segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Uma aventura banal de almoçar na Liberdade num domingo


Para almoçar na Liberdade no domingo, faz-se mister alguns requisitos, além do elementar vil metal (não convém se fiar nas versões plásticas): estar com tempo, paciência, bem acompanhado e sem muita fome ao chegar (pois a fome estraga o humor, corrompe as boas companhias e retarda a passagem do tempo). Quer dizer, ou é isso, ou é um smartfone, que aí você esquece "naturalmente" do tempo, da fome, das companhias chatas (e das legais também) e, se não te cutucarem, esquece até que está num restaurante e pretende almoçar. Enfim, me filio à primeira tradição, e vou com um casal de amigos almoçar num conhecido restaurante chinês, espírito preparado para as aventuras que eventualmente nos aguardam - ainda que, decepcionante, hoje há um garçom e duas garçonetes que falam português nele, diminuindo potencialmente a aventura (como pedir para levar a sobra para viagem e ser servido de um novo prato, igual àquele que resta mais da metade na sua frente).

O casal de amigos queria ir à uma da tarde, bato o pé: ou onze e meia ou duas e meia. A contragosto, aceitam, e chegamos às duas e meia. Eu esperava quinze minutos de fila, eles imaginando entrar direto, cozinha prestes a fechar, e a realidade nos brinda com quarenta minutos para curtir o apetite. A fome aperta nessa espera, e ao vermos um casal que se levanta e sai, deixando o cardápio sobre a mesa, já nos antecipamos no que vamos pedir, para não termos o mesmo infortúnio de sequer conseguirmos fazer o pedido.
Sentamos à mesa e não tarda para uma garçonete se aproximar e perguntar se é dali que pediram frango com gengibre - negamos e ela sai com o prato para a frente do restaurante. Caçamos outra garçonete, ela praticamente atira o cardápio e se prepara para sair, sem nos dar tempo de fazer o pedido, quando é parada pela primeira atendente, carregando o tal frango com gengibre - que após breve conversa parte para o fundo do restaurante. Aproveitamos a deixa e não deixamos ela sair sem anotar nosso pedido. Não demora muito e chega uma garçonete perguntando se é ali frango e carne com legumes - nosso pedido é apenas frango (meu amigo é alérgico a carne bovina). Ela sai para a frente do restaurante, a moça com o frango com gengibre volta a passar, agora para o andar superior, a carne e frango com legumes passa também, em direção aos fundos do restaurante - e logo veremos novamente o frango com gengibre indo passear na frente do restaurante. Nosso pedido chega (o que faz com que nos distraiamos da saga do frango com gengibre), frango com legumes - simplesmente tiraram os pedaços grandes de carne do prato de carne e frango com legumes há cinco minutos trazido. Aviso que não faz sentido reclamar, até porque pode ser tarefa hercúlea que nos entendam; se for o caso, melhor ficar só com o segundo prato - tofu com camarão. Meu amigo olha desolado, eu comento: "avisei que aqui é com aventura", "mas quando viemos foi tudo certinho, trouxeram exatamente o que pedimos", "é que vocês deram azar, agora estão conhecendo o restaurante em toda sua plenitude". Ele opta por fazer uma seleção criteriosa do que por no prato, tentar aquilo que não estaria contaminado. Leva tempo nisso, bem mais que para tirarem as carnes, na cozinha, minha fome apertando enquanto ele analisa detalhadamente cada coisa que pega - é o momento em que o humor vai dar uma voltinha e só volta depois de comer um mínimo. O tofu demora, mas chega. E a última parte do pedido, o arroz branco, para acompanhar, nada. Pedimos a uma garçonete, "tá bom", ela diz e some. E logo passa por nós, e nada do arroz. Pedimos a outra. "Está faltando? Já trago". Mas não traz. Pedimos à garçonete brasileira, ela nos explica: "quando é assim, tem que pedir logo que trazem o prato, porque se não é capaz de esquecer". Agradecemos e esperamos pelo arroz... que não vem. Os pratos principais já estão pela metade quando pedimos a outra garçonete, e ela não tarda dois minutos para trazer três potes - havíamos pedido dois.
Se o arroz havia sido uma novela, pedir para embrulhar o que sobrou para viagem e pagar a conta foi tarefa ainda mais árdua. A terceira garçonete - uma das brasileiras - nos faz um gesto pedindo paciência de uma delicadeza que nos faz temer levar um soco. Na quarta garçonete a quem pedimos, ela sai do nosso campo de visão, para logo voltar, se dirigir ao armário que fica na nossa frente e pegar duas embalagens de isopor. Finalmente!, comemoramos, e ela então vai embrulhar a comida de outra mesa. "O restaurante está já pouco movimentado, não dá para justificar como com o arroz, que tinha movimento", meu ingênuo amigo tenta entender, eu explico: "eles tentam manter o padrão de qualidade, independente de muita ou pouca gente, ou então o restaurante perde mais uma boa parte do charme" (parte desse charme ele perder quando passou a se adequar às normas da vigilância sanitária, para evitar ser fechado de tempo em tempo). Ao cabo de vinte minutos e seis pedidos, nos fizeram o favor de embrulhar para viajem e nos dar a conta - estávamos libertos!

04 de fevereiro de 2019



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