terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Campinas asséptica

Programa de terceira idade me fez voltar a Campinas, esta terça: médico. A tradicional visita mensal ao Aílton, meu homeopata.

Campinas me lembra o título de um filme hispânico, que assisti numa aula de espanhol, há uma década e meia, e não lembro absolutamente de nada, além do título: El aliento del diablo, O sopro do diabo. São Paulo andava quente, mas Campinas consegue juntar ao calor qualquer sensação térmica de fim de mundo. Passei o dia me arrastando pela cidade, com o bafo seco dos infernos soprando de todos os lados.

Ao meio-dia, encontrei com alguns amigos – fiquei devendo visita a outros – para almoçar e conversar um pouco – a consulta era às cinco. Havia também marcado de encontrar outro amigo, o Thyago, no centro, mas lh'escrevera a data errada (amanhã, numa mensagem com data do dia 28) e ele se programara para quarta: para a terça estava atolado de coisas para fazer – não que isso fosse novidade –, e deixamos nosso famigerado café para uma próxima oportunidade – já há uns dois anos seguidamente combinamos de combinar um café para pôr o papo em dia. Quem sabe em São Paulo, agora que ele passou no mestrado na ECA-USP?

Barão Geraldo é tão Terra do Nunca que até quando há um assalto banal merece efeitos especiais: minha amiga contou que, pela manhã, se atrasara para o trabalho porque tivera que tomar uma rota alternativa, já que no caminho havia um helicóptero da polícia parado no meio da rua.

Cheguei no centro de Campinas bem antes do horário marcado e dei uma passada na farmácia onde Ruth trabalha, já certo de que não estava – acertei. Fui até uma lanchonete, comer algo. No caminho, do outro lado da rua, numa loja de cópias e gráfica, um senhor de idade, cabelo todo branco, ele mesmo muito branco, em roupas claras, traçava uma linha para moça do balcão. Sua figura, o gesto lento, misturado ao calor da tarde deu à cena um ar de imobilidade móvil, ou mobilidade imóvel – não sei –, até ele levantar a prancheta, mostrar à moça seus rabiscos, e quebrar um pouco a leseira do instante.

Depois da consulta, tinha algumas horas para enrolar – descobrira que a linha que utilizo para fazer o trajeto Campinas-Ponta Grossa-Pato Branco não circula às terças. Parte passei numa lan-house, nesse grande ralo de tempo, esse buraco-negro espaço-temporal, que é a internet.

Clima mais ameno, saí para dar uma volta pela cidade. Não andei muito, diferentemente do que faço na capital – até por conta do peso da mochila e de trazer nela meu computador. Nas ruas, carros passavam, as pessoas se concentravam nas mesas dos barzinhos, nas calçadas. Na praça do Centro de Convivência Cultural, já no Cambuí, pessoas fazendo caminhada ou correndo, crianças brincando, pessoas com seus totózinhos, velhos passeando, casais namorando, grupos de jovens conversando. Quase lembraria a Av. Paulista confinada a uma pequena praça circular, não fosse um detalhe: não havia um mendigo, um pedinte.
Ainda me sobrando tempo, fui até a farmácia de Ruth uma vez mais, ver se ela não tinha trocado de turno – não tinha, mas a próxima consulta do Aílton marquei para a manhã, a ver se não a encontrarei. No trajeto, a mesma cena: pessoas nos bares; circulando, quase só carros, e nenhum pedinte ou morador de rua. Estes, seu eu quisesse vê-los, precisaria ir aonde estão: se não estão confinados, como as prostitutas, em um bairro, claramente estão impedidos de andar pela área nobre da cidade – não que São Paulo não gostaria, não tente pôr em prática o mesmo, só não consegue.

Cheguei à rodoviária com tempo de sobra – inclusive para começar esta crônica. Rodoviária higienizada de pessoas indesejadas no entorno próximo. Dentro, asseada, iluminada, "protegida" por câmeras de segurança, onde nunca ninguém me pediu um real para completar a passagem, nem há catadores de latinhas.

No ônibus, enquanto me afasto de Campinas, sinto que um leve olor putrefato fica para trás.


