 

Notei isso recentemente, quando comprei uma máquina de café expresso - com pandemia, não vinha mais tomando café fora de casa, e sentia falta do expresso. Como acho máquinas de cápsulas uma produção cretina de lixo - e ainda por cima cada café fica caro como beber fora -, optei por uma máquina "comum", dessas que se põe o café no cachimbo, aciona o botão e desliga quando julga que há líquido suficiente. Cada vez mais desacostumado a ter atenção a esse tipo de tarefa, num de seus primeiros uso, liguei a máquina e fui fazer outra coisa, resultando em café transbordando da xícara. 

Então é isso? Não posso ter trinta segundos de atenção ao que está sendo preparado por mim e para mim, porque preciso otimizar meu tempo e curtir mais seis ou sete fotos que aparecerem no Instagram? E questiono: se não conseguimos mais ter atenção e dedicação em tarefas simples e rápidas do dia a dia que nos afetam direta e imediatamente, na hora que precisamos estar presentes e concentrados em tarefas mais complexas, teremos mesmo capacidade para tanto? Ou vamos picotar nossa atenção a cada apito do celular, para ver qual é a notificação e para não nos entendiarmos em fazermos a mesma coisa por uma hora (ou dez minutos) sem interrupção?


30 de agosto de 2021.

 

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Periferias e carências

São Miguel Paulista, periferia de São Paulo. Para além de todo um quê muito específico de periferia, o vento frio que corta o céu azul de inverno me traz à memória a periferia que eu muito frequentei quando criança: a casa de meus avós, em Ponta Grossa. Passando em revista essas lembranças, noto que há toque da ingenuidade que não me permite enxergar como o bairro de fato era: não consigo ver ali uma periferia pobre, apesar de saber que era e ainda é. Talvez as boas recordações dos meus avós, talvez pelas casas terem quintais, não serem uma colada na outra, talvez efeito da comparação com a periferia ainda mais pobre que às vezes passava de carro com meus pais, em Pato Branco - o "bairro" do Rasga Diabo, uma pirambeira com casas de madeira sem pintar, algumas de lona, onde moravam pessoas de carne e osso (muitos anos depois me veio o estranhamento desses passeios e questionei à minha mãe o porquê deles: me disse que era para eu e meu irmão termos alguma noção do mundo, que não se resumia à nossa agradável vida de classe média moradora do centro). Em São Miguel, como costumo ver não só nas periferias de cidades grandes e médias de São Paulo, as casas são grudadas uma nas outras, em terrenos estreitos e sem recuo; algumas só possuem o reboco, outras nem isso; algumas pintura recente, outras pinturas descascando. No meu trabalho, faço o que me cabe, pergunto questões práticas, faço algumas orientações. O novo normal já está instituído: como eu temia, é o mesmo do velho normal, só que com máscara no rosto e nas prateleiras produtos mais caros - mais pobreza, mais escassez, mais carências. Eu observo o material no chão, os restos de uma sociedade que há muito se especializou em produzir lixo - em vários sentidos. Aqui, falo no literal. Sempre me questiono se numa dessas visitas não vou me deparar com minhas próprias sobras, ali prontas para serem manipuladas por pessoas invisíveis para a maioria da sociedade. Terminada minha obrigação, tento, como de costume, puxar algum assunto. Pergunto se alguém tem outro trabalho. Todos sinalizam, com grande desconfiança, que não - o que o "fiscal" está querendo com uma pergunta dessas? Comento então: "quer dizer que é sair daqui, ir pra casa, ligar a tevê e descansar?". O olhar de alguns - das mulheres, em especial - sinalizam um sorriso amarelo por trás das máscaras, como a questionar "o que esse branquelo que deve ganhar o todinho na cama de manhã entende da vida?", eu prossigo: "invejo vocês, porque eu moro sozinho, e depois do trabalho preciso limpar a casa, pôr roupa pra lavar, preparar o almoço do dia seguinte...". O suspiro é uníssono: "Ah, sim, isso eu também tenho que fazer". Reitero que perguntei se tinham outro trabalho e não outra fonte de renda. Um homem se empolga em contar da rotina, sair das oito horas de labuta pesada para lavar louça, dar um jeito na casa, preparar janta e almoço, usar o fim de semana para a faxina pesada e lavar a roupa. Alguém tira sarro: "cadê a mulher? Virou gay que tem que fazer isso?". O homem desconversa, eu sem conseguir esboçar uma boa reação (reconheço que não tenho raciocínio rápido, e nessas situações isso faz muita diferença), o máximo que consigo falar é "está certo ele, mulherada de hoje quer homem parceiro, não um cara folgado". As mulheres, como é comum nessa cooperativa, ficam em silêncio. Uma se arrisca a falar - baixinho - que usa o sábado para afazeres, e que à noite ou no domingo se reúne com a família, para se divertir - e ressalta, como se cometesse pecado: "mas é só de vez em quando". Um outro rapaz também vem me contar da sua rotina, que ele não precisa trabalhar em casa: sua mãe e seu irmão dão conta, e ele então usa as noites para ir ao culto e os fins de semana para curso de informática. Noto a empolgação em contar para alguém "importante" sua rotina, mesmo eu repetindo em quase todas as visitas que sou um "zé ruela" sem poder nenhum - o que também é mentira da minha parte: sou branco, classe média, falo difícil, representante oficial do Estado; a polícia nunca me parou na rua para averiguação. No caminho da volta, lembro que ir para meus avós era uma das raras ocasiões em que eu pegava táxi - o ônibus vindo de Pato Branco chegava às três da manhã, não era o caso de esperar até às seis para pegar o ônibus urbano e encarar mais uma hora de viagem. Junto com a nostalgia de meus avós, me bate também uma melancolia. Penso no Haiti, penso em carências. O valor do material reciclado, por mais que tenha tido uma baixa, ainda está bom, e permite a essas pessoas ganharem mais do que em muitos empregos "visíveis"; ainda assim, no silêncio da maioria daquelas mulheres, no falar baixo das poucas que se arriscam a dizer algo, no contar da rotina de homens que em outra ocasião já me justificaram que seu emprego é um "emprego normal", como a se defender de antemão de qualquer juízo de valor que eu pudesse fazer, são gritantes as carências ali presentes: de serem vistos, de serem ouvidos, de serem reconhecidos não só como cidadãos, também como pessoas.

21 de julho de 2021


quarta-feira, 14 de abril de 2021

O tudo bem que nos sufoca


"Oi, tudo bem?" é uma forma quase canônica de cumprimento no Brasil. Usamos (os bem educados) para cumprimentar do atendente da padaria ao bom amigo que há tempos não víamos. Questão feita, resposta dada com o mesmo automatismo: "tudo, e você?".

Há anos esse "tudo bem?" me incomoda - desde que acompanhei um amigo com crise renal ao pronto socorro, às oito horas da manhã de um domingo, e o vi cumprimentando (e sendo cumprimentado) por uma conhecida (também com cara de dor) com o "oi, tudo bem?". Se por um lado é uma demonstração de educação - o que não é pouco para estes tempos de esgarçamento da sociabilidade, consequências da reação à tímida democratização da democracia e dos direitos humanos, com a ascensão da extrema-direita neofascista e das ditas guerras híbridas -, por outro revela muito da nossa cordialidade de cala-a-boca, das interdições sociais sutilmente (im)postas.

É curioso notar que nas línguas europeias ocidentais-coloniais, o tudo bem é marcadamente do português. O "qué tal?" espanhol, o "how are you?" inglês, o "comment ça va?" francês, o "wie gehts?" alemão, se traduzidos mais fiéis à letra, significam "como está". Se cumprem, numa primeira camada, a mesma função do "tudo bem", num segundo momento oferecem abertura à resposta do interlocutor.

O tudo bem, se se analisar mais detalhadamente, direciona a resposta. Não é uma pergunta aberta, que convida a uma resposta pessoal, não se pergunta como a pessoa está: ela é um protocolo, sinaliza qual deve a resposta do interlocutor, se não quiser ser inconveniente. É uma mostra de educação e descaso ao mesmo tempo: pergunto como você está, mas se estiver mal, por favor, não me diga: quero saber que está tudo bem.

