domingo, 9 de novembro de 2014

De utopias e memórias

Ao fim da fala da atriz que incorpora Heleny Guariba, morta pela ditadura civil-militar brasileira, o diretor convida os espectadores para um vinho fora da caixa preta do Espaço Sobrevento, no Belenzinho, zona leste de São Paulo. É a Cantata para um bastidor de utopias, adaptação da peça Mariana Pineda, de Federico Garcia Lorca, feita pela Cia do Tijolo, sob direção de Rogério Tarifa e Rodrigo Mercadante.
O intervalo é apenas uma meia pausa na ficção da peça que mistura a obra de Lorca, a guerra civil espanhola e a ditadura civil-militar brasileira: Federico Garcia Lorca seguirá incorporado por um dos atores, mas a atenção principal estará em alguma pessoa comum sentada à mesa - um qualquer como qualquer um ali, não fosse sua história. De peito aberto e cara à tapa, essa pessoa relatará um pouco da sua vivência nos porões da civilização brasileira - sempre fora da vista, mas não distantes o bastante para que não sejam ouvidos os gritos na Casa Grande -, o inferno de quem desafiou a ditadura - ou nem isso, apenas era amigo de quem contestava a "ordem". Um relato que não contará novidades ou detalhes desconhecidos: sua principal virtude, talvez, será a de deixar explícito que quem sofreu a violência do Estado não é alguma figura etérea de fotos em preto e branco dos livros de história ou que aparece na televisão percorrendo os corredores do poder - pelo governo e pela oposição -, que quem sofreu essa violência diretamente no corpo é alguém de carne e osso, uma pessoa comum, como os que assistem ao espetáculo. A quem resta algo de humanidade, se verá impelido a alguma reflexão - infelizmente não são todos que ainda possuem esse mínimo de sensibilidade para enxergar no Outro sua própria imagem.
As pessoas se levantam e seguem o breve cortejo até a entrada do espaço, ainda sem saber que o intervalo será tão ou mais pesado que a peça. Ao meu lado, um casal de idosos - setenta anos, talvez mais - se demora. Tardam a se levantar, e uma vez em pé se abraçam enquanto se esforçam para interromper as lágrimas que verteram abundantes durante a fala da atriz. Não sei quem são, não darão seu depoimento no intervalo, ao qual assistirão anônimos como os demais espectadores - mas as lágrimas me fazem imaginar que vejo ali sobreviventes que se não sofreram no corpo, sofreram na alma com as torturas dos militares. 
A quem acredita que a ditadura civil-militar é assunto encerrado, falta matar os sobreviventes e aqueles que ouviram suas histórias.

São Paulo, 09 de novembro de 2014.

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