Foi
May quem primeiro respondeu meu e-mail. É nome de personagem de
Dance, Dance, Dance, do Murakami. Poderia ser a própria,
penso. Ornaria com o momento de minha vida, de pessoas que de repente
aparecem, de repente somem, com explicações que tornam a história
levemente surreal. Faça reiki, faço reiki, coincidências,
perseguições de (e a) ex-namorados e ex-namoradas, mudanças de
país e de planos, umbanda e búzios, especulação imobiliária e
Dogde Dart V8, como em meu último conto. Por ora, faltam telefonemas
do além e homens-carneiro - mas não me surpreenderá que logo
deixem de faltar.
Há
anos - uns oito - penso em arranjar um bicho de estimação. Abandono
a idéia com dó do bicho: viajo com certa freqüência, há semanas
que passo a maior parte do tempo fora de casa, deixaria ele solitário
em meu lugar - não parece legal. Para não falar nas dificuldades
mais mundanas: dar comida quando viajo, levar ao veterinário,
aumento nos gastos, coisas do gênero. Voltei a pensar em adotar um no início
do ano, com uma seriedade que não tivera até então, talvez
influenciado por histórias de amigos e amigas com seus gatos.
Pondero em terapia, converso com meus pais - recebo muitas objeções
de meu irmão -, inquiro amigos, visito o site de uma ONG de adoção,
e o principal empecilho - o gato ficar solitário - soa solucionável
quando eles sugerem a adoção de dois - os custos, dizem, não
aumentam na mesma proporção.
Os
amigos felinófilos se dividiram quanto a minha decisão. Os que têm
um gato, me criticaram pretender adotar dois. Os que têm dois ou mais,
me apoiaram. Minha mãe sugeriu que eu visitasse os gatos antes de decidir,
mas isso é difícil pra quem não tem carro. Escolho a partir das
descrições do site, mesmo. Dois irmãos - apesar de a princípio
querer dois gatos mais diferentes, como branco e preto, me conformo
com um macho e uma fêmea. Separo deles o irmão anão que exigia
maiores cuidados. A partir de então, minhas maiores preocupações
são a integridade dos meus livros e o tamanho do apartamento: trinta
e seis metros quadrados comporta dois gatos? Alguns amigos dizem que
não, outros dizem que sim, desde que tenha lugar pra eles subirem e
se enfiarem, o que não falta na minha casa, desde que não estraguem
meus livros - por sinal, até animo com a idéia de eles passeando
pelos livros me pouparem da maçada de tirar o pó. Da ONG, dizem que
não é problema. Penso em nomes, discuto com amigos, tenho dúvidas:
Arara Teresa e Trumbica, em homenagem à Misson? Joaninha e
Beterraba? Uai e Tchê? Me sugerem uma convivência com os gatos
antes de escolher.
Quem
mos entregou tinha o nome de ex-namoradas e de amigas próximas:
Mari. São tantas que quando vou me referir a uma delas, trato pelo
sobrenome. Junto com a Mari, Denise, que hospedou temporariamente a
mãe e a prole. Duas moças muito simpáticas. Vistoriam o
apartamento. Sugerem que deixe as janelas fechada, pois como são
filhotes, são capazes de passar pelas redes. Os gatos saem
investigar a casa enquanto conversamos. Após as duas partirem, os
gatos se escondem, ora embaixo de minha cama, ora atrás da cama-sofá
da sala. Ao irem de um esconderijo a outro, passam por mim cheios de
pó - parece que minha idéia pros livros funciona para rincões
escondidos.
Início
da noite resolvo socializar com eles. Bolinhas de papel e um cadarço
para atraí-los, e um minuto com eles no colo, antes de fugirem. O
macho é o mais desesperado - crava as unhas na minha perna. De certa
forma funciona: passam a circular pela casa, de início timidamente,
logo com desenvoltura. Evitam que eu chegue perto, mas aceitam
freqüentar o mesmo ambiente que eu. Enquanto a fêmea descobre que o
sofá é delicioso para cravar as unhas, o macho parece ter
predileção pelos livros e pelos cantos apertados. Provam minha
babosa, temo que comam o cacto ou a espada de São Jorge, que são
venenosas para gatos.
De
repente a fêmea (Arara Teresa? Joaninha? Uai? Borboleta? Maria
Bonita?) sobe na minha cama e descobre que a casa já é habitada por
outro gato - ou ao menos assim parece. Eriça o pelo e fica a encarar
o espelho, estudando o adversário. O macho (Trumbica? Beterraba?
Tchê? Banana?) tenta subir na cama e leva um corridão dela. Por um
bom tempo, até eu conseguir tirá-lo de debaixo da cama, a fêmea
investiga sozinha o ambiente.
Fico
a observá-los, vários sentimentos me tomam. Da saudade da
felinófila Misson à alegria de finalmente adotar um bicho de
estimação. Da lembrança das cachorras que tive, à lembrança do
meu avô - hoje o time dele, que adotei também, faz cento e três
anos e pode ganhar seu primeiro título domingo. Penso na
responsabilidade que terei pelos próximos quinze anos. Quinze
anos... Parece muito mas é tão pouco! Quinze anos atrás eu saía
da casa dos meus pais, parece que foi ontem. Lembro quando, ainda
antes de me mudar, num dia de prova da segunda fase da Fuvest, da janela do quarto do hotel, em Sorocaba, avistei uma pomba que tocava seus filhotes para o vôo, que resistiam a abandonar o ninho. Me
ponho a me perguntar quantas pessoas não conheci nesses quinze anos.
Quantas ainda mantenho contato? Quantas nunca perdi contato nesse
tempo todo? Ligo para o Paulo, ele comenta que quando arranjou a
Faísca, cachorra de estimação, foi mesmo uma mudança na vida -
ele não sabia explicar, mas algo mudava. Talvez seja esse o
sentimento principal que me passa e que não consigo apreender:
mudança. Uma primeira mudança me soa forte: ter uma
responsabilidade a qual não é possível discutir a relação para
resolvê-la - algo que passa aquém ou além do logos. Felizes eles, que podem conviver comigo sem ter que passar por intermináveis conversas cabeçudas sobre a existência - vide esta crônica.
É
quase meia noite, os gatos finalmente se mostram despertos e cheios
de energia - a noite promete ser longa. Pela manhã, sem falta, vou
atrás de sílica pra caixa de areia.
01
de maio de 2015.
PS: o site de adoção onde encontrei os dois: www.adoteumgatinho.org.br
PS2: Dá-lhe Operário Ferroviário de Ponta Grossa!
PS: o site de adoção onde encontrei os dois: www.adoteumgatinho.org.br
PS2: Dá-lhe Operário Ferroviário de Ponta Grossa!
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