É parte da construção do mito do brasileiro como um povo alegre: provavelmente nos dizemos alegres porque não nos é dada a oportunidade de admitir nossa tristeza, ou mesmo nuançar nossas emoções (perguntei a amigos residentes em Portugal, dizem que lá se usa também o “tudo bem”, mas não com a mesma hegemonia que aqui). Estamos sempre tudo bem. Mesmo em meio a pandemia, seguimos com essa pergunta completamente sem sentido diante de quatro mil vidas perdidas por dia - apenas para o COVID -, desemprego, fome e uma série de inseguranças quanto ao futuro. E noto que as pessoas seguem respondendo com o automático "tudo", a ponto de causar estranhamento minha resposta habitual: "felizmente estou bem no que posso estar, mas, não, não está tudo bem". Não por acaso, o Brasil é o segundo país com maior número de depressivos nas Américas - fica atrás apenas da terra do mito do sucesso individual, os EUA. 

Christian Dunker, em entrevista à BBC [http://bit.ly/dunkerbbc1], por conta de seu novo livro, Uma biografia da depressão, comenta que a "depressão e ansiedade acabam sendo duas formas de sofrer que vão compactando a narrativa, a tal ponto que o sujeito acaba se resumindo a 'eu sou um depressivo'. Faz parte da depressão esse déficit narrativo, essa demissão de contar sua própria história, sua vida, e dividi-la com o outro". Indo ao seu encontro, podemos dizer que o "tudo bem" é um desses compactadores da narrativa nas relações interpessoais - dos mais arraigados. Tudo bem? Tudo. Estamos sempre bem, tudo está sempre bem. Até que a tristeza negada de ser compartilhada, numa tentativa de alívio, transborda e nos toma. Ao depressivo brasileiro, a culpa por não estar na grande comunhão nacional da alegria, ou a culpa por mentir: tudo.


14 de abril de 2021


sábado, 13 de março de 2021

Sábado de exílio

“O Brasil caminha para um colapso”, avisavam os especialistas semanas atrás. Seguimos a marcha como se fosse inexorável, não sei se por cega inércia ou se por néscia convicção de que era alarmismo paranóico, e o colapso veio - agora é ser testemunha ocular da tragédia, torcendo para não ser mais que isso. Repetiremos o Equador, com mortos jogados nas ruas, ou conseguiremos uma saída italiana, com caminhões frigoríficos a retirar dos hospitais corpos humanos como se saíssem do abatedouro? Um amigo que reside no Canadá me manda uma foto de três anos atrás e pergunta se está tudo bem. Pergunta errada, ainda mais depois de ver a foto de um outro tempo, quando a necropolítica não tomara a sociedade brasileira como um todo. Vou bem no que posso estar, respondo, sem saber até onde pode-se estar bem com o que vivemos e o que nos espera para os próximos dias (quarta feira percorrerei a periferia sul de São Paulo, a trabalho, isso me deixa mais apreensivo). Meu irmão me envia uma foto do que encontraram no porão da casa da minha mãe: um gambá a assaltar a ração dos gatos. Lembro de gambá aparecer no quintal de casa faz mais de vinte anos: não tinha uma perna. O prendemos numa caixa de sapatos e o levamos, eu e meu pai, para próximo da zona rural e longe da Tandi, nossa cachorra, que por sorte não conseguiu pegá-lo antes de nós. Faz mais de um ano que não encontro pessoalmente com minha mãe, uma angústia me bate. Quando será a vez dela ser vacinada? Ainda valerá para algo a vacina? Pela segunda vez na vida me arrependo não saber dirigir: nesse um ano poderia ter alugado um carro e ido visitá-la, como meu irmão tem feito (meu outro arrependimento por não ter carteira era quando pegava carona na faculdade com colegas bêbados, sendo eu o único sóbrio). Dormi com pouca coberta, acordei com dor de garganta; faço as contas: não, saí há menos de quatro dias, logo não tem como ser manifestação de sintoma de covid. A vida na sua permanência tênue, a saudade batendo forte, a distância. É sábado à noite, eu estou em casa, na rede, jogando bingo no celular (quando deveria estar assistindo às aulas da faculdade). No som, não sei porquê, coloquei músicas que escutava quando adolescente (e ainda ouço): Metallica, Oasis, Pato Fu, Sheryl Crow, Gonzagão, Toquinho e Vinícius. Vinte e cinco anos atrás, eu estaria em casa, no computador, entrando em sala de bate papo do mIrc. Hay dias que no sé lo que me pasa, eu abro meu Neruda e apago o sol. Quinze anos atrás, estaria em casa, lendo qualquer coisa, talvez escrevendo, talvez jogando algo - ouvindo Radiohead, Mogwai, Mombojó ou Goldfrapp. Come on rain down on me, from a great heigh. O que me pega não é estar em casa num sábado à noite, é a condição que me faz estar aqui. Covid lá fora, aqui dentro ainda a remoer o fim de relacionamento: a sala vazia de móveis, apta para dançar, me lembra que falta meu par dos embalos das madrugadas de 2020. Amigos me perguntaram do meu sumiço, expliquei: é meu processo de lidar com tudo isto. E tenho dificuldade, não com o fim do relacionamento, que isso a experiência nos ensina a não superdimensionar, a dificuldade é a saudade, a distância forçada dos amigos, da minha casa de Pato, o não poder flanar despreocupadamente pela cidade para desanuviar pensamentos e sentimentos - quem sabe encontrar al diablo mal parado en la esquina de mi barrio, ahí donde dobla el viento y se cruzan los atajos. Dez anos atrás eu estaria no “QGinho” da Misson, ouvindo Kiss FM, em companhia do Marcos e do Djalma - em conversas sobre crises existenciais e piadas ruins, ela insistindo que eu lembro o Sheldon Cooper enquanto toca Teatro dos Vampiros: então os meus amigos estavam procurando emprego, enquanto nestes dias tão estranhos fica poeira se escondendo pelos cantos, as perdas se acumulando na memória (eu ainda custo a acreditar que César se foi). O rádio segue tocando as músicas de antigamente: canções do exílio - eu que por quatro anos recitei Gonçalves Dias para ganhar nota em português, com a irmã Maria José (e não entendia esse José se ela era mulher). Na playlist faltaram La Renga, Molotov e os rocks en castellano para completar minha trilha sonora adolescente. Faltaram os rocks bielorrussos em som alto que meu pai ouvia. Algumas vezes nesse último ano mandei mensagens acusando saudade a vários amigos. Responderam que também sentem. E a conversa encerra sem avançar muito, nessa saudade abafada que não consegue pôr em dias as não novidades dos dias sempre iguais nem trocar obviedades sobre o horror homeopático que nos corrói feito lepra confundida com uma psoríase. Mesmo a amiga que vinha encontrando com alguma frequência - cada duas semanas -, também ela está em seus momentos de se fechar, e há dois meses não fomos além de algumas poucas linhas. Não é falta do que dizer: talvez seja o cansaço, o fracasso, mesmo quando temos novidades. As notícias da minha mãe sobre o gambá e os gatos da sua casa fazem eu me sentir no exílio, um anti London London. Guile e Lilbertad permitem não me sentir tão sozinho. Lá fora faz uma noite bonita, famílias choram em velórios rápidos, pessoas tomadas pela loucura coletiva recusam toda dor que não seja a das suas alucinações como mimimi, o presidente debocha - não é coveiro. Noto que envelheci rapidamente estes últimos dias, tenho medo, sinto saudades, e tudo o que me resta é a sensação de impotência.

14 de março de 2021


segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Sobre partidas em tempos necrófilos

Para César Bento.
"A morte é um risco para quem está vivo". Por anos essa foi uma frase repetida em minha família. Por seis anos, para ser mais preciso: de setembro de 2009 a novembro de 2015, tempo em que meu pai (e, por tabela, eu, e minha mãe e meu irmão) conviveu com um câncer (e erros médicos). Era uma forma de desanuviar o ambiente sem negar a realidade. Foram seis anos com a morte fazendo voos rasantes, em que por mais que meu pai tivesse incluído a doença na sua vida e seguido a viver normalmente (a quimioterapia passou a ser parte da rotina), eu ia dormir e acordava sempre com o receio de uma notícia fatídica, que se não fosse o fim repentino, fosse seu prenúncio para breve, sem chances de reverter. O estresse em viver sob esse medo permanente é grande e desgastante.

