sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Ciro Gomes, o político sem virtù

Ciro Gomes (atualmente PDT) tem dois grandes defeitos enquanto político: pode até acertar na leitura do contexto, mas é ruim de estratégia e, para quando dá sorte, é destemperado demais - não possui virtù, para usar o termo de Maquiavel (contrariamente a Lula, alguém de grande virtù). Já que falei do pensador político florentino, é capaz notar uma certa inteligência maquiavélica no político cearense: ele tentou, ao longo da sua vida pública, equilibrar três princípios gerais: inserção internacional, indústria nacional e melhoria das condições sociais (posta de cima para baixo), oscilando entre cada um deles conforme o espírito do tempo - um coronel esclarecido bem inserido nos princípios democráticos formais. Acusá-lo de mudar de lado conforme lhe parece mais vantajoso traz implícito uma exigência de pureza e coerência impossível de encontrar no mundo real, muito menos na política - o que faz deduzir que tais acusadores fechem os olhos para seu próprio campo ou partido. 
Acrescento um novo princípio político, emergido em 2018: o ressentimento. Plenamente compreensível sua raiva com o PT, que tirou-lhe o apoio do PSB - um lance eleitoral perfeito, só que péssimo para o momento do país [bit.ly/cG180808] -, diminuindo as chances de poder ser o candidato progressista mais bem votado - o golpe baixo das fake news via Whatsapp, por parte dos fascistas, indica que sua vitória seria tão ou mais difícil que a de Haddad, já que seria taxado de comparsa do PT, e se não fosse mamadeira de piroca alguma outra aberração inventaria, e não contaria com uma base orgânica como ainda possui o PT. Ao que tudo indica, com esse seu novo princípio ele cava sua cova e pode seguir Marta ex-Suplicy, Marina Silva e Cristóvão Buarque, e ir curtir a aposentadoria da política (ou, pior, imitar Gabeira, mas Ciro não aparenta estar demente).
Ciro Gomes parece acreditar que sua grande chance foi em 2018: não foi. Chance real ele teve em 2002, quando torpedeou sua própria campanha, ao soltar uma frase infeliz sobre seu casamento, oportunamente explorada pela mídia tucana - um segundo turno entre ele e Lula, certamente seria o candidato oficial do status quo. Porém, a grande chance teria sido em 2014: Dilma vinha cambaleante, 2013 ecoava genéricos pedidos mudanças, a campanha goebbelsiana do antipetismo ainda não criara raízes, o PSDB vinha sem toda a força possível, graças a Serra, que impediu Aécio de se tornar nacionalmente conhecido em 2010; Marina entrava pela centro-direita, com discurso de generalidades abstratas e disputando (de leve) o legado antipetista. Sem a crise ter pego o país, era o momento para um candidato de centro-esquerda despontar anunciando mudanças no que ia mal, sem negar todo o legado positivo dos doze anos de PT federal. Era o discurso que ele ensaiava havia tempos e teria ainda mais força se viesse de um recall de 2010. Não sei por conta de quais conchavos, Ciro se absteve de participar das eleições presidenciais mais favoráveis a si - um grande erro de estratégia, de timing.
Em 2018, com o antipetismo ganhando o papel de sintoma da fascistização da sociedade (ao estilo da aversão ao Front Populaire da França pré-Vichy, "prefiro uma dúzia de Hitlers a um Léon Brum omnipotente"), Ciro se viu hesitante em qual estratégia aderir, se a um pós-petismo ou um antipetismo de esquerda (até porque Boulos havia abandonado essa retórica típica (e adolescentóide) do PSOL). Passou a campanha em passo ébrio, e no segundo turno chafurdou na própria pequenez ao recusar engrossar as fileiras antifascistas - que implicava necessariamente em apoio a Haddad.
