O fim da contagem dos votos não
encerrou o clima de saudável debate de alto nível que tomou o país,
em especial as redes sociais. Uma amiga tratou logo de divulgar uma
imagem dizendo que havia votado em Dilma por ela ser mulher (em
letras pequenas complementava: por ter defendido os direitos destas).
Fiquei com vontade de perguntar: e se o segundo turno tivesse sido
entre Marina Silva e Eduardo Jorge, teria votado na Marina por ser
mulher? Não o fiz, tentei não perder amigos por causa da eleições.
E agora me centro no lamento dos derrotados - ao perdedor, as
cebolas.
Discordo que as pessoas que
saíram anunciando "luto pelo Brasil" não saibam perder -
ao menos não por essa frase. Tivesse ganho o PSDB e muitos eleitores
petistas estariam também em luto, por ver seu projeto de país
interrompido. Enlutar por ver um projeto que julgava o melhor ser
preterido me parece normal e dentro da normalidade democrática. O
que não não está dentro dessa normalidade são os discursos que
estão indo além - muito além - desse luto.
As diversas manifestações de
preconceito contra nordestinos me parecem a face mais sombria destas
eleições. A canção da banda Ira!, "Pobre paulista", que
parecia ser peça do museu de horrores tupiniquim, talvez nunca tenha
soado mais atual: "não quero ver mais essa gente feia/ não
quero ver mais os ignorantes/ eu quero ver gente a minha terra/ eu
quero ver gente do meu sangue" (sobre isso, recomendo o texto
"Neofascismo à paulista", na página 24 e 25 da edição
12 da Casuística [www.casuistica.net]): a idéia lançada por
formadores de opinião (sic) da Grande Imprensa (sic) corporativa, de
separação do Brasil pró-Aécio do país pró-Dilma, mostra
desrespeito com a democracia, com os dados e com
nortistas-nordestinos (mas também com
sudestinos-sulistas-centro-oestistas): contrariamente ao mapa a la
delegados estadunidenses, a vitória da petista só ocorreu por conta
dos votos que ganhou no país todo - e a maioria tucana no
sul-sudeste não implica em unanimidade, bem longe disso.
Veja apontou Aécio Neves como
grande ganhador do pleito deste ano. Informação correta, se da
análise forem excluídos Dilma Rousseff e o PT. De qualquer forma, o
mineiro sai fortalecido dentro do partido, o partido e ele é que
saem enfraquecidos de um dos seus principais discursos: o de ser o
partido da união, em contraposição ao partido que dividiu o país.
Se assumir o discurso do ex-professor da Sourbonne, o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso, primeiro a levantar a vitória petista no
grotões do nordeste como conseqüência da ignorância do povo
local, comprado num esquema neocoronelista pelo bolsa-família -
levado ao paroxismo por seus apoiadores, principalmente da Veja -, o
PSDB se tornará partido de força regional em no máximo duas
eleições nacionais - rota que só não inaugurou em 2014 por conta
do acidente que vitimou os planos de poder de Eduardo Campos e do
PSB.
Curiosidade da análise de FHC:
ao falar sobre a ignorância, ele ignorou que os governos petistas
ampliaram o acesso à educação, inclusive à superior, e acabaram
com a principal causa do voto de cabresto: a fome (ao fim desta
crônica, oporei ao doutor tão sabido outro grande intelectual
brasileiro). Pior: se bolsa-família é tão pernicioso assim à
democracia, por que o candidato do seu partido defendia
institucionalizá-lo como política de Estado? A ignorância
fernandista sobre Aécio é a mesma de boa parte dos seus eleitores,
que defendiam o voto no PSDB para acabar com as "bolsas-esmolas"
petistas. Ou contra a corrupção, como se fosse problema de um
partido e não de um sistema - inclusive deixado impune durante os
oito anos de tucanato. Bem dizem: a ignorância é uma benção -
principalmente àqueles que dirigem uma massa que se presume
ilustrada!