Campinas, 28 de fevereiro de 2012.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Meia ópera e um teco de São Paulo

Apenas havia visto, no sábado, que haveria ópera do Villa-Lobos, no Teatro Municipal, esta quinta, nas comemorações dos noventa anos da semana de arte moderna de 1922, e resolvi comprar o ingresso. Vi o título – Magdalena –, não a conhecia, não fui atrás de me informar. Comprei o ingresso mais barato – porque as contas na capital andam ariscas –, e me dispus a aproveitar São Paulo naquilo que não tinha em Campinas.

Talvez eu devesse ter assistido à ópera sem ter lido antes a apresentação. Ou talvez devesse ter lido sobre a ópera antes de ter comprado o ingresso – e deixado para conhecer o Municipal em outra oportunidade: Magdalena é uma ópera-musical, ou musical-opéra, feito especialmente para a Broadway, em 1947.

No intervalo, já não sendo grande fã de ópera – dia desses ouvi Iris, de Mascagni, e essa eu gostei!, ao menos de ouvir –, cansado daquele pot-pourri (ou remix, se for usar um jargão mais modernex) de Villa-Lobos feito por ele próprio, com um libreto muito fraco, e com coreografias até que bacaninhas, mas bem no estilo musical, decidi ir embora - ouvir Vivaldi ou Dirié, que ganhava mais. Em casa, mais tarde, li o resumo da ópera, e vi que o chavão que se desenhava era de fato o que aconteceria.

Era pouco mais de nove da noite. Cheguei ao Anhangabaú e resolvi ir até a República, para não ter que fazer baldeação. No meio do caminho, decidi dar uns giros por aquela região central de São Paulo, desta feita sem a companhia do Cássio, como sói acontecer. Decisão não digo sábia, mas a única a ser tomada, uma vez que me perdi e não achei – senão bem mais tarde – a praça da República:: São Paulo não é uma cidade racional.

Nas calçadas, sacos de lixo e pessoas se amontoavam – dali a pouco devia ser hora do lixeiro passar. Achei curioso, talvez pelo guarda-chuva pendurado no ombro, não sei, ninguém me ter me abordado para pedir dinheiro – quando caminho com o Cássio, mais ou menos na mesma hora, invariavelmente alguém nos pára, mesmo que tenhamos dado uma volta rápida. Passo por prédios ocupados pela FLM (Frente de Luta por Moradia). Passo por prédios desocupados, e que mereciam um fim mais nobre: não apenas serem ocupados, mas serem de fato resididos – por pessoas como as que militam no FLM, por exemplo, cujo interesse vai ao encontro do da cidade. Do outro lado da Av. São João, um grande grupo de moradores de rua: auto-proteção? pedra? sopa?

Reparo que se seguisse em frente, a avenida ermava, resolvo dobrar uma rua um pouco mais movimentada. Passo por um restaurante aparentemente chique – ao menos guardava um ar portenho –, e logo me deparo com o Largo do Arouche, ao menos com a placa – porque depois, vendo no mapa, noto que mal tangeciei o famigerado Largo. Me vêm à mente a música do Criolo, "Freguês da meia-noite": Em pleno Largo do Arouche, em frente ao Mercado das Flores, Há um restaurante francês. Não sei por quais quebradas me meto e logo estou frente a frente com o Elevado Costa e Silva – o Minhocão. Me sobe aquele medo na espinha, fodeu – talvez o nome daquele monstro citadino seja uma justa homenagem ao assassino que governou o Brasil de 1967 a 1969, deveriam fazer outras do gênero. Por qualquer mania que tenho, decido não voltar pelo mesmo caminho; viro à esquerda, e na segunda rua, vendo que há um grande número de transeuntes, entro nela, na esperança de dar com algum lugar conhecido. Pessoas malham numa academia, carros passam, travestis caminham para seus pontos. Dois mendigos conversam, sentados na sarjeta: quem tem medo de cagar não come. Olho para trás, tenho vontade de voltar e cumprimentá-lo pela frase, quem sabe até lhe dar um dinheiro – quanto custa um livro de auto-ajuda? Não o faço e me arrependo depois: quem tem medo de cagar não come, posso ter perdido alguma outra pérola do homem. Que não tivesse outra, essa valeu a noite. Depois de errar outra entrada, ao invés de entrar na Consolação, acabo na República. Só dali chego à Av. da Consolação.