Os novos movimentos de Ciro apontam que ele acredita numa certa manutenção da democracia formal, ainda que tutelada, o que significa eleições em 2022; e que ele vislumbrou uma avenida aberta e desocupada na centro-direita. É a mesma avenida que os estrategistas do General Mourão enxergaram, e para a qual ele caminha, com discurso de defesa da democracia, de liberalização dos costumes, de cordialidade no trato com o adversário. O mesmo Mourão que três meses atrás falava em autogolpe, que índio era preguiçoso, que Ustra é um herói e que compunha chapa com Bolsonaro, que defendia metralhar a petralhada - não que seu novo discurso não seja válido (e louvável) diante da conjuntura atual (como era positiva a aproximação de Alckmin com a esquerda do partido, antes de descambar no antiesquerdismo tosco, durante a campanha): é um modelador de comportamento e influencia os "cidadões" do país, porém convém atentar aos discursos que ele não tem feito, sobre questões de ordem econômica, laboral, de desenvolvimento nacional, etc.
Tal vácuo surgiu da migração do PSDB para a extrema-direita, ao abandonar seus princípios liberais com Serra, em 2010, democráticos com Aécio, em 2014, e o pouco que restava de liberal e democrático com Doria Jr, em 2016 [bit.ly/cG160201], que passou a assumir explicitamente o antipetismo como bandeira quase exclusiva - um político sem escrúpulos, que navega conforme os ventos, mas que me parece desprovido também de virtù: depende exclusivamente da fortuna.
O ponto é por onde construir o discurso dessa nova direita. O antipetismo, além de não ser uma plataforma política, apenas eleitoral, já tem sua raia congestionada - e deve refluir, na medida em que o antipetismo mostrar todo seu fracasso na condução do país e a culpa à herança petista passar o prazo de validade. Amoêdo mostrou toda sua incompetência, ao chegar com o Novo fazendo coro ao velho - deve ainda crescer, no vácuo do discurso modernex-cosmopolita-entreguista que o PSDB abriu mão, mas para ganhar possível protagonismo, terá que se reinventar. Mourão é quem vai ganhando esse terreno, deixando retoricamente de lado menções a petismo, antipetismo ou pós-petismo.
Seria a chance - talvez última e precária - de Ciro, se conseguisse construir uma imagem de pós-petismo de centro-direita - visto que a esquerda está enfraquecida, por conta da campanha da mídia corporativa ao longo dessa década e meia. Disputaria, por ora, com General Mourão - e o fato de ser um civil seria ponto positivo entre os defensores do "bom senso". Fechar com Rodrigo Maia (DEM) e participar da mesa do Congresso parece estar inserido nessa leitura - legítima, se se negar o caráter fascista do presidente (o que também é mitigado pelo fato de suas milícias não terem vingado). Participar de debate da UNE seria uma forma de manter pontes com a esquerda desiludida com o PT - com ou sem motivos. Bater boca com militante, legitimando (e, implicitamente, comemorando) a prisão arbitrária de Lula e aderindo, assim, ao antipetismo mais raivoso, é passar a disputar votos com Bolsonaro e o PSDB Doriana - e aí, Ciro perde, como perde também parte da esquerda desiludida com o PT mas ciente do que está sendo feito com Lula (acho mais sincero falar que Lula é prisioneiro de guerra, assim como outras prisões kafkianas atuais: Milagro Sala, Jorge Mateluna, e mesmo Weng Mei, Michael Krovig, Carlos Ghosn - a questão se a guerra é contra o inimigo interno ou externo).
É ver se Ciro Gomes consegue se retratar e seguir na sua construção de político sério de centro-direita, democrático, com interlocução com a esquerda. Eu não apostaria, a tendência é que ele definhe, traído pela própria língua, e se enfurne na política cearense ou se aposente.