Logo vai fazer um ano que vivemos coletivamente sob esse mesmo voo rasante da morte, potencializado pela nossa sociedade (e sociabilidade) necrosada e nossos necropolíticos, necroempresários, necromídia, necrojuízes. Bolsonaro repete a frase inicial deste texto com sentido oposto, de negar a realidade e fugir de suas responsabilidades. Os que têm os pés no chão vivemos em um medo permanente: vai de amigos, conhecidos e desconhecidos, até minha mãe, pertencente ao grupo de risco, passando por mim próprio, que sigo vivo e tendo que sair de casa todo dia para trabalhar (hoje soube de outra colega infectada, fica o medo e o desejo de uma recuperação plena). 2020 foi o primeiro ano em 21, ou seja, desde que saí da casa dos meus pais, em que não tive notícia de nenhum suicídio de alguém próximo ou companheiro/amigo de alguém próximo - não sei se isso tem algum lado positivo: foram tantas mortes que pode ser que uma delas tenha sido um suicídio disfarçado.

Curiosamente, para o covid não perdi ninguém próximo. Mas todo esse clima parece fazer as mortes mais pesadas, mais supérfluas - no sentido de que não precisavam acontecer agora. E a impossibilidade de velar torna tudo mais irreal e mais dolorido, difícil de acreditar. Em setembro, faleceu minha avó - de idosa, mesmo. Senti que ali se rompia o último elo com minha família, meus antepassados - faço questão de não ter contato com meus familiares, salvo duas exceções -, e lamentei que fazia quase dois anos que não a via - nem nunca mais a verei.

Hoje acordei com a notícia da perda do César, um grande amigo, que desde maio estava às voltas com uma meningite bacteriana. Há quatro dias fiz os votos habituais de feliz aniversário, enfatizando que tivesse antes de tudo saúde. Ainda que soubesse que estava enfermo, nunca quis acreditar que fosse algo tão grave - e ele também foi sempre discreto quanto aos detalhes do seu estado de saúde -, daí sua partida precoce ter me pego de surpresa - e qual partida não é precoce para quem fica? 

César sempre com mil histórias e uma ótima verve para contá-las (desde sempre eu insistia que ele devia escrever essas histórias e lançar um livro, já tinha até pré negociado uma editora), que iam de encontros chatos com gente famosa a rolês exóticos com pessoas que seriam famosas no futuro, causos da cena underground paulistana dos anos 1990, com pequenas infrações legais e muitas loucuras; um cara quadrado de segunda a sexta que desbundava com louvor nos finais de semana; um dos amigos que eu sempre ia pedir opinião sobre arquitetura e decoração e referências sobre São Paulo (ficou me devendo de mostrar uma pretensa plataforma abandonada na 23 de maio); que ganhou o apelido de "Bicha má da pirogada" porque nos encontros em minha casa sempre trazia uma caixa de chocolate com açúcar (sendo que eu não posso comer açúcar) e sabia polemizar como poucos (ousasse alguém criticar o excesso vegano e ele contava como ele fazia para matar um coelho, justificando que a carne ficava melhor assim que quando comprada já do bicho morto, inclusive contando do drama do Guilherme, seu companheiro de anos, quando via ele chegando com os animais); era também um talentoso cenógrafo e iluminador cênico - eu não só gostava muito dele, como o admirava. Como minha avó, fazia quase dois anos que não o via - a última vez ele fora comigo para ver um apartamento, ficou devendo conhecer minha nova casa, e dói saber que não conhecerá. Há todo um sem sentido que essa perda fez brotar em mim nesta segunda-feira.

Em setembro de 2015, pouco antes de meu pai ser internado para a cirurgia que abreviaria sua vida, tivemos que cortar o pinheiro de estimação da casa (no Google Street View ele ainda está lá, como que a negar o que veio depois). Após cortá-lo, enquanto fazia o luto (e sem imaginar o que nos esperava), minha mãe soltou a frase que me parece definidora do nosso estar no mundo, ainda mais em momentos como esse: "viver é ir morrendo aos poucos".

 25 de janeiro de 2021

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Banalizar o anormal

No metrô, o desempregado convertido em empreendedor - colega de classe de Amoêdo, Huck, véio sonegador da Havan e tantos outros - anuncia máscaras de “neopraime” - uma por três, duas por cinco, seca em meia hora, aceita crédito e débito - enquanto se certifica de que não há segurança na plataforma da estação. No vagão, todos com máscara, alguns usam modelos lisos, outros tentam fazer arte com a tragédia, outros mostram qualquer insígnia que julgam relevante: a empresa que paga seu salário, o time de futebol, a fé que finge acreditar - mas que precisa gritar com tamanha ostentação porque sabe que é só um engodo e no fundo se está sozinho. Então é natal, e o que você fez? Quantos conhecidos você não vai mais poder encontrar, de quantas pessoas próximas você não pode se despedir? Então é natal e o ano termina... vai começar outra vez? 

A vida volta ao normal. A curva da morte, que vinha anormal, se anormaliza um pouco mais - normal. A morte é banal, as gripes são banais, as pestes são banais. Banal se tornou o desdém pela vida: isso não é resposta inconsciente ao medo da morte, é a dessacralização do fim que a todos espera - quem teme a morte e pensa na vida (para além da sobrevivência econômica) não é produtivo, não gera lucro: a pandemia provou isso, a gripezinha provou isso. Se a morte é banal, a vida não deveria sê-lo. Mas nestes tempos anormais, somos forçados a normalizar - mais do que antes - tanta coisa que não deveríamos. Pois é anormal (é inédito) a contabilidade em tempo real do número de infectados e de números de mortos em todo o mundo. É anormal ver gráficos de cadáveres, curvas que sobem, barras que formam uma escada para o sem sentido, para o absurdo - tudo isso em horário nobre, junto com os resultados do futebol. Sim, admito, é um avanço termos noção do risco invisível mas palpável que nos cerca como num ataque medieval de bárbaros infiéis (por mais que comam com talheres, leiam Aristóteles e tenham fé) contra uma cidadela de pretensos civilizados - mas é também a banalização do ser humano, transformado em estatística, curvas, barras, números. 

Na rua passo por pessoas sem máscara. Há as que se negam a usá-la por recusarem a ciência assim como recusam a realidade: não raro são pessoas de fé e certezas cegas - por isso a ciência não os agrada, ela é feita de verdades transitórias, devires ébrios e tentativas arriscadas. E há as que não a utilizam porque confiam na ciência e acreditam em deus: não, elas não são mais fortes que ninguém: tomar banho no esgoto, dormir com os ratos e comer restos de lixo não as tornaram imunes aos vírus; não, deus não as protege com especial atenção: deus as utiliza para brincar de todo poderoso e exercitar seu lado sádico; a recusa dessas pessoas em usar máscara é atender a esse desejo de um deus que faz pouco caso das pessoas marginalizadas pelos pretensos eleitos - e pelos eleitores.

Uma pessoa sem máscara, encostada num muro da marginal Tietê (esse fluxo que um dia foi um rio, tinha peixes e vida), uma garrafa de corote ao lado, me pede ajuda porque tem fome. Há todo um absurdo nessa cena, banalizada, normalizada (normatizada?), que nos rouba pouco a pouco a nossa humanidade e nos faz ver pessoas como números numa curva macabra - não, não falo dos mortos por Covid, falo do balanço das empresas e do quanto uma pessoa pode produzir e render em um trabalho que lhe suga a vida em troca da sobrevivência. Hoje, no Brasil, foram mais de 680 mortos e tantos milhões de não-vivos, amanhã, no primeiro grupo, pode ser alguém com nome, pode ser você, pode ser eu. 


27 de novembro de 2020

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Existe estupro culposo, sim!

