quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Meia ópera e um teco de São Paulo

Apenas havia visto, no sábado, que haveria ópera do Villa-Lobos, no Teatro Municipal, esta quinta, nas comemorações dos noventa anos da semana de arte moderna de 1922, e resolvi comprar o ingresso. Vi o título – Magdalena –, não a conhecia, não fui atrás de me informar. Comprei o ingresso mais barato – porque as contas na capital andam ariscas –, e me dispus a aproveitar São Paulo naquilo que não tinha em Campinas.

Talvez eu devesse ter assistido à ópera sem ter lido antes a apresentação. Ou talvez devesse ter lido sobre a ópera antes de ter comprado o ingresso – e deixado para conhecer o Municipal em outra oportunidade: Magdalena é uma ópera-musical, ou musical-opéra, feito especialmente para a Broadway, em 1947.

No intervalo, já não sendo grande fã de ópera – dia desses ouvi Iris, de Mascagni, e essa eu gostei!, ao menos de ouvir –, cansado daquele pot-pourri (ou remix, se for usar um jargão mais modernex) de Villa-Lobos feito por ele próprio, com um libreto muito fraco, e com coreografias até que bacaninhas, mas bem no estilo musical, decidi ir embora - ouvir Vivaldi ou Dirié, que ganhava mais. Em casa, mais tarde, li o resumo da ópera, e vi que o chavão que se desenhava era de fato o que aconteceria.

Era pouco mais de nove da noite. Cheguei ao Anhangabaú e resolvi ir até a República, para não ter que fazer baldeação. No meio do caminho, decidi dar uns giros por aquela região central de São Paulo, desta feita sem a companhia do Cássio, como sói acontecer. Decisão não digo sábia, mas a única a ser tomada, uma vez que me perdi e não achei – senão bem mais tarde – a praça da República:: São Paulo não é uma cidade racional.

Nas calçadas, sacos de lixo e pessoas se amontoavam – dali a pouco devia ser hora do lixeiro passar. Achei curioso, talvez pelo guarda-chuva pendurado no ombro, não sei, ninguém me ter me abordado para pedir dinheiro – quando caminho com o Cássio, mais ou menos na mesma hora, invariavelmente alguém nos pára, mesmo que tenhamos dado uma volta rápida. Passo por prédios ocupados pela FLM (Frente de Luta por Moradia). Passo por prédios desocupados, e que mereciam um fim mais nobre: não apenas serem ocupados, mas serem de fato resididos – por pessoas como as que militam no FLM, por exemplo, cujo interesse vai ao encontro do da cidade. Do outro lado da Av. São João, um grande grupo de moradores de rua: auto-proteção? pedra? sopa?

Reparo que se seguisse em frente, a avenida ermava, resolvo dobrar uma rua um pouco mais movimentada. Passo por um restaurante aparentemente chique – ao menos guardava um ar portenho –, e logo me deparo com o Largo do Arouche, ao menos com a placa – porque depois, vendo no mapa, noto que mal tangeciei o famigerado Largo. Me vêm à mente a música do Criolo, "Freguês da meia-noite": Em pleno Largo do Arouche, em frente ao Mercado das Flores, Há um restaurante francês. Não sei por quais quebradas me meto e logo estou frente a frente com o Elevado Costa e Silva – o Minhocão. Me sobe aquele medo na espinha, fodeu – talvez o nome daquele monstro citadino seja uma justa homenagem ao assassino que governou o Brasil de 1967 a 1969, deveriam fazer outras do gênero. Por qualquer mania que tenho, decido não voltar pelo mesmo caminho; viro à esquerda, e na segunda rua, vendo que há um grande número de transeuntes, entro nela, na esperança de dar com algum lugar conhecido. Pessoas malham numa academia, carros passam, travestis caminham para seus pontos. Dois mendigos conversam, sentados na sarjeta: quem tem medo de cagar não come. Olho para trás, tenho vontade de voltar e cumprimentá-lo pela frase, quem sabe até lhe dar um dinheiro – quanto custa um livro de auto-ajuda? Não o faço e me arrependo depois: quem tem medo de cagar não come, posso ter perdido alguma outra pérola do homem. Que não tivesse outra, essa valeu a noite. Depois de errar outra entrada, ao invés de entrar na Consolação, acabo na República. Só dali chego à Av. da Consolação.

Contorno a Praça Roosevelt e subo a Augusta. Um homem me chama, que tal tomar uma breja com a mulherada. Agradeço. Domingo, quando passei por lá, voltando da casa do Cássio, imaginei como não seria a tal mulherada, a se tomar como base as que estavam na porta. Nesse mesmo domingo, exatamente ao lado, por conta de um barzinho, uma grande aglomeração de adolescentes e jovens vestidos de preto. Duas belas garotas gargalham, e quase esbarram no mendigo que dorme ao seu lado.

