quinta-feira, 14 de junho de 2012

Uma crônica ou uma guria.

Sexta recebi mensagem de uma amiga, a mesma que me sugeriu uma substituta oriental a Ruth, a balconista: "chochile à tarde que hoje vamos te arranjar uma crônica ou uma guria". Mandou tarde o sms: eu havia combinado de me encontrar com alguns amigos de Ribeirão, e estava já no CCBB, na exposição "Corpos presentes", de Antony Gormley.

Breve parênteses para comentário: a parte interna eu preciso ir de novo, ver com mais calma. A parte externa, espalhada pelo centro da cidade, essa eu já havia visto em outros momentos, e acabei discordando dos meus amigos, talvez por ter começado por elas: aquelas estátuas no alto dos prédios, na interação com a urbe, não me soavam como suicidas – à distância, pareciam eretas e rígidas demais para estarem como hesitando para o salto final –, e sim como vigilantes em postos avançados, nesta cidade super-vigiada, super-protegida (de quem, do que, para quem, são outras questões). Fecha parênteses.

A falta do cochilo não impedia a saída à noite, de qualquer forma. Acontece que depois do CCBB fomos à Galeria Olido, assistir à coreografia "Farmácia", e de lá subimos a rua Augusta. No meio do caminho, recebo nova mensagem da Misson, avisando que está, junto com outros amigos, no mesmo bar da semana passada. Esqueceu que na semana anterior havíamos parado em dois bares: vou para o segundo, já quase na Paulista, estão no primeiro, próximo à região dos inferninhos. Cansado, com a meia molhada desde às três da tarde, voltei pra casa e não me animei em sair, quando depois me ligaram, insistindo.

Isso não significou, contudo, que ela não tivesse me arranjado uma crônica! Apenas que ao invés de qualquer possível acontecimento ou desacontecimento da madrugada, sua própria mensagem me serviu de mote.

Porque notei o quanto estou desacreditado entre meus amigos, por mais que a sorte já tenha sorrido (e eu correspondido, detalhe importante) pra mim este ano – talvez eles sejam daquela teoria do raio que não cai no mesmo lugar duas vezes no mesmo ano. Pois na mensagem de Misson, apesar da sua boa vontade em me ajudar, não dava para fazer a leitura "vamos te arranjar uma guria, mas se não rolar, ao menos terá uma crônica". A frase vinha invertida: "vamos te arranjar uma crônica, quem sabe não consiga até uma guria". Ou seja, o fracasso era dado certo, como a crônica que dele derivaria – mais um sinal de que ando com fama de transformar tudo em texto. Só se algo realmente extraordinário acontecesse eu poderia me arranjar com uma nova Camila, a moreninha da balada – "alguém legal pra me abandonar", como na música do Lobão.

Acabei indo para a balada no dia seguinte, com os amigos de Ribeirão. Havia até uma atraente moça – essa perceptivelmente oriental –, com belas maçãs do rosto (ou bochechuda, como digo), que passei um bom tempo encarando, pra ver se a sorte não sorria para mim de novo. Mal me olhou. Ao menos o som era bom e deu pra dançar. Mas no fim, me restou a crônica, como sempre – e meia boca, ainda por cima. Admito: Ruth me é mais inspiradora.

São Paulo, 14 de junho de 2012.

domingo, 10 de junho de 2012

Impressões da Parada do Orgulho Gay (a primeira que fui)

Hoje era dia da Parada Gay de São Paulo – a décima sexta edição –, e precisando sair pra almoçar, com ela acontecendo a duas quadras de casa, achei que não tinha porque perder a oportunidade de conhecê-la. Minha primeira surpresa foi que imaginei que ela seria audível de casa, mas praticamente passou despercebida.

Peguei ela não bem no início, metade dos trios elétricos – pelo que li, eram catorze – já haviam dobrado a rua da Consolação. Mesmo assim me impressionou o mundaréu de gente. Numa das pistas passavam os trios elétricos (com muita gente atrás), na outra, a aglomeração era um pouco menor.

Conversando no dia anterior, um amigo era da opinião que a Parada Gay se transformara numa grande micareta. Outro achava que ela ainda guardava um tanto da sua veia de reivindicação, mesmo que mais fraca. Não sei dizer como era antigamente, porém não tenho como discordar do primeiro amigo: sim, a parada parece um grande carnaval fora de época. Tampouco posso discordar do segundo: pôr tudo aquilo de gente na rua não deixa de ser um ato de demonstração de força política, por mais que o tema do ano (“Homofobia tem cura”) possa não ser conhecido por boa parte dos manifestantes. E uma manifestação em tom mais alegre não deixa de ser mais interessante (no sentido de novas possibilidades) do que as tradicionais passeatas sisudas da esquerda “séria” – pode soar como um convite, um ensaio para um porvir desejado.