 Nas redes sociais, a pretensa ágora destes tempos pós-modernos (tão pré-apocalípticos), ganha destaque neste dia 3 de novembro, a expressão "não existe estupro culposo", por conta das imagens divulgadas hoje, pelo InterceptBr [https://bit.ly/3jSbsKZ], do julgamento em que o juiz Rudson Marcos acata a tese do promotor Thiago Carriço de Oliveira e absolve o empresário André de Camargo Aranha da acusação estupro da modelo Mariana Ferrer: ainda que haja a fala da vítima, vídeos, esperma e sêmem, o juiz entendeu que não houve intenção de estuprar - que fez com que o InterceptBr criasse o termo "estupro culposo" para mais esse caso de estupro sem a intenção de estuprar.

Mesmo não sendo advogado com programa na tevê para dizer qual a sacrossanta verdade do direito*, ouso discordar das milhões de pessoas indignadas que estão a repetir "não existe estupro culposo" e afirmo que existe estupro culposo, sim! Talvez não exista no ordenamento jurídico brasileiro, mas isso é uma questão de detalhe: Rudson Marcos tão somente realizou o direito defendido pelo ministro do STF Luis Roberto Barroso, e julgou de acordo com "a voz das ruas", que eles ouvem de suas janelas (que, creio, não dão para Rocinha, Sol Nascente, Heliópolis, Complexo Curado, nem mesmo para Guadalupe ou Guaianazes) [https://bit.ly/3jUe2jC]. Aranha é branco, rico, influente, alguém assim não comete estupro: se o sexo não foi consentido, pode ter sido por desatenção, por nunca ter tido antes (nem depois) essa experiência de alguma mulher não querer transar com ele. Compreensível. Mariana quem estava errada, por não ceder aos encantos do empresário, isso depois de colocar fotos suas - que não em traje de freira - nas redes sociais. Mais errada ainda por não aceitar satisfazer aos desejos de um macho poderoso: pecadora.

Dizer "não existe estupro culposo" é como dizer "não existe pena de morte no Brasil", enquanto só a PM de São Paulo já matou 442 pessoas em 2020, um ano de baixa criminalidade, por conta da pandemia de coronavírus; é como dizer "todos são iguais perante a lei" num país em que os jornais apresentam como "traficante" um jovem negro preso com três trouxinhas de maconha e como "estudante" jovem branco preso "comercializando" drogas, em que roubar um pacote de bolacha ou ter um baseado no bolso dá prisão e ser pego com um helicóptero com cocaína não acontece nada; é dizer "não existe preconceito no Brasil" e aceitar como consequência meritocrática as diferenças nas oportunidades de emprego ou as discrepâncias salariais entre homens e mulheres, entre brancos e negros. 

Precisamos encarar o mundo como ele, não como gostaríamos que fosse, não para nos conformar com isso, mas parar podermos transformá-lo de fato. Ainda que com outro nome, essa modalidade de estupro é uma constante na sociedade brasileira, machista, violenta, misógina: sacanagem, escorregão, mancada, até mesmo esperteza, fodão, comedor.

O estupro culposo é aquele em que a mulher pediu pra ser estuprada por estar usando roupas curtas demais, ou ousadas demais, ou qualquer outra desculpa usada para justificar a perda de controle do macho sobre seu próprio corpo, impelido a atacá-la contra sua vontade; é aquele em que a mulher "merece" ser estuprada - sei lá por qual motivo poderia haver tal merecimento, se por castigo social ou só por ser bonita, mesmo -; é aquele da mulher que pode ser forçada a transar porque é puta, ou forçada porque é mulher trans; é aquele que ocorre porque a mulher está bêbada, ou drogada, ou porque não se dá valor; aquele da empregada doméstica que cala (se cala, consente, dizem) para não perder o emprego, enquanto satisfaz as taras do patrão e seu filho - não nos esqueçamos que há também os homens que sofrem estupro, e deixemos para outro momento falar das crianças que são abusadas, ainda que para certos religiosos esses seriam outros casos de "estupro culposo". 

Sabemos de várias variações, eu tenho dois casos que desde muito me indignam. O primeiro é de uma conversa que ouvi há uns dez, quinze anos, no Bandejão da Unicamp: um grupo de amigos achava que um deles tinha feito "sacanagem" ao embebedar uma colega para "convencê-la" a fazer sexo anal, e ainda completavam: "com puta tudo bem fazer isso". Eu não sei por onde começo a me indignar, se por acharem estupro mera sacanagem ou por julgarem que profissional do sexo nem é gente. Enfim. O outro caso é de um casal de conhecidos - ela feminista radical que não aceita críticas, ele, "feministo" também radical - e seu grupo de engajados na luta, que acharam que dava para desculpar um amigo em comum - branco, morador de bairro nobre, formado na USP e na PUC, então cursando mestrado -, que não resistindo aos encantos de outra pessoa do grupo, numa viagem ao exterior, a embebedara até que ela dormisse - acordou com suas calças sendo arriadas. O casal feminista achou que era demais chamá-lo de estuprador, afinal, ele estava bêbado e não quis fazer o que tentou fazer; e só tentou, não fez realmente, e sendo da luta, tendo um futuro promissor, não tinha porque comprometê-lo. No fim, todo mundo continuou amigo, só a vítima e sua companheira ficaram de frescura e se afastaram (eu já havia me afastado deles há tempos).

Vivemos numa sociedade que normaliza as diversas formas de violência - dentre elas contra a mulher -, que julga o caso conforme o grau de importância ou de amizade, que relativiza o estupro, que aceita como liberdade de opinião - ou como brincadeira de mau gosto - o que é crime de incitação à violência; a figura do "estupro culposo" poderia ter sido criado Carriço de Oliveira e Rudson Marcos: daria um verniz jurídico ainda carente a essa violência que de tão quotidiana boa parte dos brasileiros considera banal. De qualquer modo, mesmo sem nomeá-lo, o fato de o juiz permitir que o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho conduza sua fala abjeta, execrável sem ser impoturnado, apenas com admoestações tardias e débeis, praticamente pro forma, deixa à mostra que a função do judiciário brasileiro é ser um legitimador de toda forma de violência que seja aplicada de cima para baixo - toda forma de violência do opressor contra o oprimido, para usar o jargão de Paulo Freire. O que se vê no vídeo da audiência é uma cena grotesca e indigna de um julgamento de um crime hediondo, onde Mariana Ferrer é "estuprada psicologica e dolosamente" pelo advogado, com anuência do juiz e do membro do Ministério Público. Caberia muito bem em um remake de "Häxan - A Feitiçaria Através dos Tempos", filme de 1922, de Benjamin Christensen, a mostrar como se dava a caça às bruxas na idade média europeia.

Um homem (branco, cristão, rico, de bem e de bens) atacando, acusando e humilhando uma mulher violentada no passado, acuada no presente, sob o olhar complacente de outros dois homens (brancos, de bem e de bens), com o objetivo de defender um homem (branco, rico, influente, de bem e de bens), sai vitorioso num julgamento graças ao "sentir" do juiz. É por isso que digo que estupro culposo existe, e nossa luta é para que ele seja exposto como mais uma modalidade estupro - talvez a mais comum -, e que o estupro seja combatido sem nenhum nuançar - se a vítima estava nua ou de burca, se era virgem ou era puta, se era feia ou era bonita, se estava bêbada ou estava sóbria, se queria e na hora h desistiu, se era desconhecida ou era da família. Evidenciar essas violências escondidas, escandidas, silentes, presentes, marcantes no dia a dia de tantas pessoas; permitir que entre um pouco de luz nesses cantos a meia luz da nossa "cordialidade" brasileira, na verdade complacência - muitas vezes por covardia - com a dominação de alguns, dos de sempre.

04 de novembro de 2020

* Por não ser operador do direito, não perguntei "E o PeTê?", nem coloquei o Lula no meio, mas fiquei na dúvida de qual a imparcialidade de alguém cujo companheiro se apresentou numa das edições do evento em que houve o estupro, teria conseguido manter a tecnicidade na sua hermenêutica do direito?