Quinta é diferente, ou ao menos a hora ainda não é apropriada, não há jovens darks e emos ao lado do inferninho, e os mendigos ainda não se aconchegaram sob as marquises. Sigo em meu passo rápido – se tem uma coisa que sou paulistano de nascença é a velocidade de caminhar, principalmente se estou sozinho –, mas logo preciso parar: um mendigo pede dinheiro pra pinga para três jovens que descem em direção ao centro, e os quatro ocupam toda a calçada. Não lhe dão atenção, e eu passo assim que possível. Obrigado de qualquer forma, desculpa o incômodo. Parece que pedir dinheiro pra pinga é a moda entre pedintes. Me soa hipócrita: uma garrafa de pinga custa R$ 3,00, não precisam esmolar tanto se é pra beber. Mas esse o segredo para sobreviver numa sociedade hipócrita: diga o que querem ouvir que lhe darão dinheiro. Se disser que é pra comida, vão dizer que está mentindo, se for pra cigarro... melhor que beba, porque cigarro faz mal.

Passo por um rapaz que parece o Mário (não, não é uma piada para perguntar que Mário), duas vezes calouro meu na Unicamp. Qual enésimo curso terá ele começado (ou recomeçado) este ano? Num bar, um homem usa uma boina, que não controla a vasta cabeleira encaracolada, grisalha e desagruvinhada, metido numa espécie de manto colorido. Parece saído de algum filme B que passa à tarde, sobre vagabundos nas florestas da Inglaterra – faltou uma flauta. Lembro da discussão que tivera com o Cássio, há quatro dias, e me pergunto uma vez mais: quem não está fantasiado? Que não está encarnando uma persona na cidade? Num dos inferninhos mais acima, ao invés de mulheres semi-nuas, homens sem camisa e com salientes barrigas descarregam cerveja – e recordo questão que pusera ao Wlad, há um tempo: por que todo maitre de inferninho precisa lembrar o Ratinho?

Caminho um pouco mais e cruzo com outro homem que soa conhecido, esse lembrando algum ex-colega de escola, de Pato Branco – era o Norton ou o Pelicano? Um homem em roupas psicodélicas expõe seu artesanato na calçada, está com óculos escuros: enxerga alguma coisa com aqueles óculos à noite? O Cine-Unibanco ainda não terminou de ser fechado. Quase chegando na Paulista, reparo de canto de olho um rapaz que vem na direção contrária hesitar. Por fim, acaba me abordando, já quando estamos lado a lado. Amigo. Tarde demais, não diminuo o passo e finjo que não ouvi, concentrado que estou na minha futura crônica.

Desço a Haddock Lobo. Pela hora, não tenho esperanças de encontrar com nenhuma Flávia que lembre a Carla Bruni. E realmente não cruzo com ninguém. No barzinho da esquina de casa havia uma mocinha bonitinha, mas não se parecia com a Carla Bruni. Em casa estão o Hugo e o Gabriel.


São Paulo, 23 de fevereiro de 2012.

ps: ao entrar no sítio da FLM [www.portalflm.com.br], desconfio que o grupo que se ajeitava sob a marquise, do outro lado da Av. São João, devia estar em busca de auto-proteção, mesmo.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Política ou polícia: as tais “lições de democracia”, novamente na USP.

Neste domingo de carnaval, 19 de fevereiro de 2012, mais uma vez a Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo tomou a fresca da madrugada na Universidade de São Paulo [http://j.mp/yd0p10]. Chegou às cinco horas da manhã para desocupar meia dúzia de saletas que há quase dois anos eram ocupadas por estudantes que reivindicam aumento de vagas na moradia estudantil – o CRUSP –, distribuindo democraticamente violência, inclusive deixando sua marca em uma mulher grávida. Diz a polícia que apenas se utilizou da força necessária para se defender. Para uma polícia com longa lista de "mortes em conflito" e acusações de violações de direitos humanos, podemos deduzir que bala de borracha seja coisa leve.

Contrariamente à ocupação da reitoria, em novembro de 2011, não havia nenhum motivo que pudesse ser alegado “forte” para desocupação do prédio: o Moradia Retomada, definitivamente, não atrapalhava em nada as atividades burocráticas, administrativas ou pedagógicas da universidade. Não eram vagabundos, baderneiros, maconheiros, irresponsável, pelo contrário: conseguiam uma organização, e tinham um senso de responsabilidade – individual e coletivo – que a USP tem se mostrado falha em muitos aspectos. Mas a lei é a lei, dirão alguns, defensores da ordem e do progresso, ignorando que se a lei fosse a lei para sempre, a escravidão ainda estaria em vigência, e não teríamos tido FHC, Lula ou Dilma na condução do país, e sim Dom Luís Gastão Maria José Pio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orléans e Bragança e Wittelsbach – apesar que, com o pensamento político visceral que parece ser a regra hoje nestes tristes trópicos, muitos devem encarar esse futuro do pretérito como virtuoso.