Contorno a Praça Roosevelt e subo a Augusta. Um homem me chama, que tal tomar uma breja com a mulherada. Agradeço. Domingo, quando passei por lá, voltando da casa do Cássio, imaginei como não seria a tal mulherada, a se tomar como base as que estavam na porta. Nesse mesmo domingo, exatamente ao lado, por conta de um barzinho, uma grande aglomeração de adolescentes e jovens vestidos de preto. Duas belas garotas gargalham, e quase esbarram no mendigo que dorme ao seu lado.

Quinta é diferente, ou ao menos a hora ainda não é apropriada, não há jovens darks e emos ao lado do inferninho, e os mendigos ainda não se aconchegaram sob as marquises. Sigo em meu passo rápido – se tem uma coisa que sou paulistano de nascença é a velocidade de caminhar, principalmente se estou sozinho –, mas logo preciso parar: um mendigo pede dinheiro pra pinga para três jovens que descem em direção ao centro, e os quatro ocupam toda a calçada. Não lhe dão atenção, e eu passo assim que possível. Obrigado de qualquer forma, desculpa o incômodo. Parece que pedir dinheiro pra pinga é a moda entre pedintes. Me soa hipócrita: uma garrafa de pinga custa R$ 3,00, não precisam esmolar tanto se é pra beber. Mas esse o segredo para sobreviver numa sociedade hipócrita: diga o que querem ouvir que lhe darão dinheiro. Se disser que é pra comida, vão dizer que está mentindo, se for pra cigarro... melhor que beba, porque cigarro faz mal.

Passo por um rapaz que parece o Mário (não, não é uma piada para perguntar que Mário), duas vezes calouro meu na Unicamp. Qual enésimo curso terá ele começado (ou recomeçado) este ano? Num bar, um homem usa uma boina, que não controla a vasta cabeleira encaracolada, grisalha e desagruvinhada, metido numa espécie de manto colorido. Parece saído de algum filme B que passa à tarde, sobre vagabundos nas florestas da Inglaterra – faltou uma flauta. Lembro da discussão que tivera com o Cássio, há quatro dias, e me pergunto uma vez mais: quem não está fantasiado? Que não está encarnando uma persona na cidade? Num dos inferninhos mais acima, ao invés de mulheres semi-nuas, homens sem camisa e com salientes barrigas descarregam cerveja – e recordo questão que pusera ao Wlad, há um tempo: por que todo maitre de inferninho precisa lembrar o Ratinho?

Caminho um pouco mais e cruzo com outro homem que soa conhecido, esse lembrando algum ex-colega de escola, de Pato Branco – era o Norton ou o Pelicano? Um homem em roupas psicodélicas expõe seu artesanato na calçada, está com óculos escuros: enxerga alguma coisa com aqueles óculos à noite? O Cine-Unibanco ainda não terminou de ser fechado. Quase chegando na Paulista, reparo de canto de olho um rapaz que vem na direção contrária hesitar. Por fim, acaba me abordando, já quando estamos lado a lado. Amigo. Tarde demais, não diminuo o passo e finjo que não ouvi, concentrado que estou na minha futura crônica.

Desço a Haddock Lobo. Pela hora, não tenho esperanças de encontrar com nenhuma Flávia que lembre a Carla Bruni. E realmente não cruzo com ninguém. No barzinho da esquina de casa havia uma mocinha bonitinha, mas não se parecia com a Carla Bruni. Em casa estão o Hugo e o Gabriel.


São Paulo, 23 de fevereiro de 2012.

ps: ao entrar no sítio da FLM [www.portalflm.com.br], desconfio que o grupo que se ajeitava sob a marquise, do outro lado da Av. São João, devia estar em busca de auto-proteção, mesmo.