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Bloco sanitário para caixa acoplada

Pouco depois de me mudar para São Paulo, dividi apartamento com um arquiteto recém chegado da Europa, contratado para trabalhar num dos escritórios de grife da arquitetura nacional. 
Um dos pontos interessantes da convivência com ele foi saber (ou melhor confirmar) alguns comportamentos das nossas elites econômicas, em especial as diferenças entre um novo rico - que vai para Nova Iorque, perdão, New York, escolher as banquetas para sua casa, a três mil dólares cada - e um rico tradicional - que acha extorsivo o valor do projeto do puxadinho para sua mansão nos Jardins, ainda que seja um valor irrisório para quem está na lista da Forbes como dos mais ricos do mundo, com alguns bilhões de dólares.
Outro ponto interessante foi ver que estar um (bom) tanto desconectado das coisas práticas da vida não é privilégio de filósofos, sociólogos, economistas e escritores (ainda que estes possam fazer bom uso desse alheamento). Pouco depois que ele mudou, perguntei se ele teria alguma sugestão de ocupar melhor o espaço do apartamento com os móveis que eu tinha. Na noite do mesmo dia me veio com a sugestão de quebrar a parede da sala, fazendo uma cozinha gurmê no meio, com um grande… interrompi suas ideias não tanto pelo clichê, antes porque o que eu queria era mudar móveis de lugar e não fazer uma reforma estrutural num apartamento alugado. Certa feita, veio intrigado contar da conversa no elevador que tivera com os vizinhos de cima, que questionaram se estava tudo certo em nosso banheiro. Disse que respondeu afirmativamente e vinha então me perguntar se tinha acontecido algo. Sim, tinha: do spot de luz gotejava há quatro dias um líquido viscoso preto e todo o teto estava pipocado de água infiltrada, por conta de um cano que estourara no apartamento de cima; mas ele não havia notado nada - e era o único banheiro da casa. Fosse ele o filósofo, eu até, quem sabe, poderia dar um desconto, mas ele era arquiteto!
O melhor foi uma vez que saído do banheiro veio ter comigo, que estava na sala, lendo. Diante do bloco sanitário em gel que eu havia posto no vaso, me contou que na Europa havia blocos sanitários para caixa acoplada, que se jogava na respectiva caixa e era desnecessário limpar o vaso (os três moradores da casa nos revezávamos na faxina, uma semana um limpava o banheiro, outro o resto da casa e o terceiro folgava), e me sugeriu que adotássemos tal expediente. Nem pontuei o fato de não acreditar que um bloco sanitário fosse capaz de substituir uma faxina feita com uma escova, apenas levantei que tínhamos um problema capital: nosso vaso sanitário não possuía caixa acoplada. Ele ainda ficou um tempo pensativo, levemente perplexo, levemente decepcionado com minha objeção, ao que, enfim, concluiu: "que coisa, então não vai dar para usar". Eu sei que parece piada, mas aconteceu.
Lembrei desse antigo colega de habitação porque na residência em que vivo atualmente o vaso sanitário possui caixa acoplada - e eu compro os tais blocos sanitários específicos, ainda que faça questão de passar a escova uma vez por semana, no mínimo.
Em geral, compro o bloco sanitário para caixa acoplada mais barato, "sabor" lavanda, que tem uma cor que não sei se é azul, roxo, índigo - sim, eu sou daltônico, e isso me traz algumas dificuldades com certos tons de cores (o que não me impediu de tentar ser iluminador cênico, o que permitia que eu me apresentasse como um dos poucos filósofo das luzes devidamente registrado no MEC e no MTE). Esses dias resolvi trocar de cheiro. Me chamou a atenção o silvestre: não pelo cheiro - pois eu estava de máscara e só pude ver sua cor, verde -, mas pela possibilidade de dar um ar mais bucólico ao meu banheiro, que às vezes, quando chego do trabalho, tem um acentuado cheiro de xixi dos meus gatos. Imaginei algo meio fazenda, que rememoraria passeio da infância: o cheiro da relva misturado ao das excretas bovinas - meu gato Guile, com quase dez quilos, já parece mesmo um boi. O cheiro do tal silvestre até era gostoso, mas as memórias antigas não vieram, e achei que deixava a água do vaso com uma cor estranha. Decidi não encafifar com isso, afinal, provavelmente devia ser obra do meu daltonismo.
Foi quando Sabrina veio passar o fim de semana em casa. Ao sair do banheiro, perguntou se havia algum problema com o vaso, pois dava a descarga e o xixi continuava ali - ao menos assim parecia -, algum problema com a água? com a caixa acoplada? Sabrina não é daltônica, de modo que vi que minha impressão era real. Expliquei que não, não havia nenhum problema e a urina que aparentemente se acumulava na retrete era bloco sanitário de "sabor" silvestre - ela acreditou. Espero não ter mentido.

03 de agosto de 2020.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Vagabundos, bandidos, zumbis - o vocabulário conservador entranhado nas hostes progressistas

