Hoje era dia da Parada Gay de São Paulo – a décima sexta edição
–, e precisando sair pra almoçar, com ela acontecendo a duas
quadras de casa, achei que não tinha porque perder a oportunidade de
conhecê-la. Minha primeira surpresa foi que imaginei que ela seria
audível de casa, mas praticamente passou despercebida.
Peguei ela não bem no início, metade dos trios elétricos – pelo
que li, eram catorze – já haviam dobrado a rua da Consolação.
Mesmo assim me impressionou o mundaréu de gente. Numa das pistas
passavam os trios elétricos (com muita gente atrás), na outra, a
aglomeração era um pouco menor.
Conversando no dia anterior, um amigo era da opinião que a Parada
Gay se transformara numa grande micareta. Outro achava que ela ainda
guardava um tanto da sua veia de reivindicação, mesmo que mais
fraca. Não sei dizer como era antigamente, porém não tenho como
discordar do primeiro amigo: sim, a parada parece um grande carnaval
fora de época. Tampouco posso discordar do segundo: pôr tudo aquilo
de gente na rua não deixa de ser um ato de demonstração de força
política, por mais que o tema do ano (“Homofobia tem cura”)
possa não ser conhecido por boa parte dos manifestantes. E uma
manifestação em tom mais alegre não deixa de ser mais interessante
(no sentido de novas possibilidades) do que as tradicionais passeatas
sisudas da esquerda “séria” – pode soar como um convite, um
ensaio para um porvir desejado.
Decidi almoçar no outro extremo da av. Paulista. Conheci a parada,
portanto, na contramão. Nessa ida, presenciei cenas mais ou menos dentro
do que eu imaginava. Uma garotinha com seus quatro anos de idade, se
muito, pulava alegre cheia de plumas e acessórios da parada,
acompanhada de seus pais (um homem e uma mulher, pra deixar claro).
Pouco adiante, uma criança mais ou menos da mesma idade se divertia
com um balão feito de camisinha. Um carro de som passava defendendo
a família – reivindicação que compreendo, mas discordo, e acho
que dá força para a posição da igreja católica. Pessoas
distribuíam panfletos de uma igreja evangélica “inclusiva”
(tucanismo pra gay), mostrando que há mercado pra tudo no mundo da
religião. Em um dos trios elétricos, de um site de encontros gay, acredito reconhecer um amigo. Um garoto dá as indicações de
onde está: em frente ao metrô Trianon-não sei o que.
Reparo que alguns homens – em geral sem camisa – ficavam parados,
esperando de frente aqueles que vinham, na expectativa de beijar
alguém. Havia momentos em que não dava para saber se a moça que eu
cruzara era mulher ou travesti. Um cara com pinta de pit-boy – sem
camisa – e achando que homossexualidade é sinônimo de
promiscuidade, levantava as saias, passava a mão na bunda das
garotas, quero ver se é mulher ou tem alguma coisa a mais
(não entendi como não havia tomado um tapa, talvez pelo tamanho).
Ao meu lado, certa hora, um grupo decidiu se confraternizar com socos
e pontapés. Dois policiais, de longe, pediam pra pararem com a briga,
esbanjando uma autoridade em nada maior do que minha. Os brigões foram apartados por outras pessoas, um pouco mais “pró-ativas” do que
os PMs.
O mais interessante da parada,
contudo, estava depois que passava a micareta. Eu ainda andava na
contramão quando avistei um grupo de pessoas pedindo a Jesus que
despachasse logo o green card
pro inferno pros pecadores que estavam na quadra seguinte. A seguir
berravam feito macacos bonobos (Jesus Jesus Jesus Jesus
repetido alto e rapidamente dá
uma sonoridade simiesca de uh uh uh).
Achei curioso: se deus está em todo lugar, não precisavam ir até a
Paulista para fazer esse pedido – a não ser que tivessem algum
desejo outro, não admitido. E o pior: só choveu depois de terminada
a parada; durante toda a tarde, um clima ameno, agradável: deus não
parece estar muito atento ao que pedem os que se declaram seus fiéis.
Depois do almoço, com a parada já bem avançada, o choque maior.
Parecia quase mesmo um carnaval, um desfile de escola de samba
dividido em alas: os trios-elétricos, aí vinha uma massa de
retardatários (até pela questão de impossibilidade espacial), uma
quadra depois desses últimos, três depois de onde ainda havia
multidão, um grupo de seguranças de terno e gravata seguravam uma
corda. A seguir, um grande grupo de policiais mal-encarados, logo atrás, com a quadra
quase toda para eles, os garis – estes mais animados com a festa, apesar
de estarem lá a trabalho –, depois carros de varredura, caminhões
pipa com garis lavando a avenida, e outra linha de policiais.
Compreensível fazer a faxina logo a seguir: havia bastante lixo
(normal para grandes aglomerações, só ver saída de show ou festa
de faculdade), e não tinha mesmo como deixar para o dia seguinte.
Porém, todo aquele aparato militar dava mostras de que a parada
deveria seguir à revelia do ritmo dos participantes – me remeteu à
lógica da exigência da sociedade contemporânea de estar sempre em
movimento, examinada por Paul Virilio. Mais agressivo, entretanto, me
pareceu a questão de lavar a rua com água: dava a impressão da
necessidade de desinfetar a área. E não eram as regiões onde
estavam os banheiros químicos, ou as calçadas, onde eventualmente
alguém poderia ter utilizado como mictório, era a rua por onde no
dia seguinte passariam pessoas protegidas por uma camada de borracha
e outra de metal. Mas sabe como é, a “homossexualidade” é
altamente transmissível, todo cuidado é pouco.
Por
fim, comentários sobre o que vi e li na internet sobre a parada,
no site do Uol. Primeiro, a ausência dos pré-candidatos à
prefeitura da cidade, como o próprio portal apontou: de olho no
eleitorado conservador, nenhum dos grandes deu as caras: apenas os
candidatos do PPS (Soninha), PSOL (Carlos
Giannazi) e do PRB (Celso Russomano), além de políticos ligados à
causa GLS. Um desalento à aqueles que têm posições um pouco mais
progressistas. O outro, as fotos. Em duas delas havia uma
participante da parada com uma faixa de Miss Brasil. Na legenda
"Participante fantasiada de Miss Brasil". Abuso de má-fé
seria mais condizente com a legenda: faltava uma parte da faixa, em
que dizia "Transex", "Miss Brasil Transex": uma
personagem, portanto, de alguma importância numa parada gay, e que
bastava uma pesquisa no Google para descobrir seu nome (Yasmin
Pires). Ademais, havia várias fotos com moças (provavelmente
travestis) com os peitos à mostra: ou cheguei tarde pra essa parte
da festa, ou se tratava de uma minoria que ganhou destaque especial:
vi várias travestis e drag queens por lá, nenhuma tão à vontade.
Isso não seria problema – muito pelo contrário, ou talvez o
problema fosse que as mulheres também não as acompanhassem –, não
estivéssemos numa sociedade altamente preconceituosa – que exige
paradas gays, por exemplo, na luta por direitos que por princípio
seriam básicos de uma sociedade que já saiu da Idade Média –, em
que é forte o estigma contra homossexuais, em especial travestis.
Daqui um mês vem a marcha pra Jesus. Se não mudaram o roteiro
(parece que não), passarão longe da minha casa, graças a deus!
Essa, a princípio, não faço questão de estar presente – nem
mesmo como observador distanciado.
São Paulo, 10 de junho de 2012.
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