Houve um tempo em que as esquerdas sabiam fazer trabalho de base - não por acaso a Constituição de 1988, feita sob a pressão dos movimentos populares, desagrada nossas elites desde antes de promulgada. Com a ascensão do PT ao poder, no início do século, as esquerdas se acomodaram, passaram a acreditar demasiadamente na via institucional - sim, há movimentos que nunca arrefeceram, outros que surgiram, mas falo de modo geral -, e quem soube se aproveitar desse vácuo foram os evangélicos neopentecostais e a extrema-direita, dois grupos em boa medida fortemente ligados (comentei isso em outro texto: https://bit.ly/cG200121).
Na parte de comunicação, desde o fim da ditadura, a esquerda (ainda que não seja um bloco coeso, vou tratá-la no singular a partir de agora) não conseguiu fazer frente ao complexo midiático montado durante o período de restrições das liberdades - e no início do governo Lula, o PT chegou a acreditar que a Rede Globo seria porta voz oficiosa do governo de turno, independente de ser de (centro) esquerda ou direita. Algo muito diferente dos anos 1960, quando a esquerda soube fazer a leitura do momento e entender que a indústria cultural brasileira ainda não se fechara em sistema e era possível adentrá-la sem ser cooptado por ela (via festivais de canções, por exemplo). Estratégia exitosa e que só com a guerra cultural da extrema-direita olavista foi de alguma forma questionada com mais veemência (ainda que sem conteúdo).
A falha de comunicação do governo e fora do governo é muito prejudicial a várias pautas. Ao meu ver, um dos pontos dessa falha de comunicação é que a esquerda, mais que se burocratizar, se academicizou. A esquerda tupiniquim sempre teve um pé na academia, e isso não é um problema. O problema é quando essa classe média branca universitária, graças ao forte capital social acumulado (e que recusa a abrir mão, pelo contrário, faz de tudo para concentrá-lo ainda mais), começa a pautar praticamente todas as análises e estratégias da esquerda, partindo do pressuposto de que sua racionalidade é a hegemônica na sociedade. E sua racionalidade, pode não ser consciente, mas é uma versão suavizada da Teoria da Justiça, do John Rawls, com pitadas de humanismo ingênuo e preconceitos de classe (mal) disfarçados - porque a classe média (e me atribuo local de fala para dizer isto) é, via de regra, tímida, covarde e refratária a grandes riscos nas suas reivindicações: poucas são as pessoas da classe com a estatura de uma Dilma Rousseff ou um Guilherme Boulos.
O caso do projeto de lei (PL) para regulamentar as grandes empresas de tecnologia no Brasil - e, por consequência, a divulgação de fake news por seu intermédio - é uma demonstração do retumbante fracasso da esquerda na comunicação com a sociedade - e me impressiona também como ela parece não perceber isso, ou não dar a devida importância.
É visível que são duas pessoas muito simples, sem qualquer capital social, mesmo econômico ou cultural (para ficar nos termos de Bourdieu).
Primeiro aspecto a ser notado: a questão da política como sendo a luta do bem contra o mal (e eu lembro de que esse tipo de raciocínio era, de alguma forma, reproduzido por vários colegas e amigos meus da faculdade de ciências sociais, mesmo quando já estavam no mestrado e doutorado), ou seja, a despolitização da política em favor de princípios religiosos (bem, mal, pureza, verdade, certo), o que mostra que o terreno está preparado para um novo arauto da moralidade, um novo salvador da pátria, um novo Jim Jones das Rachadinhas da Vivendas da Barra ou da Casa da Dinda.
O segundo, é que estou diante do lúmpen do lúmpen discutindo o que não tem, a não ser que virem um meme: condições de participar individualmente, isoladamente, como voz ativa no debate público, via concessões públicas de radiodifusão ou imprensa escrita, algum meio oficial e/ou reconhecido por onde o que dizem seria reverberado.