Desde que tive que começar a trabalhar presencialmente, em fins de abril, faço ao menos um dos trajetos (ida ou volta) até o trabalho à pé, como forma de me exercitar (são 9 km) e acompanhar como vai a cidade. Semana passada, o trajeto pela manhã parecia que saímos não de uma quarentena (que nunca foi efetivamente), mas de um feriado frio e chuvoso, em que o não deu para correr no parque, então o pessoal aproveita para fazer o jogging, o cooper, o footing na ciclovia ou na calçada. No mais, trabalhadores se encaminhando para seu tripalium, os "espaço imantados" dos ambulantes de café da manhã, os nacos de conversas que pego pelo caminho. São Paulo volta ao normal e seu "novo normal" não parece ir além das máscaras - se me é novidade, não é fruto de pandemia, um grupo de três jovens da periferia pelo qual passo, máscaras no queixo, que caminham com uma caixa de som de onde extrapola rap gospel a quem queira e não queira ouvir: a salvação da alma, já que, ao que tudo indica, os pastores já vaticinaram nossa danação na terra (atualmente em coro com cientistas e gente sensata).
Se no início do meu trabalho presencial a única rua em que eu precisava esperar pelo sinal para atravessar era a avenida do Estado, isso às seis da tarde, pouco a pouco meu tempo de espera foi se alongando até que agora é preciso esperar o sinal de pedestre abrir para atravessar, como no velho normal.
Foi esperando num momento desses que pego um fio de conversa entre dois moradores de rua. Questiona um deles: "e por que que dar dinheiro pra vagabundo, se ele não acrescenta nada para a sociedade?". O sinal abre e eu atravesso, sem saber se ele reproduzia aquele pensamento para fazer a crítica a seguir ou, como parecia pelo tom que usava, se reproduzia aquele discurso por ter incorporado como verdade. Quem ele vê como vagabundo? 
Lembro que vagabundo não é quem não trabalha, vagabundo é termo usado para desqualificar o outro, desumanizá-lo. Assim como bandido: um bandido é um homo sacer, alguém que não é mais digno do tratamento dado às pessoas e pode, portanto, ser morto sem as considerações formais, como julgamento ou direito à defesa, e sem remorsos de quem o mata. E isso me faz recordar de Jean Wyllys, e o tamanho do desafio que ainda temos pela frente.
Admiro Jean Wyllys, concordo com muitas de suas posições, discordo de algumas, como acontece com todas as pessoas que conheço e desconheço - comigo próprio, inclusive. Desde muito acho que o twitter não deveria ser material para discussão política: aquilo não é uma arena política, não é a nova ágora pública: é um ringue virtual para rinha de egos e pouca coisa além. Porém, foi alçado a um dos principais meios de comunicação política da atualidade (a estreiteza dos seus 240 caracteres é bem significativo do nível do debate político mundial). Enfim, em 13 de maio, quando o presidente da República finalmente divulgou seu resultado de coronavírus - negativos -, para descrença geral da nação, o político do PSOL escreveu: "Só tenho a relembrar o seguinte: os Bolsonaro me levaram ao Conselho de Ética com um vídeo CRIMINOSAMENTE ADULTERADO (segundo perícia da Polícia Civil do DF). Quem adultera vídeo criminosamente adultera também resultado de exame pra COVID-19. Uma vez bandidos sempre bandidos." (sic)
O texto foi escrito no calor do momento, talvez sem a devida reflexão, e justo por isso ele acaba trazendo cristalino o tamanho do nosso o problema, o quanto a mentalidade conservadora permeia até ativistas os mais progressistas do país. Quando Jean Wyllys generaliza a fala aos Bolsonaro com o "uma vez bandidos sempre bandidos", ele está reproduzindo dois elementos centrais do pensamento mais reacionário e violento do Brasil: primeiro o uso do termo bandido. 
Poderia ter dito criminosos, falsificadores, gângster, mafiosos, ou qualquer outro termo do tipo, bandido há muito não tem mais essa função no léxico comum brasileiro, não serve para apontar alguém que cometeu um crime, mas para marcar alguém que não merece viver em sociedade, ou melhor, não merece viver. Bruno, ex-goleiro do Flamento e assassino de Eliza Samudio, foi cristalino nessa percepção, quando disse: "Cometi um erro grave, mas não sou bandido", tanto que a seguir ele pede uma oportunidade [https://bit.ly/3fzjoPV]. Se bandido fosse sinônimo de alguém que cometeu crime, ele poderia se assumir um bandido e pedir a oportunidade; contudo, por ser bandido ele não tem mais direito algum, conforme nossas leis do senso comum - e ele sabe disso.
O segundo ponto é a inefabilidade: "uma vez, então para sempre". É o argumento de qualquer policialesco, dos defensores da pena de morte, do bandido bom é bandido morto, do excludente de ilicitude. Ainda que direcionado ao presidente e seus familiares, sua frase reforça que bandido é bandido de nascença, por natureza, é irrecuperável e, portanto, não merece outra chance, não merece tentar recomeçar a vida, não merece viver em sociedade, no limite, novamente, não merece viver. É reforçar a marca que um ex-condenado, um ex-presidiário traz no corpo, reiterar o estereótipo, estimular a ideia de que prisão não recupera e nem serve para isso - digo aqui não na prática, não no que seria seu ideal pronunciado -, e que bem faz o Brasil em manter masmorras, pocilgas sem qualquer estrutura para os criminosos.
Passo pela Sé, abarrotada de moradores de rua. É muita gente! Como assinalou uma colega, vez que voltamos juntos do trabalho: muitos dos que estão ali são neófitos (talvez seduzidos pelos atrativos das ruas, como julga a primeira dama do estado?), como dá para perceber pelas roupas, pelas mochilas e pelas barracas, ainda não gastas pelo uso e pelas intempéries. Os pastores voltaram e atraem pequenos grupos de desvalidos abandonados por deus, pelas autoridades públicas e pela solidariedade. Vejo o rapa passar, acompanhando da GCM, recolhendo os pertences de quem nada tem: é feito de tal modo que parece um trabalho burocrático, tão natural quanto o nascer do sol. Afinal, ali os que não são bandidos são vagabundos, e os que não são vagabundos são "zumbis das drogas". E nesse trecho de um quilometro quase completo as categorias dos sub-humanos tupiniquins autorizados a serem mortos - ficou faltando os indígenas, desde 1500 sem direito à humanidade plena (e temos os esquerdistas, que ainda resistem a entrarem no grupo, a despeito do desejo do presidente e de seus seguidores, mesmo os arrependidos, como Sérgio Moro). 
Sigo meu trajeto. Ambulantes vendem máscaras, o hispanohablante vende suas cinco paçoquinhas por um real no lugar de sempre, bares oferecem salgados nas suas portas, funcionários da assistência social, GCM, PM, trânsito, o novo normal é a velha ordem, com a sutil mas capital diferença, sensação do que senti quando visitei a Venezuela, ano passado: nosso tecido social está roto - talvez ainda tenhamos um fiapo para romper de vez, como presenciei lá. Isso parece secundário, ou invisível: agimos como se fôssemos uma nação, como se ainda houvesse solidariedade, como se não estivéssemos todos tomados pelo ódio: de um lado, fascistas que pregam a morte de todo mundo que não pense como o mito; do outro, aqueles que se não desejamos agir com as próprias mãos, por uma questão moral, torcemos para o destino dar cabo o quanto antes dos fascistas, como se fossem todos eles irrecuperáveis (ok, admito que alguns o são mesmo, vide nosso presidente, mas poderia falar de alguns parentes), "uma vez fascista, então sempre fascista" - um acréscimo progressista (?) aos bandidos, vagabundos, zumbis e indígenas.

