sexta-feira, 1 de maio de 2015

Novos colegas de apê

Foi May quem primeiro respondeu meu e-mail. É nome de personagem de Dance, Dance, Dance, do Murakami. Poderia ser a própria, penso. Ornaria com o momento de minha vida, de pessoas que de repente aparecem, de repente somem, com explicações que tornam a história levemente surreal. Faça reiki, faço reiki, coincidências, perseguições de (e a) ex-namorados e ex-namoradas, mudanças de país e de planos, umbanda e búzios, especulação imobiliária e Dogde Dart V8, como em meu último conto. Por ora, faltam telefonemas do além e homens-carneiro - mas não me surpreenderá que logo deixem de faltar.
Há anos - uns oito - penso em arranjar um bicho de estimação. Abandono a idéia com dó do bicho: viajo com certa freqüência, há semanas que passo a maior parte do tempo fora de casa, deixaria ele solitário em meu lugar - não parece legal. Para não falar nas dificuldades mais mundanas: dar comida quando viajo, levar ao veterinário, aumento nos gastos, coisas do gênero. Voltei a pensar em adotar um no início do ano, com uma seriedade que não tivera até então, talvez influenciado por histórias de amigos e amigas com seus gatos. Pondero em terapia, converso com meus pais - recebo muitas objeções de meu irmão -, inquiro amigos, visito o site de uma ONG de adoção, e o principal empecilho - o gato ficar solitário - soa solucionável quando eles sugerem a adoção de dois - os custos, dizem, não aumentam na mesma proporção.
Os amigos felinófilos se dividiram quanto a minha decisão. Os que têm um gato, me criticaram pretender adotar dois. Os que têm dois ou mais, me apoiaram. Minha mãe sugeriu que eu visitasse os gatos antes de decidir, mas isso é difícil pra quem não tem carro. Escolho a partir das descrições do site, mesmo. Dois irmãos - apesar de a princípio querer dois gatos mais diferentes, como branco e preto, me conformo com um macho e uma fêmea. Separo deles o irmão anão que exigia maiores cuidados. A partir de então, minhas maiores preocupações são a integridade dos meus livros e o tamanho do apartamento: trinta e seis metros quadrados comporta dois gatos? Alguns amigos dizem que não, outros dizem que sim, desde que tenha lugar pra eles subirem e se enfiarem, o que não falta na minha casa, desde que não estraguem meus livros - por sinal, até animo com a idéia de eles passeando pelos livros me pouparem da maçada de tirar o pó. Da ONG, dizem que não é problema. Penso em nomes, discuto com amigos, tenho dúvidas: Arara Teresa e Trumbica, em homenagem à Misson? Joaninha e Beterraba? Uai e Tchê? Me sugerem uma convivência com os gatos antes de escolher.
Quem mos entregou tinha o nome de ex-namoradas e de amigas próximas: Mari. São tantas que quando vou me referir a uma delas, trato pelo sobrenome. Junto com a Mari, Denise, que hospedou temporariamente a mãe e a prole. Duas moças muito simpáticas. Vistoriam o apartamento. Sugerem que deixe as janelas fechada, pois como são filhotes, são capazes de passar pelas redes. Os gatos saem investigar a casa enquanto conversamos. Após as duas partirem, os gatos se escondem, ora embaixo de minha cama, ora atrás da cama-sofá da sala. Ao irem de um esconderijo a outro, passam por mim cheios de pó - parece que minha idéia pros livros funciona para rincões escondidos.
Início da noite resolvo socializar com eles. Bolinhas de papel e um cadarço para atraí-los, e um minuto com eles no colo, antes de fugirem. O macho é o mais desesperado - crava as unhas na minha perna. De certa forma funciona: passam a circular pela casa, de início timidamente, logo com desenvoltura. Evitam que eu chegue perto, mas aceitam freqüentar o mesmo ambiente que eu. Enquanto a fêmea descobre que o sofá é delicioso para cravar as unhas, o macho parece ter predileção pelos livros e pelos cantos apertados. Provam minha babosa, temo que comam o cacto ou a espada de São Jorge, que são venenosas para gatos.
De repente a fêmea (Arara Teresa? Joaninha? Uai? Borboleta? Maria Bonita?) sobe na minha cama e descobre que a casa já é habitada por outro gato - ou ao menos assim parece. Eriça o pelo e fica a encarar o espelho, estudando o adversário. O macho (Trumbica? Beterraba? Tchê? Banana?) tenta subir na cama e leva um corridão dela. Por um bom tempo, até eu conseguir tirá-lo de debaixo da cama, a fêmea investiga sozinha o ambiente.
Fico a observá-los, vários sentimentos me tomam. Da saudade da felinófila Misson à alegria de finalmente adotar um bicho de estimação. Da lembrança das cachorras que tive, à lembrança do meu avô - hoje o time dele, que adotei também, faz cento e três anos e pode ganhar seu primeiro título domingo. Penso na responsabilidade que terei pelos próximos quinze anos. Quinze anos... Parece muito mas é tão pouco! Quinze anos atrás eu saía da casa dos meus pais, parece que foi ontem. Lembro quando, ainda antes de me mudar, num dia de prova da segunda fase da Fuvest, da janela do quarto do hotel, em Sorocaba, avistei uma pomba que tocava seus filhotes para o vôo, que resistiam a abandonar o ninho. Me ponho a me perguntar quantas pessoas não conheci nesses quinze anos. Quantas ainda mantenho contato? Quantas nunca perdi contato nesse tempo todo? Ligo para o Paulo, ele comenta que quando arranjou a Faísca, cachorra de estimação, foi mesmo uma mudança na vida - ele não sabia explicar, mas algo mudava. Talvez seja esse o sentimento principal que me passa e que não consigo apreender: mudança. Uma primeira mudança me soa forte: ter uma responsabilidade a qual não é possível discutir a relação para resolvê-la - algo que passa aquém ou além do logos. Felizes eles, que podem conviver comigo sem ter que passar por intermináveis conversas cabeçudas sobre a existência - vide esta crônica.
É quase meia noite, os gatos finalmente se mostram despertos e cheios de energia - a noite promete ser longa. Pela manhã, sem falta, vou atrás de sílica pra caixa de areia.