Não que votar no PSDB fosse
indefensável, razões razoáveis haviam. Uma política à direita,
por exemplo - de que com o crescimento do bolo os mais pobres
ganhariam mais migalhas. Ou a institucionalização da bolsa-família
- proposta de Michel Candessus e Enrique Iglesias, do Bird e FMI, em
meados da década de 1990. Outro ponto defensável, que vi no
Facebook de um empresário, era a maior confiança dos agentes
econômicos em Aécio. Verdade, porém pela metade: a confiança
maior em Aécio se dá antes por predileção dos donos da grana e
não o contrário, como sói a quem se informa com a Grande Imprensa
(sic). Também no facebook, uma ex-amiga virtual (me excluiu durante
as eleições - quase chorei), dezoito anos, se perguntava como iria
arranjar um emprego com a crise econômica em curso - usava Veja como
fonte. Poderia ser uma preocupação justa, se não fosse equivocada:
tendo estudado em escolas particulares e fazendo cursinho, sua
preocupação atual deveria ser antes a de entrar em uma universidade
e conseguir levá-la até o fim - coisa que, por caminhos em muitos
pontos criticáveis, o governo petista dá boas perspectivas. Por
fim, nascida no Japão, deveria olhar para o país natal e ver que,
apesar de um quarto de século de estagnação, segue em situação
de pleno emprego e boa qualidade de vida - o índice de desigualdade
social que não vai tão bem. A economia crescer é imprescindível...
para a economia crescer. Para as pessoas, essas que não são agente
econômicos plenos, que lidam com dinheiro e não com capital, e
precisam fazer contas para salário e mês fecharem juntos, para
essas, emprego, renda e qualidade de vida são mais importantes - e
há muitos que, ao observar o Japão, questionam a necessidade do
crescimento econômico pelo crescimento econômico.
E para ajudar a entender a
ignorância do nordeste, nestes tempos de seca em São Paulo, um
autor que não cita Marx, nem Weber, nem foi professor com uma teoria
cheia de palavras difíceis:
"Seu dotô, só me parece
Que o sinhô não me conhece,
Nunca sôbe quem sou eu,
Nunca viu minha paioça,
Minha mué, minha roça,
E os fio que Deus me deu.
Se não sabe, escute agora,
Que eu von contá minha histora,
Tenha a bondade de uví:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasí.
Sou aquele que conhece
As privação que padece
O mais pobre camponês;
Tenho passado na vida
De cinco mês em seguida
Sem comê carne uma vez.
Sou o que durante a semana,
Cumprindo a sina tirana,
Na grande labutação,
Pra sustentá a famia
Só tem dereito a dois dia,
O resto é para o patrão.
Sou o que no tempo da guerra
Cronta o gosto se desterra
Para nunca mais vortá,
E vai morrê no estrangêro
Cumo pobre brasilêro,
Longe do torrão natá.
Sou o sertanejo que cansa
De votá, com esperança
Do Brasí fica mió;
Mas o Brasí continua
Na cantiga da perua:
Que é: - pió, pió, pió...
Sou o mendigo sem sossego,
Que por não achá emprego
Se vê forçado a seguí
Sem dereção e sem norte,
Envergonhado da sorte,
De porta em porta a pedí.
Sou aquele desgraçado,
Que nos ano atravessado,
Vai batê no Maranhão,
Sujeito a todo o matrato,
Bicho de pé, carrapato,
E os ataque de sezão.
Senhô dotô, não se enfade,
Vá guardando esta verdade
Na memora, e pode crê
Que eu sou aquele operário
Que ganha um pobre saláro
Que não dá para comê.
Sou ele todo, em carne e osso,
Muntas vêz não tenho armôço
Nem tombém o que jantá;
Eu sou aquele rocêro,
Sem camisa e sem dinhero,
Cantado por Juvená.
Sim, por Juvená Galeno,
O poeta, aquele geno,
O maió dos trovadô,
Aquele coração nobre
Que a minha vida de pobre
Munto sentido cantou.
Há mais de cem ano eu vivo
Nesta vida de cativo
E a potreção não chegou;
Sofro munto e corro estreito,
Inda tou no mêrmo jeito
Que Juvená me deixou.
Sofrendo a mesma sentença,
Tou quage perdendo a crença,
E pra ninguém se enganá
Vou deixá meu nome aqui:
Eu sou fio do Brasí,
E o meu nome é Ceará!"
"Seu dotô me conhece?",
de Antônio Gonçalves da Silva, poderia mas não foi escrito ao
doutor Fernando Henrique Cardoso. É anterior ao PT, e ao PSDB também
- mas desconfio ter tido mudanças significativas no quadro cantado
apenas na última década. A quem não conhece, está no livro
Inspiração nordestina,
assinado com o nome artístico de Patativa do Assaré.
São Paulo,
01 de novembro de 2014.
Sem comentários:
Enviar um comentário