segunda-feira, 16 de março de 2020

São Paulo no primeiro dia de quarentena

Acordo com o sinal da escola em frente da minha casa. Porém hoje o Mozart do sinal toca sozinho: não havia a tradicional algazarra que o acompanha e vai aos poucos arrefecendo - que me lembra minha infância, a Escola Dona Frida na esquina. Sem víveres suficiente para uma quarentena mais longa (que sequer sei se cumprirei, dado obrigações de trabalho), me aventuro pelo centro de São Paulo, na zona cerealista - eu poderia, talvez, ter comprado pela internet, terceirizando, assim, meu risco, mas quis também ver como estava o clima da cidade, para além do calor seco da manhã.
Em tempo: não costumo entrar nesses temores coletivos com muito afinco - a gripe suína, por exemplo, não achei que valia a pena me vacinar -, mas tenho me preocupado um pouco mais com o coronavírus por conta do impacto na saúde pública, da necessidade de internação, apesar da baixa letalidade - e com minha mãe, que não parece, mas é do grupo de risco.
Para minha surpresa, no centro, o dia transcorria sem grandes mudanças: movimento normal nas ruas e nos comércios da região, alguns transeuntes com máscaras, a grande maioria orientais (creio eu que chineses e taiwaneses, cujo senso de comunidade, desconfio, ainda está mais arraigado - ao menos é minha experiência com o círculo da minha ex-namorada). Também eu estava sem máscara, e nem me dei ao trabalho de procurar em uma farmácia, dada duas conversas que ouvi no caminho do metrô, pessoas ansiosas perguntando aos mascarados onde haviam conseguido (ao regressar, achei uma perdida, que recebi para assistir ao excelente espetáculo A Parede, do 28 Patas Furiosas). Me assustou, contudo, o fato dos atendentes estarem todos - salvo uma oriental no mercado municipal Kinjo Yamato - sem máscara: oito horas em contato próximo com centenas, talvez milhares de pessoas, cada comércio é um foco de propagação da doença. Em um dos estabelecimentos, um funcionário comentava em tom jocoso que ali todos tinham seguro de vida - como se isso assegurasse a vida de quem parte e não apenas recompensasse quem fica. Mas é o ponto onde estamos: dinheiro vale mais que vidas, e as próprias vidas descartáveis aceitam isso como natural.
O mais estranho, entretanto, é a sensação de andar na rua, desprotegido e sem saber se a pessoa que parou ao seu lado para esperar o sinal abrir não estaria contaminada, se não é na hora que eu recebi o bom dia da caixa que terei contraído o vírus. Uma sensação estranha e muito desagradável e incômoda de se sentir ameaçado e não saber por quem, sendo obrigado a desconfiar, a temer todos. Algo que nunca havia sentido antes, em minhas muitas andanças por São Paulo, nem mesmo quando me aventurei de madrugada pela chamada Cracolândia, onde ao menos se tem noção de por onde fugir. Já hoje, no quente sol do meio dia, não como antever de onde vem o perigo e, portanto, as rotas de fuga - uma sensação mais que propícia para que o estado ou algum ente equivalente lance mão de controle de toda a população, como forma de aplacar essa vulnerabilidade extrema. Biopolítica sentida na pele.
Ao regressar a minha casa, em minha bolha virtual de classe média, meus conhecidos aderiram à quarentena, abnegadamente, e faziam da experiência uma espécie de reality show para instagram, de performance medíocre de exposição do ego: dois dias e reclamam de tédio, como se não passassem três dias trancados em casa, fazendo maratona de seriados; "momento faxina", como se fosse algo genial fazer uma faxina na casa; vontade absurda de começar a fazer sexo grupal - justo agora que não dá pra sair de casa -, e uma miríade de exemplos de como classe média sofre. Sofre e é consciente: porque, claro, o que não faltou foi defesa de que se dispensasse e pagasse as diaristas, e muitas críticas a quem ousou sair de casa com o coronavírus no ar - como as mães que largaram seus filhos (já que não tem aula) para ganhar o pão do dia, ou os entregadores dos produtos que eles compraram pela internet.

16 de março de 2020

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