08 de fevereiro de 2019

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Uma aventura banal de almoçar na Liberdade num domingo


Para almoçar na Liberdade no domingo, faz-se mister alguns requisitos, além do elementar vil metal (não convém se fiar nas versões plásticas): estar com tempo, paciência, bem acompanhado e sem muita fome ao chegar (pois a fome estraga o humor, corrompe as boas companhias e retarda a passagem do tempo). Quer dizer, ou é isso, ou é um smartfone, que aí você esquece "naturalmente" do tempo, da fome, das companhias chatas (e das legais também) e, se não te cutucarem, esquece até que está num restaurante e pretende almoçar. Enfim, me filio à primeira tradição, e vou com um casal de amigos almoçar num conhecido restaurante chinês, espírito preparado para as aventuras que eventualmente nos aguardam - ainda que, decepcionante, hoje há um garçom e duas garçonetes que falam português nele, diminuindo potencialmente a aventura (como pedir para levar a sobra para viagem e ser servido de um novo prato, igual àquele que resta mais da metade na sua frente).

O casal de amigos queria ir à uma da tarde, bato o pé: ou onze e meia ou duas e meia. A contragosto, aceitam, e chegamos às duas e meia. Eu esperava quinze minutos de fila, eles imaginando entrar direto, cozinha prestes a fechar, e a realidade nos brinda com quarenta minutos para curtir o apetite. A fome aperta nessa espera, e ao vermos um casal que se levanta e sai, deixando o cardápio sobre a mesa, já nos antecipamos no que vamos pedir, para não termos o mesmo infortúnio de sequer conseguirmos fazer o pedido.
Sentamos à mesa e não tarda para uma garçonete se aproximar e perguntar se é dali que pediram frango com gengibre - negamos e ela sai com o prato para a frente do restaurante. Caçamos outra garçonete, ela praticamente atira o cardápio e se prepara para sair, sem nos dar tempo de fazer o pedido, quando é parada pela primeira atendente, carregando o tal frango com gengibre - que após breve conversa parte para o fundo do restaurante. Aproveitamos a deixa e não deixamos ela sair sem anotar nosso pedido. Não demora muito e chega uma garçonete perguntando se é ali frango e carne com legumes - nosso pedido é apenas frango (meu amigo é alérgico a carne bovina). Ela sai para a frente do restaurante, a moça com o frango com gengibre volta a passar, agora para o andar superior, a carne e frango com legumes passa também, em direção aos fundos do restaurante - e logo veremos novamente o frango com gengibre indo passear na frente do restaurante. Nosso pedido chega (o que faz com que nos distraiamos da saga do frango com gengibre), frango com legumes - simplesmente tiraram os pedaços grandes de carne do prato de carne e frango com legumes há cinco minutos trazido. Aviso que não faz sentido reclamar, até porque pode ser tarefa hercúlea que nos entendam; se for o caso, melhor ficar só com o segundo prato - tofu com camarão. Meu amigo olha desolado, eu comento: "avisei que aqui é com aventura", "mas quando viemos foi tudo certinho, trouxeram exatamente o que pedimos", "é que vocês deram azar, agora estão conhecendo o restaurante em toda sua plenitude". Ele opta por fazer uma seleção criteriosa do que por no prato, tentar aquilo que não estaria contaminado. Leva tempo nisso, bem mais que para tirarem as carnes, na cozinha, minha fome apertando enquanto ele analisa detalhadamente cada coisa que pega - é o momento em que o humor vai dar uma voltinha e só volta depois de comer um mínimo. O tofu demora, mas chega. E a última parte do pedido, o arroz branco, para acompanhar, nada. Pedimos a uma garçonete, "tá bom", ela diz e some. E logo passa por nós, e nada do arroz. Pedimos a outra. "Está faltando? Já trago". Mas não traz. Pedimos à garçonete brasileira, ela nos explica: "quando é assim, tem que pedir logo que trazem o prato, porque se não é capaz de esquecer". Agradecemos e esperamos pelo arroz... que não vem. Os pratos principais já estão pela metade quando pedimos a outra garçonete, e ela não tarda dois minutos para trazer três potes - havíamos pedido dois.
Se o arroz havia sido uma novela, pedir para embrulhar o que sobrou para viagem e pagar a conta foi tarefa ainda mais árdua. A terceira garçonete - uma das brasileiras - nos faz um gesto pedindo paciência de uma delicadeza que nos faz temer levar um soco. Na quarta garçonete a quem pedimos, ela sai do nosso campo de visão, para logo voltar, se dirigir ao armário que fica na nossa frente e pegar duas embalagens de isopor. Finalmente!, comemoramos, e ela então vai embrulhar a comida de outra mesa. "O restaurante está já pouco movimentado, não dá para justificar como com o arroz, que tinha movimento", meu ingênuo amigo tenta entender, eu explico: "eles tentam manter o padrão de qualidade, independente de muita ou pouca gente, ou então o restaurante perde mais uma boa parte do charme" (parte desse charme ele perder quando passou a se adequar às normas da vigilância sanitária, para evitar ser fechado de tempo em tempo). Ao cabo de vinte minutos e seis pedidos, nos fizeram o favor de embrulhar para viajem e nos dar a conta - estávamos libertos!

04 de fevereiro de 2019