sábado, 27 de abril de 2019

Uma ópera que dialoga com o Brasil de 2019 [Diálogos com a ópera]

A escolha pode ter sido fortuita, não sei; se foi o caso, houve algo no inconsciente que certamente norteou a montagem da ópera La Clemenza di Tito, de Mozart, no Theatro São Pedro. 
Último remanescente dos teatros com nome de santo da capital (São Paulo, São José), ainda não foi consumido rapidamente pelo fogo, mas seguidamente está sob fogo estatal, que o queima lentamente (vide sua orquestra, pequena e jovem), sob permanente risco de corte drástico de verbas - quem sabe para transformá-lo em outra loja de cama-mesa-banho (como antigo espaço artístico no Brás), ou numa igreja evangélica, mesmo? -, fogo intensificado sob os atuais governos neofascistas e anti-intelectuais, anticultura (que não seja propaganda louvatória do poder e do líder).
La Clemenza di Tito a princípio é apenas uma ópera a falar de tempos remotos, composta para a coroação do rei Leopoldo II, da Boêmia. A montagem feita pelo Theatro São Pedro (direção musical do maestro Felix Krieger, e concepção, encenação e iluminação de Caetano Vilela), ao aproximar a Roma antiga do século XXI, busca certa sintonia dos elementos, mas também explora dissonâncias, coisas fora do lugar (ou do tempo), abrindo - principalmente no primeiro ato - uma possibilidade leitura política acerca do contexto brasileiro atual.
O cenário feito com andaimes sinaliza um império ainda em construção; há elementos de alguma imponência, brilhos e dourados, porém há algo roto, marcado do início até o fim no grande bloco de granito rachado que fica no centro do palco - sem que seja necessariamente decadência, ruína.
O grande ruído é o figurino. Na verdade foi tentando entender o porquê daquelas escolhas aparentemente infelizes que comecei a fazer a leitura política da ópera. Se o coro estava à romana, os soldados marcavam diversidade étnica, e também uma certa simplicidade no figurino, deixando de lado o realismo. Nos personagens principais, contudo, o ruído é evidente, incomoda, faz pensar. Vitellia com sua roupa vermelha e sua vasta cabeleira branca  parece rainha de cabaré. Sesto e Anio, gordinhos, barbudos, cabeludos, tererê no cabelo, algo meio hipponga, meio saído de Piratas do Caribe, meio saído da casa da mãe não faz muito. Tito com sua roupa cheia de dourado fajuto - se tem pose imperial, a roupa o desmerece.
Tito, quatro letras, como Lula. Um líder carismático, carinhoso, que evita grandes conflitos, preferindo sempre contemporizar e perdoar, deixar quieto (seja aceitando a recusa de Servillia ser esposa de Tito, seja como quando Veja publicou a fake news (então só notícia falsa) de que Lula teria contas na Suíça). Um líder talvez demais deslumbrando com um poder que mais reluzia do que deveras era - e a dificuldade em aprovar grandes mudanças estruturais, talvez mais que falta de vontade de Lula fosse falta de possibilidade, mesmo (como ficou evidente na facilidade com que se desfez, por exemplo, a vinculação de parte das receitas do pré-sal à educação). Pelo visto, nós que nos deslumbramos com o poder, Lula parecia ter mais noção de que o que reluzia ali era ouro de tolo.
Vitellia pode ser interpretada como a burguesia, sempre ávida pelo poder, ainda que não esteja apta para assumi-lo diretamente (por saber da sua incompetência; na ópera, por ser mulher). No fim, acaba por decidir por uma alternativa mais drástica e mais breve para tentar alcançar seu objetivo e acaba dando um tiro no próprio pé: Tito, ao aceitar a recusa de Servillia em casar com ele, escolhe Vitellia como segunda opção; mas nisso ela já havia ordenado Sesto matar Tito, o que significava que acabaria sem o trono.
Sesto é o estereótipo do povo que bate panela da laje de sua casa de bairro classe média. Maltrapilho que tenta imitar os brilhos do imperador, aceita matar Tito, a quem idolatra, para atender ao desejo de seu amor, Vitellia. Interpretado pela mezzo-soprano Luisa Francesconi, a voz muitas vezes mais fina que das mulheres dá um ar de impúbere ao rapaz - apesar das barbas -, e reforça a carência de autonomia. Ao fim do primeiro ato, se tudo indica que Vitellia perderá a chance de ser imperatriz, Sesto deverá ser condenado à morte.
O segundo ato encaminha a trama para um final feliz. Aqui a trama perde seus maiores contatos com o contexto brasileiro - ficando no plano do que poderia ser. É quando o cenário ganha mais ares de século XXI, com um tapume de metal pixado ao fundo - reforçando certo descompasso entre os elementos da montagem. Se na ópera a trama de Vitellia e Sesto acaba mal, mas Tito evita que qualquer um tenha final trágico, a vida real nos presenteia com um drama menos edulcorados: às mazelas do presente que boa parte da população suporta sequer há a justificativa de ser em nome de uma melhora no futuro - são apenas mazelas, como um ataque de gafanhotos, ainda que produzidas pelos donos do poder. A burguesia que fez festa com sua sagacidade desde 2014, se não está tão mal quanto povo, não tem o que comemorar. E Lula/Tito não aparenta ser mais o mesmo paz e amor de pouco tempo atrás - porém tampouco tem posição de poder na estrutura burocrática do estado para começar alguma mudança significativa desde de dentro. Sobra ao povo, Annios e Sestos, se mobilizar, buscar alguma brecha que permite respirar no presente e voltar a sonhar com algum futuro. Vivemos mais que uma crise econômica, e a ópera regida desde Brasília (ou seria Washington?), se se seguir nesse andamento, não terá final feliz para quem está no palco - e na plateia.

