Ele bem tentava ir contra sua
classe. Criado em condomínio fechado, tendo estudado em boas escolas
e universidades particulares, havia feito uma série de bicos para
viver por conta própria e por fim se estabilizara num emprego do
qual não gostava, não pagava bem, contudo o suficiente para pagar
as contas e sem as cobranças de uma empresa mais comprometida com
resultados. As intenções podiam até ser boas, mas o resultado
deixava a desejar: com as costas quentes de poder pedir ajuda para a
mãe (que o ajudava mesmo quando não pedia), apenas brincava de pobre e
fingia se rebelar contra a condição social na qual crescera - algo
típico em muitos alunos de ciências humanas durante a faculdade,
que ele prorrogava para depois de formado. Como é comum nesses
alunos, cobrava dos outros adesão a suas teses, tanto da vida
teoricamente simples e sofrida - apesar de morar nos Jardins -, quanto da sua pretensa liberalidade nos costumes.
Mas não fazia abertamente, como os alunos: sabia ser sutil e
criticar normativamente sem parecê-lo, fazendo com que seus
interlocutores se sentissem culpados do que faziam - ele e sua
namorada eram experts nessa arte. E mais do que se manter nessa vida
ilusória de proletário, insistia numa visão absurdamente idílica
das classes pobres: aplicava aos desvalidos o mito do bom selvagem
com tamanha ingenuidade que era de se perguntar se fizera mesmo
faculdade de filosofia. Claro, os desvalidos são pessoas distantes,
como sempre foram, fosse quando morava em condomínio, fosse quando
estudava na faculdade - um benevolente ente abstrato que sofre as
agruras do abstrato capitalismo perverso. Discutia política, os
assuntos do momento, acreditava na revolução, falava em construir
um mundo melhor - amanhã. Sempre amanhã. Porque quando a realidade
se opunha ao seu mundo idealizado, à sua imagem de proletário
sofredor, fugia como se não tivesse responsabilidade alguma: era o
mundo que era mal, como poderia ser ele culpado de qualquer coisa? O
mesmo valia para suas relações próximas: se o desagradavam, se
afastava, como se nunca tivessem sido amigos, namorados, pessoas íntimas, o que fosse:
com isso colecionava uma série de desafetos, causados por sua
omissão e descomprometimento. Mesmo nesses casos ele seguia se vendo como a
vítima.
São Paulo, 20 de março de 2014.
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