quinta-feira, 18 de junho de 2015

Cinco seguranças do Metrô de São Paulo

Pouco depois da esquina da Albuquerque Lins com a praça Marechal Deodoro, cinco seguranças do Metrô cercam um homem. Um deles o segura pela blusa, como se fosse para deixá-lo pendurado; parece um gesto de desenho animado, mas não tem graça nenhuma - não para mim. Pessoas assistem à cena - bem próximo, um homem grava com o celular. Penso que a câmera evitará excessos de excessos - porque há claramente um excesso na abordagem, que não é assim encarado por eles, conforme a tranqüilidade que deixam transparecer. É pouco depois das dez e meia da noite. Estranho a abordagem na rua. Vejo tênis celular cigarro e outras pequenas coisas no chão - imagino ser um pequeno delinqüente. Mais próximo, reparo que há apenas um par de tênis e o homem está descalço, apenas um celular, uma carteira de cigarro - são seu objetos pessoais. Ele segue esvaziando sua mochila, um segurança segurando, os outros ao redor. Ao passar por eles, ouço um dos cinco dizer: "se você tem bilhete, então tem que estar em algum lugar". "Eu tenho, deixa eu achar", gagueja o homem. Tenho vontade de intervir e perguntar o que está acontecendo para aquela cena deplorável. Desisto: não sei quais meus direitos de cidadão (a plena publicidade de direitos e deveres como condição necessária para a democracia ainda é piada de mau gosto nestes Tristes Trópicos), não sei quem são os seguranças e não tenho mais meu contato quente dentro da companhia, que poderia descobrir quem eram eles na manhã do dia seguinte. Em compensação, sei de seguranças que cospem em moradores de rua, de segurança que agride colega no vestiário com o profundo argumento do agredido ser um "esquerdinha de merda", de segurança que lamenta não poder descer borrachada indiscriminadamente, como antigamente - até por medo de perder o emprego ao ser pego por uma câmera de segurança -, e agora se restringe a rezar para que algum careca dê uma lição nos homossexuais que se beijam no Metrô. Sim, sei que não são todos assim, espero que sejam uma minoria - mas os cinco que vejo me fazem lembrar desses exemplos nefastos (até dois mil e treze eu tinha histórias quase que diariamente dos meandros do Metrô - chefes, funcionários, seguranças, usuários). Os cinco seguranças do Metrô de São Paulo que humilham o homem na Lins de Albuquerque aparentam ter a minha idade, se tanto. Seriam meus colegas, se tudo tivesse corrido bem em agosto de dois mil e treze - talvez um deles tenha entrado justo na vaga aberta pela minha desistência. São cinco adultos jovens - minha geração -, brancos - talvez, como eu e muitos dos meus amigos branquelos, nunca tenham tomado uma geral da polícia militar por estar andando na rua à noite -, são meros seguranças de Metrô - não são policiais militares, não são seguranças particulares armados, como os que ficam nas redondezas Praça Toronto; não são seguranças de igreja evangélica, de quem não se espera outra atitude (ainda que haja). Eles estão, se escutei a verdadeira razão da cena, humilhando uma pessoa porque ela passou a catraca sem pagar - como se um, dez ou mil passageiros a menos por dia fosse fazer qualquer diferença no orçamento da empresa, que arrecada majoritariamente com publicidade. Certo, é seu emprego, e podem achar que é o correto cumprir seu dever com total diligência: mas eu questiono sé é preciso mesmo esse pretenso rigor - tolerância zero - contra alguém que não pagou o passe, enquanto nos subterrâneos eletrificados da cidade há homens que abusam de mulheres, pessoas que cometem pequenos furtos (um passe não faz diferença ao Metrô de São Paulo, mas cinqüenta reais podem ser a quebra do orçamento do mês de um trabalhador precarizado), assaltos a mão armada (um padre foi baleado na linha azul na semana da parada gay), grupos intolerantes que agridem pessoas por serem diferentes (já que os seguranças não podem mais)? "Pretenso rigor" porque ali não há rigor, porque rigor significa intransigência, e os cinco seguranças do Metrô de São Paulo transigem, transgridem todas as suas atribuições ao humilhar uma pessoa, dez e meia da noite, na rua - seria medo das câmeras de segurança? E ao humilharem uma pessoa, pouco importa o motivo: do quase nada que sei dos meus direitos, sei que o artigo 1º inciso III da Constituição Federal de 1988 garante "a dignidade da pessoa humana", sem condicionantes. Em tempo, não sei se era preciso comentar: o humilhado tinha dois antecedentes criminais: era preto e pobre.


