sexta-feira, 6 de março de 2009

A dosagem exata (de bebida)

A ciência moderna, principalmente com seus avanços supersônicos das últimas décadas, prima pela certeza, pela precisão. Estão aí a nanotecnologia e os mísseis teleguiados para mostrar essa busca. A medicina é, ela também, uma ciência. Daí sua busca por ser cada vez mais exata, matemática, a despeito das pessoas insistirem em serem seres biológicos. Ela não é nada relacionada, por exemplo, com xamanismos indígenas, esses em que se realizam procedimentos risíveis de tão absurdos, geralmente rezas e danças do pajé, culminando com esfregações de um pó-de-mico qualquer, e que acham que com isso se cura algo.
Com a medicina você escolhe qual corrente ou médico lhe agrada e passa a acreditar e a seguir (quase) tudo o que ele diz. Sendo que o que ele diz, na maioria das vezes, é a dosagem exata dos princípios ativos para a doença a ser curada. Se a doença persiste, bem, aí a culpa é da doença, que não está seguindo os compêndios científicos de medicina, e não do médico ou da própria medicina.
Mas a medicina não se preocupa somente com a doença. Ainda que consulta boa seja aquela em que se sai com uma receita de remédio, há também a chamada medicina preventiva, sempre atenta a todos os males que qualquer prazer é capaz de acarretar.
Um dos poucos prazeres que têm conseguido se manter a salvo das investidas da medicina preventiva é a de que uma dose de vinho por dia aumenta expectativa de vida. Há quem diga que uma dose de suco de uva diária faça o mesmo efeito. E há uns escoceses (ainda não consegui chegar à conclusão se por carolice ou por nacionalismo) que dizem que essa dose de vinho faz mal. Contudo, como não há médico (salvo, talvez, os escoceses) que dispense um bom vinho, ninguém leva a sério essa pesquisa.
Todavia, segundo as últimas investigações médicas, se uma dose faz bem, beber duas é acelerar o passo para a cova. Isso de início não me preocupou muito: não creio nos escoceses nem nunca chego à segunda dose. Aqueles que avançam para a terceira quarta quinta eu não sei como ficam, acho que faltam pesquisas a respeito, já que a lógica médica não segue parâmetros muito tradicionais (por mais que tentem). Depois de pensar um pouco, porém, me veio a angústia: há dias que o vinho é bom e a companhia, agradável, e eu acabo bebendo meia dose a mais. Com essa meia dose extra não chego às duas doses fatais, mas também saio da dose demi-eterna. Teria ela o poder de fazer com que minha hora chegasse no momento marcado, nem antes, nem depois: exato?
Enfim, como a medicina até hoje só criou o relógio biológico, e não o cronômetro biológico, por um tempo ficarei sem saber a resposta. E não irei dispensar, quando o vinho estiver bom e a companhia, agradável, essa meia dose a mais até lá. E também não sei se vou acreditar nesse cronômetro, quando surgir.

Campinas, 06 de março de 2009

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Carta para Folha: trote

"Um dos problemas quando se fala em "trote violento" é que o senso comum trata como violento somente o trote que resulta em violência física ou, eventualmente, em ações excessivamente degradantes aos alunos ingressantes.
Contudo, a violência está já no próprio desmerecimento à pessoa -posta em situação de inferioridade, por ser "bicho". É ilusão imaginar que um jovem de 18 ou 20 anos, em um local desconhecido e cercado de veteranos gritando e pulando feito primatas, não irá consentir com o trote, por mais que não queira ter os cabelos raspados ou participar de brincadeiras vexaminosas (mas que, por serem tradicionais, não são enquadradas como trote violento).
Todos os anos, ao ver grupos de calouros sendo levados pintados, sujos, amarrados ou em "elefantinho" pelos veteranos da Unicamp, não há como não recordar o texto de Theodor Adorno, "Educação após Auschwitz", que já alertava que a união de tradição com a modernidade resulta na barbárie."