domingo, 31 de março de 2019

Diários do abismo: uma peça morna sobre um tema quente [Diálogos com o teatro]

Foi com certo incômodo que saí da peça Diários do Abismo, no Sesc 24 de maio. Não aquele incômodo de querer me pôr fora da caixa preta o quanto antes e olhar para o mundo, enxergar com os próprios olhos detalhes que até então deixara passar e o espetáculo me alertava da sua importância; incômodo por deixar o teatro e poder conversar sobre a peça ou sobre a desclassificação do Operário Ferroviário com a mesma despreocupação, a mesma naturalidade. Dado o tema do espetáculo, eu esperava ser tocado mais. 
Nestes tempos sombrios de retrocessos sociais em todas as áreas, inclusive na saúde pública e na saúde mental, com SUS tendo verbas cortadas, financiamento estatal a "comunidades terapêuticas" mui suspeitas em seus tratamentos de drogadictos e a recomendação, pelo ministério da saúde, da volta de eletrochoques como forma de tratamento, uma peça sobre a experiência da escritora Maura Lopes Cançado em hospitais psiquiátricos, na década de 1950, é mais que oportuna. Infelizmente, o monólogo protagonizado por Maria Padilha, em texto adaptado por Pedro Bricio e dirigido por Sergio Módena, passa ao largo de contribuir para o  aprofundamento do debate. 
Reconheço que estou numa posição difícil para comentar a adaptação de uma obra que não li - Hospício é Deus. Porém, tendo alguma noção do que eram hospitais psiquiátricos, e por várias falas da peça, é de se acreditar que um hospício não seja um spa com uma enfermeira chata e um médico sacana. Contudo, a leveza com que corre a peça, a platitude com que as cenas são narradas, faz o público se questionar se se trataria mesmo de um hospital psiquiátrico, com eletrochoques e o horror de seus pátios, ou apenas uma casa de retiro para madames um pouco alteradas. A narrativa do estupro quando criança, foi Maura quem sofreu ou ela teria lido numa nota de jornal e relatava então ao público? A alienação das cenas com relação ao tema poderia causar alguma "dissonância cognitiva" na plateia, um estranhamento, mas não havia tampouco abertura para tanto: a Maura Lopes Cançados de Maria Padilha parecia antes sob efeitos de antipsicóticos bem administrados, de modo a parecer "normal" e relatar suas angústias sem deveras vivê-las - e está tudo bem, o público não é incomodado em seu conforto.
Tudo na montagem é muito tranquilo, ou logo ganha serenidade. O colchão tirado da cama (que fica na vertical) revela as grades de uma prisão - a cena repetida cinco vezes revela falta do que dizer. O uso de recurso audiovisual, que poderia trazer outras camadas à narrativa, se utilizando dos colchões como telas para projeções, por exemplo (para dar algum sentido aos cinco colchões), é pobre e quase nada acrescenta. A atriz, se é feliz ao cambiar de personagem durante a narrativa, seguidamente deixa o público sem entender o que fala, por problema de dicção (e a peça era microfonada)! O figurino, na roupa de interna que cabia bem como uniforme dos profissionais de saúde, e a luz, bem recortada e com áreas de sombras, foram dois pontos felizes da montagem (por questão de gosto, incluiria o som, mas como sou fã de Radiohead e curto Murcof, talvez tenha sido muito influenciado pelos meus gostos). Não necessariamente uma peça, mesmo sobre um tema pesado, precisa ser pesada: há variadas formas de se atingir o público sobre um determinado problema, e o humor é prova cabal de que às vezes abordagens leves são efetivas. Diários do Abismo falha não por ser leve, mas por ser superficial - uma peça gostosa de assisitir e começar a semana relaxado.
Se o debate sobre os limites da loucura e do normal, do desejo de confinar o diferente é tema corrente na nossa sociedade cada vez mais doente e mais patologizada, nestes tempos de ascensão neofascista e desejo político de perfeita homogeneidade - e consequente anseio de excluir e/ou exterminar tudo o que fuja à norma ditada por um líder -, retomar experiências como a de Maura se torna urgente. As violência por ela sofrida não são coisa do passado, assim como não é do tempo de antanho seu anseio por liberdade. Peculiar é seu trajeto nessa busca, e pertinente o questionamento que nos provoca: a loucura dos ditos loucos, é das pessoas, ou da sociedade? As camisas de força no hospício, seriam tentativas de conter quem não aceitou entregar sua autonomia voluntariamente? Onde há maior liberdade, dentro ou fora do hospício?

31 de março de 2019

segunda-feira, 25 de março de 2019

Não que eu seja acumulador...