15 de julho de 2020

terça-feira, 28 de abril de 2020

O pensamento mágico ao qual nos agarramos

Uma das (muitas) coisas que a pandemia de coronavírus escancarou é nossa (extrema) dependência do pensamento mágico. Trata-se de algo desde sempre evidente e utilizado, mas que neste momento ganha contornos grotescos - justo por não estarmos (ainda) no fim da linha, quando vale apelar para (quase) qualquer coisa.
Foto de Adrien Olichon
https://bit.ly/2WjA0Tn
Como seres inseridos na cultura e sujeitos do inconsciente, penso que o que chamo aqui de "pensamento mágico" seja algo normal na nossa forma de se relacionar com o mundo: não damos conta de compreender plenamente o que acontece em nosso entorno, não somos capazes de entender tudo o que se passa em nosso interior, o apelo a causalidades simplistas e "mágicas" é uma forma de podermos lidar com esses desconhecimentos e seguirmos nossa vida quotidiana. A questão maior é até que ponto esse tipo de pensar (e sentir) está arraigado em nós, forçando negar a realidade óbvia - a começar pela nossa própria ignorância (e impotência) - em favor de projeções simplistas, frutos do desejo - individual ou socialmente compartilhado.
Os exemplos nesta pandemia abundam. Logo no início, minha mãe conta que uma mulher na farmácia a interpelou e explicou: bastava não ficar pensando no vírus, que isso resolvia: o problema era que o pensamento atraía o vírus. Minha mãe, ainda que sem formação universitária, é consideravelmente cética e inteligente, respondeu que não sabia do vírus ser capaz de ler pensamentos, e por ora preferia seguir o isolamento social, mesmo. A mulher era a versão quântica da ação do presidente: enquanto no mundo se discutia como minimizar a pandemia e proteger a população, aqui discutíamos se o vírus existia realmente (afinal, ninguém nunca viu o vírus transitando pela cidade), se a pandemia era de verdade; e caso fosse, se era fruto do avanço humano sobre biomas desconhecidos ou uma arma comunista feita em laboratório. Mortos? Todo mundo vai morrer um dia.
Desde o início, pastores mercadores da fé e aproveitadores da ignorância já venderam rezas milagrosas aos borbotões, já exorcizaram o vírus, intimaram-no a sair do país - e isso feito não como um pedido de ajuda a um deus todo poderoso e déspota, mas como ordem a um deus vertido em office boy de treisoitão na cintura. E se não é deus em pessoa, ciências milagrosas que despontam: por quanto tempo, sem qualquer base que não achismos, discutimos a cura instantânea e perfeita com cloroquina, ao invés de insistirmos no isolamento social? Com a ciência não messiânica demonstrando que a cloroquina não é tão milagrosa, busca-se um novo elixir: o vermífugo do astronauta não durou dois dias, agora temos o anticoagulante - os EUA já tiveram água sanitária. E não se trata de dizer que há um remédio com possibilidade de alta eficácia no tratamento contra o vírus, o anúncio é que a descoberta seria da cura pura e simples: um estalar de dedos, dois comprimidos e a vida normal de volta em quarenta e oito horas.
Como disse, esse tipo de pensamento só floresce com mais força agora, mas não é novidade. Lembro do professor de tapeçaria no Senai, que anunciava que sei lá que raiz curava tal doença, que havia um óculos que acabava com a miopia, mas que os médicos e as farmacêuticas ocultavam da população porque com a cura acabaria sua fonte de lucro - médicos, segundo ele, não são confiáveis. Claro, médicos prescrevem, muitas vezes, tratamentos longos, custosos (economicamente e mesmo de tempo e paciência), não raro querem alterar dietas, hábitos de vida do paciente - e comumente cometem erros médicos por displicência. A internet está cheia de diagnósticos irrefutáveis e curas infalíveis: médico para quê? Perda de tempo (e tempo é dinheiro!). Que venha o novo emplastro!
Das religiões, os exemplos são ostensivos, desnecessários de serem elencados. Mesmo em certas camadas da classe média dita progressista e ilustrada abundam crenças pseudoreligiosas (ou seriam pseudocrenças religiosas) de puro pensamento mágico: coaching quântico, animal ancestral, vidas passadas, astrologia, reiki e outras coisas do tipo. Porém, a "boa" religião, aquela que não se utiliza da boa-fé alheia para enriquecer e/ou acumular poder (e não me refiro apenas a seitas cristãs), também ela trabalha com o pensamento mágico, e se souber seu papel, serve justo para canalizar essa necessidade, assim como para conformar a pessoa à sua insuperável ignorância, por mais conhecimento que adquira (neste ponto, lembro sempre que me decidi ateu e parei com intermináveis discussões sobre deus ao ler um artigo do Frei Betto, em que ele pontuava que fé e conhecimento são duas áreas separadas, sem correlação). Há também a pseudociência - e nem falo dos sites de internet, e sim dos charlatões com PhD, mesmo: antes de Didier Raoult e o milagre da cloroquina, tivemos Lair Ribeiro acabando com o câncer de Marcelo Rezende sem quimioterapia (dizem que depois de morto, a doença estancou).
A espera do milagre pela ciência, se em parte se dá pela nossa subjetivação ainda fortemente influenciada pelo pensamento religioso - em que a necessidade de crer é imperativo, duvidar (sem ser em nome de outra crença) seria o inferno na Terra -, em outra é fruto da própria omissão das ciências e da academia em favor um ensino mais amplo e mais robusto da ciência, seus pressupostos, suas bases. O que temos é a apresentação, seja no ensino básico, seja na imprensa, de uma vulgata científica que apela à crença, a vulgarização extremamente rasa e rasteira de resultados ou, pior, de possíveis resultados. Para o vulgo, a ciência é apenas outra crença e os métodos de uma pesquisa exitosa não diferem em muito de uma boa reza: não adianta culpar o ignorante se quem tem o conhecimento e a possibilidade de instruí-lo é negligente ao repassá-lo. No cinema, uma boa caricatura de como a ciência é chega ciência aos grande público, de como são vistos os cientistas, está num filme dos seus primórdios: Viagem à Lua, do Georges Meliès, de 1902. Nele, homens com conhecimentos vindo da tradição (ao estilo da escolástica), vestidos em túnicas de magos, que fazem mágicas (como transformar as lunetas em banquetas) e tem ideias mirabolantes (como viajar à lua)! E só na hora de se apresentarem fora de seu círculo é que vestem fato completo, para ganhar a impressão de pessoas sérias e sisudas.
Por fim, o pensamento mágico na política e no pensamento social. Apesar de todos os alertas dos cientistas, dos pesquisadores, da OMS, muitos não acham que vai ser assim tão grave, porque o Brasil seria, sei lá, uma terra abençoada por deus, porque o brasileiro pega imunidade de tudo pulando no esgoto. Antes do grotesco com o vírus, já tínhamos um exemplo grotesco com o "vírus da corrupção": era tirar o PT (depois virou acabar com o PT), que a corrupção acabaria no país: 500 anos de história permeadas por relações pouco republicanas e alienar um partido resolveria. Ou então as reformas milagrosas dos neoliberais: das privatizações de FHC à reforma previdenciária de Bolsonaro-Guedes-Globo-STF, passando pela reforma trabalhista de temer. Que tal o fato de um homem, dotado apenas da vontade, ser capaz de mudar "tudo isso que está aí"? Convém lembrar que antes dele, no início deste século, havia quem dissesse que era "só você querer que amanhã assim será", miraculosamente, num estalo de dedo: em 48 horas o Brasil se resolveria. Ainda que hoje esse pensamento mágico na política seja instrumentalizado pela extrema direita (PSDB de Doria Jr é extrema direita, e sua repaginação durante o coronavírus não oculta sua política genocida nas periferias), ele já o foi também pela esquerda, que muitas vezes não sentiu necessidade de combatê-lo. Novamente a um exemplo do cinema: Encouraçado Potenkin, de Sergei Einsensteim (1925): basta um chamado à consciência de um dos marinheiros revoltados para que os artilheiros da embarcação deixem de cumprir a ordem do comandante, sem ninguém titubear, e estar pronta a revolta dos opressores contra os oprimidos. Consciência de classe instantânea, não dá tempo nem de preparar um miojo.
Talvez quem chegou até este ponto do texto esteja se perguntando: e como sair desta encruzilhada? Imaginar que haja uma resposta e que ela viria num texto é outro sintoma de apego a um pensamento mágico. O que podemos saber é que não há uma resposta pronta, sequer que acharemos algo de aplicação imediata para sairmos desse cipoal. Se a crise do coronavírus abre uma janela de oportunidades para começar a nos desvencilhar do pensamento mágico nessa (des)medida (o podcast Luz no Fim da Quarentena, do Foro de Teresina, me parece ser uma boa forma de divulgação científica sem vulgarização, mas não tenho condições de avaliar se alguém sem qualquer familiaridade com ciência dá conta de acompanhá-lo), é também uma janela de oportunidades para os oportunistas de plantão aprofundarem esse irracionalismo.
O que não podemos é seguir achando que a falta de reflexão e autorreflexão é privilégio de determinado grupo - de direita ou esquerda: por conta do espírito do tempo, estamos imersos nesse desejo de respostas rápidas, de fácil aplicação, que não demandam muitos esforços e não tem efeitos colaterais, alternativas que só podem ser milagres ou engodos. Ou aceitamos que precisamos trabalhar, trabalho pequeno, de dia a dia, sem glamour, com raros eventos interessantes para serem postados nas redes sociais, acompanhado de profunda reflexão crítica de nosso fazer e de nossas crenças - assim como nossa necessidade de crer -, ou não haverá novo mundo como consequência da pandemia: apenas novos elementos de um velho mundo conhecido, cômodo e sufocante.

28 de abril de 2020

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Em meio à pandemia, uma cidade habitada por pessoas invisíveis