Como no Brasil o que temos é um arremedo de segunda linha do programa Renda Básica Cidadã (ou Renda Mínima), vinculado ainda ao que (não) ganha uma pessoa, o auxílio estudantil se torna um imperativo não apenas do ponto de vista individual, como do próprio critério de excelência acadêmica: alguém preocupado com onde morar, ou morando precariamente, tende a ter dificuldades para se concentrar nos estudos. Inclusive nesses ranqueamentos que mídia e academia de país subdesenvolvido adoram, índice de desistência do curso é algo levado em conta.

Não é demais repetir, entretanto, que a universidade pública brasileira – as paulistas acima de tudo – é feita pela elite e para a elite, para a perpetuação da elite. Os órgãos de assistência à ciência, idem. Pretendo tratar em mais detalhes deste assunto em crônica posterior.

Na semana anterior foi noticiado parceria entre USP e SPTrans, para que haja um circular que faça o trajeto USP-Estação Butantã do metrô gratuitamente para alunos e funcionários. Primeiro aspecto a ser lembrado: originalmente deveria haver uma estação de metrô dentro do campus, ela não existe porque a universidade vetou – não imaginemos que seja um disparate de uma burguesia burra e preconceituosa as reações contra as estações em Higienópolis ou no Morumbi. Segundo ponto: já que a estação fica fora do campus e haverá uma linha que fará a ligação direta entre esses dois pontos, por que não estender a gratuidade a todos os que desejam ir até a USP, seja para pesquisar, para usar a biblioteca, para vender artesanato, para catar latinhas, para passear, para ir ao MAC? No que custará a mais para USP ou SPTrans cinqüenta pessoas ao invés de dez num ônibus? Contudo, sabe-se bem quanto custará a mais para essas pessoas. Isso para não falar no aspecto simbólico: apesar de não ser inibidor dessas pessoas sem direito legal ao templo sagrado do conhecimento freqüentarem-no, ter que pagar a integração com o ônibus, ou mesmo fazer uma caminhada de vinte minutos para chegar à USP, serve para deixar claro que não são bem vindas. Lugar de povo é na cidade; na USP, acadêmicos e pessoas em seus carros, em trânsito para os bairros nobres que a cercam.

Volto à questão inicial, a nova ação do Choque na USP. Ou melhor: a nova ação do Choque em ação de contestação política. Já é assustador notar que se trata de política deliberada – política de governo – do PSDB paulista massacrar (não, o termo massacre não é pesado) qualquer contestação política e social que não seja feita nas instâncias “apropriadas”: via representantes nas casas legislativas – nas quais, diante das manobras e dos acordos entre cavalheiros que ocorrem a rodo, contestações ou são abafadas, ou são risíveis. Ainda mais aterrador é esse padrão se repetir com tamanha naturalidade na USP, teoricamente centro de excelência da ciência e do pensamento tupiniquim. Apesar de não ser o reitor mais votado – Serra escolheu o segundo na lista tríplice –, Rodas recebeu votos: possuía apoio, portanto, quando assumiu o cargo. E ainda que seu apoio seja precário – e ele e seu grupo o administra muito mal –, houve poucas manifestações contundentes e em peso dos seus pares – professores da USP – pelas atitudes que vem tomando – desmandos que vão bem além da questão da ação policial.

Não se pode chamar Rodas de fascista, simplesmente – até porque o fascismo é um fenômeno político bem delimitado na história –, mas as semelhanças que ele guarda com o movimento do início do século são evidentes, e coadunam com a idéia de universidade defendida pela elite ilustrada e pela Grande Imprensa: o tecnocratismo levado ao extremo da negação radical da política – via perseguições internas ou via polícia. A passividade dos professores apenas reforça essa impressão. Não se trata aqui de encampar o tosco discurso “quem defende a universidade não deve ser punido”, afinal, não há um absoluto do que seja a defesa da universidade, mas saber que dissenção é parte da política e da ciência – goste-se ou não, ambas estão fortemente vinculadas. Assumir o debate e a negociação – que não devem ser confundidos, o primeiro com o é assim, entendeu?, a segunda com você faz do meu jeito e estamos todos bem – é fator vital para o crescimento da própria universidade, e até, quem sabe, para uma futura inserção de fato desta na vida quotidiana do país – inserção essa, espero, que não seja para calcular o gás mais agressivo sem ser letal, se é que ser letal de vez em quando não caia bem, a depender sobre quem.


São Paulo, 20 de fevereiro de 2012.