quinta-feira, 20 de março de 2014

Gyorgy L. [retratos feitos de memórias]

Ele bem tentava ir contra sua classe. Criado em condomínio fechado, tendo estudado em boas escolas e universidades particulares, havia feito uma série de bicos para viver por conta própria e por fim se estabilizara num emprego do qual não gostava, não pagava bem, contudo o suficiente para pagar as contas e sem as cobranças de uma empresa mais comprometida com resultados. As intenções podiam até ser boas, mas o resultado deixava a desejar: com as costas quentes de poder pedir ajuda para a mãe (que o ajudava mesmo quando não pedia), apenas brincava de pobre e fingia se rebelar contra a condição social na qual crescera - algo típico em muitos alunos de ciências humanas durante a faculdade, que ele prorrogava para depois de formado. Como é comum nesses alunos, cobrava dos outros adesão a suas teses, tanto da vida teoricamente simples e sofrida - apesar de morar nos Jardins -, quanto da sua pretensa liberalidade nos costumes. Mas não fazia abertamente, como os alunos: sabia ser sutil e criticar normativamente sem parecê-lo, fazendo com que seus interlocutores se sentissem culpados do que faziam - ele e sua namorada eram experts nessa arte. E mais do que se manter nessa vida ilusória de proletário, insistia numa visão absurdamente idílica das classes pobres: aplicava aos desvalidos o mito do bom selvagem com tamanha ingenuidade que era de se perguntar se fizera mesmo faculdade de filosofia. Claro, os desvalidos são pessoas distantes, como sempre foram, fosse quando morava em condomínio, fosse quando estudava na faculdade - um benevolente ente abstrato que sofre as agruras do abstrato capitalismo perverso. Discutia política, os assuntos do momento, acreditava na revolução, falava em construir um mundo melhor - amanhã. Sempre amanhã. Porque quando a realidade se opunha ao seu mundo idealizado, à sua imagem de proletário sofredor, fugia como se não tivesse responsabilidade alguma: era o mundo que era mal, como poderia ser ele culpado de qualquer coisa? O mesmo valia para suas relações próximas: se o desagradavam, se afastava, como se nunca tivessem sido amigos, namorados, pessoas íntimas, o que fosse: com isso colecionava uma série de desafetos, causados por sua omissão e descomprometimento. Mesmo nesses casos ele seguia se vendo como a vítima.

São Paulo, 20 de março de 2014.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Joana C. [retratos feitos de memórias]

Nunca fomos amigos. Fomos colegas alguns anos - não sei precisar quantos. Lembro que por um período não simpatizava com ela, creio antes por brigas entre grupos - fundão contra frentão e vice-versa - do que algo pessoal. Não consigo lembrar quem era do frentão quem era do fundão - porque eu por vários anos fui do fundão, um fundão heterodoxo, que exigia silêncio e tiravas notas boas, mas fundão. Além das antipatias de grupos, achava ela uma guria sem graça fisicamente, mirradinha. Mudei minha opinião ao reencontrá-la, anos depois, quando já não morava em Pato Branco: tinha uns olhos, um olhar muito bonito. Um amigo se surpreendeu que eu nunca tivesse reparado - acho que se embelezou com a idade, foi isso, eis o que respondi. Até ontem, a última notícia que havia tido dela era uma matéria do jornal da cidade, que meus pais guardaram para que eu visse. Falava de Joana despontando como artista, escritora e agitadora cultural em Curitiba. Fiquei contente por ver alguém saído daquela cidadezinha de pequenez classe-média fugindo dos caminhos certos e seguros, tentando agitar uma cidade também classe-média, mas com mais gente. Anotei o blogue ou site que havia na reportagem, planejava visitá-lo e, quem sabe, chamá-la para participar da Casuística, a revista de artes antiartes e heterodoxias que eu agitava. Não entrei em blogue algum nem fiz qualquer convite. A revista acabou (há promessa de uma última edição, a de 2013), desvitalizada com a perda da co-editora e minha melhor amiga (também uma agitadora cultural), a Patrícia Misson, vítima de um ataque cardíaco, aos vinte e oito anos. Descobri ontem que, ainda que a Casuística retorne qualquer dia, não haverá convite algum para Joana: como Misson, ela morreu jovem, quando ainda dava seus primeiros passos (nem por isso pequenos e descartáveis) e ensaiava grandes realizações futuras: parada cardíaca aos trinta e um.

São Paulo, 19 de março de 2014.