Foto de André Conceição.
Instagram: @andre.conceicao.ac
Salvo duas idas ao mercadinho da esquina, a última vez que havia me afastado de casa tinha sido dia 18 de março, por conta de trabalho. Ainda que as ruas estivessem um pouco mais vazias, o comércio seguia aberto. Novamente por conta de trabalho, quarta dia 22 precisei sair de casa. Tinha três opções: a tradicional, tomar um metrô ao lado de casa e ir até a estação Tietê; chamar um motorista por aplicativo ou uma caminhada de uma hora e meia. Claro, não perdi a oportunidade de fazer o "trekking urbano" que tanto gosto.
Álcool gel no bolso, coloco a máscara e me lembro de quando fazia yoga, a hora da meditação: quando precisava ficar parado e concentrar, coceiras pelo corpo todo, como se pulgas surgissem do nada e avançassem famintas. A mesma coisa com a máscara: coça nariz, coça queixo, coça bochecha, coça, coça, coça, e eu sem poder pôr a mão. E segue coçando.
Isolado em casa, numa rua sem saída e sem movimento, não tenho noção do que acontece pela cidade. Imaginava-a mais movimentada, pelo que leio de quem saiu por esses dias. O movimento não é grande, mas também não é pequeno. No trajeto que fiz, São Paulo tinha um ar muito estranho.
Desço a rua Vergueiro e a avenida da Liberdade. Exceção à proximidade do Hospital do Servidor, pouco, muito pouco movimento, até chegar na praça da Liberdade. Não tem cara de domingo tampouco: aos domingos as lanchonetes estão abertas, há mais bicicletas na ciclovia, mais carros.
Na praça da Liberdade acontece uma feira livre, há um pouco de movimento, nada que se pareça com a Liberdade em qualquer dia semana. Há mais pessoas sentadas pela praça, para usar a internet (lembro no início da quarentena que se discutiu oferecer internet grátis, como forma de ajudar as pessoas a ficarem em casa, mas diante de um governo que não foi capaz de disponibilizar a contento dinheiro e meios de sobrevivência, discutir internet é luxo).
O movimento começa de fato na praça da Sé. Perto de um dia comum, há mais GCMs, há mais moradores de rua, há menos pregadores, menos transeuntes e turistas. Uma viatura da GCM vai em direção a uma fumaça que sai do centro da praça. Passa por ela como se fosse algo banal. Ao me aproximar, vejo uma mulher num fogão improvisado esquentando água, batatas doce ao seu lado. Um outro morador de rua comenta: "vão ficar boas essas batatas". Me lembro do conto da sopa de pedra, que li quando era inocente puro e besta de pouca idade, em um livro com contos e lendas da América Latina. Não entendi: por que o homem jogava fora as pedras da sopa? Precisei que meu pai explicasse a esperteza do protagonista. A sopa da mulher não tem nada de esperteza, nem de ingenuidade: é sobrevivência, é a estética da fome desprovida de toda arte. Ao avançar, descobrirei que essa uma nova tendência do centro menos nobre de São Paulo: fogões improvisados para preparar refeições possíveis - se até 'chefs' estão tendo que se reinventar durante a crise, como várias reportagens não cansam de mostrar esse "drama", que dirá dos esfomeados...
Desço a General Carneiro até a 25 de março. Alguns poucos ambulantes vendem meias e máscaras. Quase ninguém na rua, mas ainda assim a 25 tem um ar de estar movimentada: como se seu tropel habitual fosse um moto perpétuo que acontece independente das passadas serem reais ou apenas espectros. Nas proximidades do mercadão noto mais de movimento - inclusive de carros -, nada que aproxime de um domingo. Com boa vontade, metade das pessoas está de máscaras, muitas delas deixam o nariz de fora, para melhor respirar, outras protegem do vírus entrar pelo cavanhaque ou pela papada, as orientais são disparadamente os mais diligentes no quesito de precaução. Avançando depois da Senador Queiros, pessoas na porta de seus estabelecimentos brincam com conhecidos que transitam: "não vai ficar em casa?", "saí, mas é rapidinho".
O que mais chama a atenção nesse trajeto do centro, sempre tão movimentado, é como emergiram os invisíveis: são muitos e muitos, mais que nos dias de antanhos, que hoje chamamos de "normais" - apesar dessa anormalidade sempre estar presente na Sé. Esse tanto de mendigos e moradores de rua sempre esteve ali? Talvez sim, mas diluídos no mar de gente que transita, a proporção faz perdermos a noção de quantos realmente são. Talvez porque muitas pessoas estejam em sua casa, eles, nas deles - a rua -, surja tão gritante aos meus olhos. Ou talvez mais pessoas hoje residam na rua, não sei. Pelo jeito, o rapa da GCM contra moradores de rua também anda em baixa: vi várias casas improvisadas, com razoável estrutura montada. Novamente me lembro da minha infância, minhas cabanas de cobertor, almofadas e caixas de papelão. Já no Canindé, passo por uma que aparenta ser um cantinho bastante aconchegante, admito. A dona da "casa" está do lado de fora, acende o fogo com o qual vai preparar seu almoço. Pouco adiante, cruzo com alguns adolescentes que caminham despreocupadamente, com a soberba imunidade autorizada pelo presidente da república. O clima de férias destoa deles destoa do que presenciei em todo o resto do trajeto, onde uma pinta de preocupação é notável, mesmo que se faça piada da pandemia.
Cumpro minhas obrigações laborais e volto pelo mesmo trajeto. Na casa que havia comentado antes, a panela já está no fogo, a entrada do barraco está fechado com algo que faz a vez de uma precária porta, reparo que há um tapete na entrada: a mulher tirou os chinelos para entrar em casa. Ao passar pela feira livre que acontece no Canindé, pego um resto de conversa entre dois homens, o sem máscara está terminando sua frase "...um irresponsável!", ao que o mascarado complementa: "alguém tinha que chegar e matar esse filho da puta, que não deixa a gente trabalhar". Desconfio que falem do governador do estado, mas o que mais me chama a atenção é ao que foi reduzida a política: solução é via derrubada ou - melhor ainda? - assassinato puro e simples. O mundo não será o mesmo, dizem, depois da pandemia. Também creio nisso, e sou otimista. Porém ao ouvir coisas como essa sei que o trabalho não será pouco e não será breve para a reconstrução de um mundo onde a convivência pacífica seja um direito, não um privilégio.

24 de abril de 2020

segunda-feira, 16 de março de 2020

São Paulo no primeiro dia de quarentena

Acordo com o sinal da escola em frente da minha casa. Porém hoje o Mozart do sinal toca sozinho: não havia a tradicional algazarra que o acompanha e vai aos poucos arrefecendo - que me lembra minha infância, a Escola Dona Frida na esquina. Sem víveres suficiente para uma quarentena mais longa (que sequer sei se cumprirei, dado obrigações de trabalho), me aventuro pelo centro de São Paulo, na zona cerealista - eu poderia, talvez, ter comprado pela internet, terceirizando, assim, meu risco, mas quis também ver como estava o clima da cidade, para além do calor seco da manhã.
Em tempo: não costumo entrar nesses temores coletivos com muito afinco - a gripe suína, por exemplo, não achei que valia a pena me vacinar -, mas tenho me preocupado um pouco mais com o coronavírus por conta do impacto na saúde pública, da necessidade de internação, apesar da baixa letalidade - e com minha mãe, que não parece, mas é do grupo de risco.
Para minha surpresa, no centro, o dia transcorria sem grandes mudanças: movimento normal nas ruas e nos comércios da região, alguns transeuntes com máscaras, a grande maioria orientais (creio eu que chineses e taiwaneses, cujo senso de comunidade, desconfio, ainda está mais arraigado - ao menos é minha experiência com o círculo da minha ex-namorada). Também eu estava sem máscara, e nem me dei ao trabalho de procurar em uma farmácia, dada duas conversas que ouvi no caminho do metrô, pessoas ansiosas perguntando aos mascarados onde haviam conseguido (ao regressar, achei uma perdida, que recebi para assistir ao excelente espetáculo A Parede, do 28 Patas Furiosas). Me assustou, contudo, o fato dos atendentes estarem todos - salvo uma oriental no mercado municipal Kinjo Yamato - sem máscara: oito horas em contato próximo com centenas, talvez milhares de pessoas, cada comércio é um foco de propagação da doença. Em um dos estabelecimentos, um funcionário comentava em tom jocoso que ali todos tinham seguro de vida - como se isso assegurasse a vida de quem parte e não apenas recompensasse quem fica. Mas é o ponto onde estamos: dinheiro vale mais que vidas, e as próprias vidas descartáveis aceitam isso como natural.
O mais estranho, entretanto, é a sensação de andar na rua, desprotegido e sem saber se a pessoa que parou ao seu lado para esperar o sinal abrir não estaria contaminada, se não é na hora que eu recebi o bom dia da caixa que terei contraído o vírus. Uma sensação estranha e muito desagradável e incômoda de se sentir ameaçado e não saber por quem, sendo obrigado a desconfiar, a temer todos. Algo que nunca havia sentido antes, em minhas muitas andanças por São Paulo, nem mesmo quando me aventurei de madrugada pela chamada Cracolândia, onde ao menos se tem noção de por onde fugir. Já hoje, no quente sol do meio dia, não como antever de onde vem o perigo e, portanto, as rotas de fuga - uma sensação mais que propícia para que o estado ou algum ente equivalente lance mão de controle de toda a população, como forma de aplacar essa vulnerabilidade extrema. Biopolítica sentida na pele.
Ao regressar a minha casa, em minha bolha virtual de classe média, meus conhecidos aderiram à quarentena, abnegadamente, e faziam da experiência uma espécie de reality show para instagram, de performance medíocre de exposição do ego: dois dias e reclamam de tédio, como se não passassem três dias trancados em casa, fazendo maratona de seriados; "momento faxina", como se fosse algo genial fazer uma faxina na casa; vontade absurda de começar a fazer sexo grupal - justo agora que não dá pra sair de casa -, e uma miríade de exemplos de como classe média sofre. Sofre e é consciente: porque, claro, o que não faltou foi defesa de que se dispensasse e pagasse as diaristas, e muitas críticas a quem ousou sair de casa com o coronavírus no ar - como as mães que largaram seus filhos (já que não tem aula) para ganhar o pão do dia, ou os entregadores dos produtos que eles compraram pela internet.

16 de março de 2020