27 de abril de 2019

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Brasília: a distopia moderna envernizada

Conheci há dez dias Brasília. Conheci, vírgula: fui do aeroporto até o endereço em que tinha compromisso pela Pastoral dos Migrantes, na Asa Norte. Fiz o trajeto inverso no dia seguinte, e na noite que passei lá, reencontrei uma amiga e fomos comer um lanche em uma das quadras comerciais, ali perto de onde eu estava (a outra vez que eu estivera no Planalto Central, do aeroporto tomei logo o rumo da periferia de Luziânia, não vendo Plano Piloto, sequer do avião).
Ainda que meu interesse por arquitetura e urbanismo já tenha feito eu ler várias coisas sobre a capital federal (leituras feitas antes de me mudar para SP, quando eu ainda tinha Niemeyer em alta estima), vê-la de fato, em cores e cheiros, em dia ordinário, traz impressões que eu não imaginava.
Brasília parece uma tentativa de provar que a distopia moderna/modernista é possível ser bonita, quase simpática. Os blocos de gabarito igual em meio às árvores dão um ar entre resquícios soviéticos e balneário classe média (na volta, no carro rumo ao aeroporto, perguntei ao Emanoel, alemão que também trabalha no leste europeu, se os prédios não lembravam os de lá; ele assentiu, mas ressaltou que aqui havia detalhes que quebravam com a mesmice vista na arquitetura soviética). Isso, claro, até edifícios espelhados - simulacros de Fosters sem ousadia - darem um ar de não-lugar tipicamente capitalista - minimizado pelo fato de tais edifícios se tornarem enormes outdoors de marcas nacionais. Se eu fosse do tipo que gosta de vingança, diria que tais edifícios são a vingança (ainda que leve) aos monstrengos urbanísticos de Niemeyer, enfiados no centro de São Paulo, o Copan e o Memorial da América Latina - com a diferença que São Paulo é toda ela um monstrengo, de onde o Copan se inserir tão bem na paisagem. 
Contudo, diferentemente das fotos que vejo do leste europeu, ao invés de ruas que proporcionam encontros e contatos, uma highway de sete pistas que faz lembrar cidades de fins de mundo que se desenvolvem à beira da rodovia - sem que esta sirva de divisória, de muro não declarado, entre a parte mais pobre e a cidade dos “cidadãos de bem” -, vastas áreas livres, verdes, sem ninguém a passear nem motivo para fazê-lo. E foi isso o que mais me chamou a atenção nessa alucinação/materialização distópica que é Brasília: às nove horas da manhã de uma quarta-feira, nos vinte quilômetros que percorri, se tivesse me proposto a contar quantas pessoas eu avistei na rua, conseguiria tranquilamente - a única dificuldade seria contar um grupo de jovens que jogava basquete numa quadra um pouco distante, creio que eram uns oito. Não que Brasília estivesse deserta, pelo contrario, estava muito movimentada... de carros. De bolhas metálicas, provavelmente cada uma carregando uma pessoa, quando muito duas. Uma cidade povoada mas sem gente, sem vida visível - apenas concreto, aço, asfalto e fumaça de óleo diesel. Poderia estar nos esboços sonhados por Marinetti, ou até por Mishima.
Debord, em 1968, dizia que o sistema capitalista, ao ver o perigo que os ares da cidade que põe diferentes pessoas em contato, tratou a desenvolver tecnologias de isolamento - o carro, a televisão, o urbanismo, atualmente a internet, ápice da eficiência em isolar dando a aparência de integração. Brasília não é apenas uma cidade anti-manifestação, como eu lia, com seus amplos espaços livres da esplanada dos ministérios capazes de tornar insignificantes multidões que não se conte com seis dígitos: é uma cidade onde os pontos de encontro foram determinados “na planta”. Assim como seu plano urbanístico e seus edifícios foram planejados, partindo do pressuposto de que o bioma ali existia antes era terra arrasada - tão ao gosto da modernidade -, o planejador não deixou de fora desse espaço abstrato tornado cidade-não-lugar os pontos de encontro pensados, autorizados, onde as pessoas se encontrarão de forma fortuita, em conversas rápidas de "oi, tudo bem", que eventualmente se desenrolam em inesperados lampejos sobre a situação de cada um, do mundo: tudo ali tem em vista o controle - no que se podia controlar com a tecnologia dos anos 1950, 60. O poder teme o povo: por isso a necessidade de isolá-lo, delimitar seus pontos de encontro, os assuntos autorizados, por isso estimular o desencontro, os pequenos narcisismos entre vizinhos.
Ainda assim, Brasília foi insuficiente para os anseios do poder neofascista. Mostra disso é o quanto temem os encastelados no executivo, com Sérgio Moro decretando estado de sítio por temer os índios reunidos no Acampamento Terra Livre, entre 23 e 26 de abril. Sem milícias - virtuais ou reais -, sem armas de uso exclusivo do exército, sem proteção do Estado ou da grande mídia, uma reunião, um encontro, um protesto fez Brasília em seu projeto antipovo e antidemocrático se sentir insegura.

25 de abril de 2019