01 de maio de 2015.

PS: o site de adoção onde encontrei os dois: www.adoteumgatinho.org.br
PS2: Dá-lhe Operário Ferroviário de Ponta Grossa!

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Tempos modernos, ferramentas antigas

Sete da noite, no bar da esquina da rua Treze de Maio estão sentados, conversando, um gari e um homem de calça social e camisa pólo - não que o gari não seja homem, mas sua veste traz esse forte simbolismo, que o faz antes ser escória social a ser humano. Na mesa ao lado, comendo batata frita e bebendo uma cerveja, um casal. No breve tempo que os observo, não conversam: cada um tem uma das orelhas ocupadas por seu fone de ouvido, creio eu que escutando música - o outro ouvido desimpedido, para caso um dos dois resolva falar algo. Eu poderia ver pelo lado bom: não incomodam outras pessoas com música alta, e caso tenham gostos diferentes, não se irritam com a música alheia - mas algo me diz que esse lado bom é torto demais pra justificar o lado (que vejo como) ruim. Na Treze de Maio, pizzarias acendem seus fornos, vendedores de milho verde e espetinho já estão a postos, pessoas nos bares bebem o fim do dia. Duas meninas brincam de skate: uma sentada e a outra empurrando pela calçada pouco apta às rodas do equipamento. Lembro de quando criança, disputávamos corrida de skate (sentados, é claro) descendo a rua - a calçada, pra ser mais preciso, porque a rua era de paralelepípedos -, um dos meus amigos sempre com a proeza de atropelar os próprios dedos, a Dona Frida como linha de chegada, ou então tomávamos bronca da pioneira da cidade. Ontem, uma dessas meninas dirigia um carrinho elétrico - um dos meus sonhos de consumo quando criança, mas que, vejo hoje, não me fez falta. Em frente à calçada onde brincam as meninas, bebem os homens, conversam as mulheres, estacionam os carros, no interior da sala, a mulher lê um anúncio, algo parecido com informe de RH. Tem um copo d'água na mesa, a luz da platéia está acesa. Sem uma mudança brusca de tom, ela passa do informe à sua busca por empregos em extinção, e dos empregos em extinção às ferramentas do pai já falecido - trazidos em um pano bordado pela mãe. Ferramentas de carpintaria, com ornamentos e ergonometria pouco usuais nas ferramentas de hoje. Há uma furadeira manual entre elas. "Bem, era isso", ela termina, a voz um pouco embargada, como se tivesse dito pouco. Entre o animado e o comovido, nos acercamos para ver aquelas relíquias pessoais de um tempo antigo. Com elas nas mãos, aproximando-as dos olhos para perceber os detalhes e as marcas que traziam, sentimos sem querer seus cheiores, e notamos que talvez a mulher tivesse mesmo falado pouco, diante de tudo o que aquelas ferramentas tinham para contar.




10 de março de 2015