18 de junho de 2015

Não custa lembrar que o exemplo e a legitimidade vêm de cima.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

A transexual crucificada, os arautos do ódio e a disputa pela palavra cristã

Viviany Beleboni cutucou com vara curta os arautos do ódio - Viviany é a transexual que apareceu crucificada na décima nona parada GLBTS de São Paulo, no domingo, dia sete. A reação foi a esperada: “São pessoas que não tem respeito a ninguém; são pessoas que são preconceituosas, sim; são pessoas que são intolerantes, sim (...). Estou indignado aqui com o que aconteceu na Parada Gay de São Paulo. Estou indignado por terem pegado os símbolos da minha fé, que é a fé cristã, e exposto publicamente num ato de completa falta de respeito. Estou falando aqui de pessoas que acham que seu direito é maior do que o meu direito”, disse, em vídeo na internet, o pastor e deputado Marco Feliciano. Ele ainda pede a união dos arautos do ódio travestidos de pastores cristãos, sugere o boicote às empresas que patrocinam a Parada Gay - assim como um colega seu já havia pregado o boicote às marcas que tentam se associar a atos de amor e afeto entre pessoas -, e afirma que há um movimento de "cristofobia", e que deve ser combatido.
Os arautos do ódio não podem estar mais errados: o ato de Viviany foi de extremo reconhecimento de Cristo. Ninguém se põe em uma situação semelhante à de Cristo, humilhado na cruz, se não reconhece o poder dessa imagem, se não assume a profundidade da mensagem, se não compartilha dos princípios. Mesmo que não seja cristã - e tenho séria desconfiança de que seja -, Viviany assumiu que o cristianismo é importante, tem uma mensagem que não está sendo ouvida - muito menos seguida. Não há ali deboche nem provocação com os símbolos cristãos, Viviany encarna a si própria, e sua crucificação representa (e acusa) a violência que ela e as outras travestis e transexuais sofrem diariamente - muitas delas cristãs, tal qual Marco Feliciano se diz. Se Feliciano acha realmente um desrespeito o ato de Viviany, pode devolver na mesma moeda: se fantasiar de transex para desfilar na próxima Marcha pra Jesus. Por que ele não vai fazer isso? Porque seria reconhecer a importância dessa questão, desse discurso - e o que ele quer é a sua supressão total.
O que realmente perturba os arautos do ódio é que o grito-feito-imagem de Viviany desafia a palavra deles. Uma transexual crucificada é a afirmação de que a palavra de Cristo não se restringe ao que é dito por Malafaias, Felicianos, Hernandez (se é que Cristo em algum canto disse o que eles pregam): é um grito de intolerância e de despeito a toda palavra dogmática, a todos os que se pretendem donos da verdade. Um grito de não me calo diante de quem manda calar, de não baixo a cabeça diante de quem não me respeita, de não reconheço nesse seu Cristo o Cristo que é amor e morreu na cruz pela humanidade. Um grito de revolta contra as injustiças, como o de Cristo, na sua época, contra os romanos.
Nada mais ultrajante a um pastor que uma transexual - que ele recusaria como sujeito com direito à existência, se pudesse - dizer que a palavra dela tem tanto valor quanto a dele, que o direito dela é igual ao direito dele. Sim, Viviany-feita-à-imagem-e-semelhança-de-Cristo (como todos, conforme o princípio cristão) contesta a pretensa superioridade - civil, moral, intelectual, espiritual - que Feliciano e sua trupe se adjudicam, e essa igualdade soa como um desrespeito aos seus privilégios por serem brancos, cristãos, heterossexuais (sic).
Porém, melhor que um ateu falar é dar a palavra a um cristão que não pode ser posto em dúvida quanto à sua fé: “Na missão pastoral tenho conversado com vários LGBTs que estão pelas ruas da cidade, alguns doentes, feridos, abandonados. Muitos relatam histórias de violência, abusos, assédio, torturas e crueldades. Alguns contam como foram expulsos de igrejas e comunidades cristãs, rejeitados pelas famílias em nome da moral. Testemunhei lágrimas, feridas, sangue, fome. Impossível não reconhecer neles a presença do Senhor Crucificado” - eis o comentário do padre Julio Lancellotti sobre a polêmica da crucificação na Parada Gay.
O Cristo de Julio Lancellotti e Viviany Beleboni me representa!

12 de junho de 2015.
Verônica Bolina, outra vítima da intolerância dos cristofóbicos?
ps: sobre a "cristofobia", concordo que existe e acho que deve, sim, ser combatida: já é mais que a hora da Igreja Universal mandar sua milícia paramilitar lutar contra o Estado Islâmico, que já matou vários cristãos pelo simples fato de serem cristãos. Que levem seus líderes juntos - afinal, um verdadeiro líder deve estar à frente do seu exército.

ps2: ainda sobre "cristofobia", achei outra colocação do padre Julio Lancellotti: "A meu ver, sujeito a erro, Cristofobia é medo de amar os irmãos e irmãs, amar os inimigos como pediu Jesus Cristo, defender os pequenos, proscritos e evitados, amar os o que ninguém quer. Jesus caminhou no meio dos pobres e pecadores, os defendeu e nunca os condenou. Em Mt 25,31-46 Jesus identifica-se com os que sofrem. Amá-LO é ser semelhante a ele, o resto é fobia!"