Apenas havia visto, no sábado, que haveria ópera do Villa-Lobos, no
Teatro Municipal, esta quinta, nas comemorações dos noventa anos da
semana de arte moderna de 1922, e resolvi comprar o ingresso. Vi o
título – Magdalena –, não a conhecia, não fui atrás de me
informar. Comprei o ingresso mais barato – porque as contas na
capital andam ariscas –, e me dispus a aproveitar São Paulo
naquilo que não tinha em Campinas.
Talvez eu devesse ter assistido à ópera sem ter lido antes a
apresentação. Ou talvez devesse ter lido sobre a ópera antes de
ter comprado o ingresso – e deixado para conhecer o Municipal em
outra oportunidade: Magdalena é uma ópera-musical, ou
musical-opéra, feito especialmente para a Broadway, em 1947.
No intervalo, já não sendo grande fã de ópera – dia desses ouvi
Iris, de Mascagni, e essa eu gostei!, ao menos de ouvir –, cansado
daquele pot-pourri (ou remix, se for usar um jargão mais modernex)
de Villa-Lobos feito por ele próprio, com um libreto muito fraco, e
com coreografias até que bacaninhas, mas bem no estilo musical,
decidi ir embora - ouvir Vivaldi ou Dirié, que ganhava mais. Em casa, mais tarde, li o resumo da ópera, e vi
que o chavão que se desenhava era de fato o que aconteceria.
Era pouco mais de nove da noite. Cheguei ao Anhangabaú e resolvi ir
até a República, para não ter que fazer baldeação. No meio do
caminho, decidi dar uns giros por aquela região central de São
Paulo, desta feita sem a companhia do Cássio, como sói acontecer.
Decisão não digo sábia, mas a única a ser tomada, uma vez que me
perdi e não achei – senão bem mais tarde – a praça da
República:: São Paulo não é uma cidade racional.
Nas calçadas, sacos de lixo e pessoas se amontoavam – dali a pouco
devia ser hora do lixeiro passar. Achei curioso, talvez pelo
guarda-chuva pendurado no ombro, não sei, ninguém me ter me
abordado para pedir dinheiro – quando caminho com o Cássio, mais
ou menos na mesma hora, invariavelmente alguém nos pára, mesmo que
tenhamos dado uma volta rápida. Passo por prédios ocupados pela FLM
(Frente de Luta por Moradia). Passo por prédios desocupados, e que
mereciam um fim mais nobre: não apenas serem ocupados, mas serem de
fato resididos – por pessoas como as que militam no FLM, por
exemplo, cujo interesse vai ao encontro do da cidade. Do outro lado
da Av. São João, um grande grupo de moradores de rua:
auto-proteção? pedra? sopa?
Reparo que se seguisse em frente, a avenida ermava, resolvo dobrar
uma rua um pouco mais movimentada. Passo por um restaurante
aparentemente chique – ao menos guardava um ar portenho –, e logo
me deparo com o Largo do Arouche, ao menos com a placa – porque
depois, vendo no mapa, noto que mal tangeciei o famigerado Largo. Me
vêm à mente a música do Criolo, "Freguês da meia-noite":
Em pleno Largo do Arouche, em frente ao Mercado das Flores, Há um
restaurante francês. Não sei por quais quebradas me meto e logo
estou frente a frente com o Elevado Costa e Silva – o Minhocão. Me
sobe aquele medo na espinha, fodeu – talvez o nome daquele
monstro citadino seja uma justa homenagem ao assassino que governou o
Brasil de 1967 a 1969, deveriam fazer outras do gênero. Por qualquer
mania que tenho, decido não voltar pelo mesmo caminho; viro à
esquerda, e na segunda rua, vendo que há um grande número de
transeuntes, entro nela, na esperança de dar com algum lugar
conhecido. Pessoas malham numa academia, carros passam, travestis
caminham para seus pontos. Dois mendigos conversam, sentados na
sarjeta: quem tem medo de cagar não come.