Não que eu seja acumulador - muito. Nem tenho como sê-lo, uma vez que moro em um apartamento pequeno, com dois gatos, onde não cabe quase (mais) nada além do que já tenho: quilos e quilos de papel (distribuídos em livros, fotocópias, programas de teatro e orquestra, recortes diversos, acrescidos de três caixas de livros iguais, no caso, os meus, ainda esperando por seus futuros compradores - tem promoção para combo!), uns materiais de pintura e desenho, equipamentos de marcenaria e iluminação, uns tocos de madeira do curso de marcenaria que ainda pretendo um dia usar, e outras coisas menores, como esteira para yoga, espada de tai chi e didgeridoo de pvc (para não falar nas caixas de papelão, utilizadas pelos gatos, que se multiplicam pelos parcos espaços livres da casa). Mas não sou acumulador!
E não sou mesmo. O grande ponto é que fui educado num clima de economia de guerra - fruto da infância de privações que forjaram meus pais - e numa casa com um enorme porão, apto para acolher e acumular todo tipo de cacarecos - desde minha coleção de pedras da infância (há muito expurgada) à minha coleção de latinhas da adolescência (ainda lá, em companhia de cadernos da pré-escola e enfeites de Natal da década de 1980 e 1990).
Nessa "educação para a economia de guerra" (claro, economia de guerra para a população que sofre com ela, não para os industriais e generais que enchem as burras com as desgraças do povo), adquiri um hábito, ou melhor, dois hábitos anticonsumistas: o primeiro, de não comprar por impulso - afinal, não se sabe o dia de amanhã e esse dinheiro pode fazer diferença -; o segundo, de não descartar o que pode ser reaproveitado por impulso - afinal, não se sabe o dia de amanhã e esse treco pode fazer diferença e não ter dinheiro ou não ter onde comprá-lo. 
Numa casa com porão enorme e quando se é criança, isso é ótimo! Construí diversas cidades com madeiras que sobraram da construção da casa, montei naves espaciais com latas e caixas, e até preparei um presépio de natal com homenzinhos (não sei como se chama hoje os "bonecos para meninos", porque boneca era para menina (assim como a She-Ra), ainda que eu tenha tido uma ou duas) e sucatas, tudo pintado com guache - que minha mãe impediu de pôr na sala e eu me revoltei, já que não teria visibilidade para minha arte. 
Quando se é adulto e num apartamento de 40 m² (mal distribuído, ainda por cima)...
Porque vontade de guardar sucata não me falta, ainda mais quando se tem um enteado com oito anos - por mais que ele, a princípio, seja dos eletrônico (apesar que as arminhas que fizemos com rolos de papel higiênico e a faca que fiz com madeira, usou até quebrar). Foi com dor que me desfiz de meu ventilador quebrado, quando Natália avisou que não permitira eu levá-lo para sua casa - eu já planejava uma super nave espacial. Mas o curioso desse hábito é que ele começa a se espalhar para além de sucatas. Nem eu percebo. É comentário de alguém que me faz ver que é... talvez eu esteja exagerando. Como aquele tubo de pasta de dente ou creme de barbear, que você nota que ainda tem um restículo, mas já cansou de espremer, ao invés de jogar fora, guardo para qualquer emergência - vai saber, vai que um dia termina a pasta de dente e eu fico sem. Como se eu não fosse classe média remediada e morasse a quatro quadras de um supermercado 24 horas... foi preciso meu irmão jogar sem dó no lixo para eu ver que podia ter feito. Ou, pior, dia desses ofereci castanha do Pará a um amigo, e ao comermos, perceptível que já havia passado. Pus de volta no armário, ao que ele me questionou: se está ruim, está guardando por que? A resposta estava na ponta da língua: vai que não precise alguma hora... só não fez sentido.
Uma coisa que jogo fora quando vence, isso sem dó, é remédio. Este fim de semana, invejando meu gato e seu omeprazol diário (meu estresse com seu quiproquó se faz sentir no meu estômago) fui atrás de um para mim. Achei uma caixa vazia, vencida em 2017. Resolvi ver se não teria mais remédios vencidos. Quase todos. Havia também um protetor labial, que há um bom tempo não lembro de usar. Fui ver se já não estaria vencido: agosto de 2002. Fiz as contas: no mínimo, esse protetor labial me acompanhou em cinco casas, três cidades! Isso se não levei ele de Pato Branco, na primeira mudança! É quase tão velha quanto algumas das roupas que ainda uso (a mais antiga que ainda me veste seguidamente é de 1995 ou 1996, não tenho certeza)! Bateu aquela nostalgia, lembrar tudo o que passei acompanhado desse protetor labial tão pouco usado e que eu nem lembrava que existia. Até pensei se não caberia a pergunta se não deveria guardá-lo - talvez doar para um museu, vender como protetor labial "vintage" ou "retrô" em algum site? Comentei do achado com Natália e com minha mãe. Talvez tenham combinado pelas minhas costas, mas deram a mesma resposta: joga fora!!!

25 de março de 2019