Decidi almoçar no outro extremo da av. Paulista. Conheci a parada, portanto, na contramão. Nessa ida, presenciei cenas mais ou menos dentro do que eu imaginava. Uma garotinha com seus quatro anos de idade, se muito, pulava alegre cheia de plumas e acessórios da parada, acompanhada de seus pais (um homem e uma mulher, pra deixar claro). Pouco adiante, uma criança mais ou menos da mesma idade se divertia com um balão feito de camisinha. Um carro de som passava defendendo a família – reivindicação que compreendo, mas discordo, e acho que dá força para a posição da igreja católica. Pessoas distribuíam panfletos de uma igreja evangélica “inclusiva” (tucanismo pra gay), mostrando que há mercado pra tudo no mundo da religião. Em um dos trios elétricos, de um site de encontros gay, acredito reconhecer um amigo. Um garoto dá as indicações de onde está: em frente ao metrô Trianon-não sei o que. Reparo que alguns homens – em geral sem camisa – ficavam parados, esperando de frente aqueles que vinham, na expectativa de beijar alguém. Havia momentos em que não dava para saber se a moça que eu cruzara era mulher ou travesti. Um cara com pinta de pit-boy – sem camisa – e achando que homossexualidade é sinônimo de promiscuidade, levantava as saias, passava a mão na bunda das garotas, quero ver se é mulher ou tem alguma coisa a mais (não entendi como não havia tomado um tapa, talvez pelo tamanho). Ao meu lado, certa hora, um grupo decidiu se confraternizar com socos e pontapés. Dois policiais, de longe, pediam pra pararem com a briga, esbanjando uma autoridade em nada maior do que minha. Os brigões foram apartados por outras pessoas, um pouco mais “pró-ativas” do que os PMs.

O mais interessante da parada, contudo, estava depois que passava a micareta. Eu ainda andava na contramão quando avistei um grupo de pessoas pedindo a Jesus que despachasse logo o green card pro inferno pros pecadores que estavam na quadra seguinte. A seguir berravam feito macacos bonobos (Jesus Jesus Jesus Jesus repetido alto e rapidamente dá uma sonoridade simiesca de uh uh uh). Achei curioso: se deus está em todo lugar, não precisavam ir até a Paulista para fazer esse pedido – a não ser que tivessem algum desejo outro, não admitido. E o pior: só choveu depois de terminada a parada; durante toda a tarde, um clima ameno, agradável: deus não parece estar muito atento ao que pedem os que se declaram seus fiéis.

Depois do almoço, com a parada já bem avançada, o choque maior. Parecia quase mesmo um carnaval, um desfile de escola de samba dividido em alas: os trios-elétricos, aí vinha uma massa de retardatários (até pela questão de impossibilidade espacial), uma quadra depois desses últimos, três depois de onde ainda havia multidão, um grupo de seguranças de terno e gravata seguravam uma corda. A seguir, um grande grupo de policiais mal-encarados, logo atrás, com a quadra quase toda para eles, os garis – estes mais animados com a festa, apesar de estarem lá a trabalho –, depois carros de varredura, caminhões pipa com garis lavando a avenida, e outra linha de policiais. Compreensível fazer a faxina logo a seguir: havia bastante lixo (normal para grandes aglomerações, só ver saída de show ou festa de faculdade), e não tinha mesmo como deixar para o dia seguinte. Porém, todo aquele aparato militar dava mostras de que a parada deveria seguir à revelia do ritmo dos participantes – me remeteu à lógica da exigência da sociedade contemporânea de estar sempre em movimento, examinada por Paul Virilio. Mais agressivo, entretanto, me pareceu a questão de lavar a rua com água: dava a impressão da necessidade de desinfetar a área. E não eram as regiões onde estavam os banheiros químicos, ou as calçadas, onde eventualmente alguém poderia ter utilizado como mictório, era a rua por onde no dia seguinte passariam pessoas protegidas por uma camada de borracha e outra de metal. Mas sabe como é, a “homossexualidade” é altamente transmissível, todo cuidado é pouco.

Por fim, comentários sobre o que vi e li na internet sobre a parada, no site do Uol. Primeiro, a ausência dos pré-candidatos à prefeitura da cidade, como o próprio portal apontou: de olho no eleitorado conservador, nenhum dos grandes deu as caras: apenas os candidatos do PPS (Soninha), PSOL (Carlos Giannazi) e do PRB (Celso Russomano), além de políticos ligados à causa GLS. Um desalento à aqueles que têm posições um pouco mais progressistas. O outro, as fotos. Em duas delas havia uma participante da parada com uma faixa de Miss Brasil. Na legenda "Participante fantasiada de Miss Brasil". Abuso de má-fé seria mais condizente com a legenda: faltava uma parte da faixa, em que dizia "Transex", "Miss Brasil Transex": uma personagem, portanto, de alguma importância numa parada gay, e que bastava uma pesquisa no Google para descobrir seu nome (Yasmin Pires). Ademais, havia várias fotos com moças (provavelmente travestis) com os peitos à mostra: ou cheguei tarde pra essa parte da festa, ou se tratava de uma minoria que ganhou destaque especial: vi várias travestis e drag queens por lá, nenhuma tão à vontade. Isso não seria problema – muito pelo contrário, ou talvez o problema fosse que as mulheres também não as acompanhassem –, não estivéssemos numa sociedade altamente preconceituosa – que exige paradas gays, por exemplo, na luta por direitos que por princípio seriam básicos de uma sociedade que já saiu da Idade Média –, em que é forte o estigma contra homossexuais, em especial travestis.

Daqui um mês vem a marcha pra Jesus. Se não mudaram o roteiro (parece que não), passarão longe da minha casa, graças a deus! Essa, a princípio, não faço questão de estar presente – nem mesmo como observador distanciado.


São Paulo, 10 de junho de 2012.