Olho para trás, tenho vontade de voltar e cumprimentá-lo pela
frase, quem sabe até lhe dar um dinheiro – quanto custa um livro
de auto-ajuda? Não o faço e me arrependo depois: quem tem
medo de cagar não come, posso
ter perdido alguma outra pérola do homem. Que não tivesse outra,
essa valeu a noite. Depois de errar outra entrada, ao invés
de entrar na Consolação, acabo na República. Só dali chego à Av.
da Consolação.
Contorno a Praça Roosevelt e subo a Augusta. Um homem me chama, que
tal tomar uma breja com a mulherada. Agradeço. Domingo, quando
passei por lá, voltando da casa do Cássio, imaginei como não seria
a tal mulherada, a se tomar como base as que estavam na porta. Nesse
mesmo domingo, exatamente ao lado, por conta de um barzinho, uma
grande aglomeração de adolescentes e jovens vestidos de preto. Duas
belas garotas gargalham, e quase esbarram no mendigo que dorme ao seu
lado.
Quinta é diferente, ou ao menos a hora ainda não é apropriada, não
há jovens darks e emos ao lado do inferninho, e os mendigos ainda
não se aconchegaram sob as marquises. Sigo em meu passo rápido –
se tem uma coisa que sou paulistano de nascença é a velocidade de
caminhar, principalmente se estou sozinho –, mas logo preciso
parar: um mendigo pede dinheiro pra pinga para três jovens que
descem em direção ao centro, e os quatro ocupam toda a calçada.
Não lhe dão atenção, e eu passo assim que possível. Obrigado
de qualquer forma, desculpa o incômodo.
Parece que pedir dinheiro pra pinga é a moda entre pedintes. Me soa
hipócrita: uma garrafa de pinga custa R$ 3,00, não precisam esmolar
tanto se é pra beber. Mas esse o segredo para sobreviver numa
sociedade hipócrita: diga o que querem ouvir que lhe darão
dinheiro. Se disser que é pra comida, vão dizer que está mentindo,
se for pra cigarro... melhor que beba, porque cigarro faz mal.
Passo por um rapaz que parece o Mário (não, não é uma piada para perguntar que Mário), duas vezes calouro meu na Unicamp. Qual enésimo curso terá ele começado (ou recomeçado) este ano? Num bar, um homem usa uma boina, que não controla a vasta cabeleira encaracolada, grisalha e desagruvinhada, metido numa espécie de manto colorido. Parece saído de algum filme B que passa à tarde, sobre vagabundos nas florestas da Inglaterra – faltou uma flauta. Lembro da discussão que tivera com o Cássio, há quatro dias, e me pergunto uma vez mais: quem não está fantasiado? Que não está encarnando uma persona na cidade? Num dos inferninhos mais acima, ao invés de mulheres semi-nuas, homens sem camisa e com salientes barrigas descarregam cerveja – e recordo questão que pusera ao Wlad, há um tempo: por que todo maitre de inferninho precisa lembrar o Ratinho?
Caminho um pouco mais e cruzo com outro homem que soa conhecido, esse lembrando algum ex-colega de escola, de Pato Branco – era o Norton ou o Pelicano? Um homem em roupas psicodélicas expõe seu artesanato na calçada, está com óculos escuros: enxerga alguma coisa com aqueles óculos à noite? O Cine-Unibanco ainda não terminou de ser fechado. Quase chegando na Paulista, reparo de canto de olho um rapaz que vem na direção contrária hesitar. Por fim, acaba me abordando, já quando estamos lado a lado. Amigo. Tarde demais, não diminuo o passo e finjo que não ouvi, concentrado que estou na minha futura crônica.
Desço a Haddock Lobo. Pela hora, não tenho esperanças de encontrar
com nenhuma Flávia que lembre a Carla Bruni. E realmente não cruzo
com ninguém. No barzinho da esquina de casa havia uma mocinha
bonitinha, mas não se parecia com a Carla Bruni. Em casa estão o
Hugo e o Gabriel.
São Paulo, 23 de fevereiro de 2012.
ps: ao entrar no sítio da FLM [www.portalflm.com.br], desconfio que
o grupo que se ajeitava sob a marquise, do outro lado da Av. São
João, devia estar em busca de auto-proteção, mesmo.
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