Disso deriva uma outra questão: a internet se tornou não apenas uma nova ágora, mas ocupa também lugares de socialização: o clube, o bar, onde as pessoas se reuniam com iguais e semelhantes e se falava absurdidades sem consequências, por serem palavras ao vento (literalmente), com a desculpa de estar bêbado, caso se extrapolasse; ou mesmo a sala de estar ou de jantar, o antigo local onde a família se reunia para discutir os assuntos do dia (ou “aquele tempo bom que já passou”), agora expandido para além da família nuclear, uma retomada da família ampla que se fala todos os dias por meios virtuais. Talvez o medo dessa pessoa de perder seu fantasioso direito à liberdade de expressão, seja o medo de “terei que me calar dentro de minha própria casa” - decorrência da privatização do espaço público, que parece quase um tornar público o espaço privado, mas não é, uma vez que o espaço público que é contaminado por hábitos que não lhes são os mais adequados. E, claro, bem provável de haver um narcisismo dessas pessoas, desses “Zé Ninguém” tão bem caracterizados por Reich, que julgam um dia poder virar influencer, ter repercussão naquilo que dizem ou falam, influência que nunca tiveram nem nunca terão, embalados pelo canto das sereias de que a internet é um espaço aberto para oportunidades a todos. Contudo, essa confusão entre liberdade de expressão num espaço público e falar o que quiser num espaço privado é providencial para o discurso da extrema-direita e das grandes companhias de tecnologia para impôr o medo de cerceamento da liberdade (ironicamente, quem mais teme isso costuma ser quem mais defende a volta da ditadura, numa dissociação da realidade bastante evidente).
A segunda cena, presenciada no fim do dia, num ponto de ônibus, entre dois trabalhadores que aparentavam terem condições econômicas um pouco melhores que os da manhã - mas não muito, ou não estariam pegando ônibus em horário de pico. Um deles palestrava: “aí o PT vai pra favela da Maré, depois de fazer acordo com o tráfico, e não querem que a gente fique sabendo. É por isso que querem aprovar essa lei”.
Temos aqui uma outra camada de discurso, não mais de alguém que tem medo de não poder falar, mas de ser privado de conhecer - no fundo, um ignorante confortável com a própria ignorância, que o dispensa de encarar as próprias limitações. Talvez a pessoa tenha mais ciência (mesmo que não consciente) de sua condição, de seu capital social, quem sabe seja até mais cioso do que fala, para não se queimar com os próximos - atitude bem típica da classe média não totalmente cooptada pela guerrilha cultural neofascista (uma das facetas atualizadas do "arcaísmo tecnicamente equipado”, como dizia Debord sobre o fascismo). Neste caso, repassar materiais feitos por terceiros é uma estratégia de opinar sem se comprometer, uma vez que a pessoa não repassa o que escreveu ou falou, mas a fala de outrem - e não raro, quando confrontados com mais ênfase, dizem que estavam apenas trazendo um ponto para ser refletido, não necessariamente concordam com ele. Seja "opinião", seja “notícia”, o projeto de lei seria uma tentativa de censura dessa pessoa saber o que acontece de fato no mundo, a verdade; sendo que esse discurso da Verdade, de saber o Certo, de estar no caminho certo, lembra, novamente, muito do discurso religioso - e Safatle, em seu curso sobre psicologias do fascismo, de 2019 (as notas de aula podem ser baixadas em https://bit.ly/3MlKlJY) comenta dessa subjetivação do sujeito moderno ainda muito atrelada à subjetivação religiosa, cristã.
Qual o primeiro e mais evidente erro de comunicação da esquerda? Não conseguir ampliar sua bolha - isso quando consegue falar para a própria bolha. Não conseguir ir além de um academicês estéril ou de jargões que não se mostraram efetivos no debate, mas seguem sendo repetidos sem mudanças.
Quando a extrema-direita, mais bem vocalizada pelo discurso evangélico, decidiu acossar Dilma, na esteira das acusações ao Palocci, criou a expressão “kit gay” para a política anti-homofobia que o governo pretendia implementar. Em 2018, durante a campanha, tivemos a “mamadeira de piroca”. Agora, o pouco que vi, é que o que está em pauta no congresso é o “PL da censura”. Slogans rápidos, fáceis e que conseguem balizar o debate. A esquerda, por seu turno, depois de perder na discussão da PEC 95, agora sobe a hashtag contra a PL 2630. Tudo muito cativante. Um matema, uma fórmula matemática, uma expressão algébrica pode servir para explicar de maneira precisa um problema, mesmo social, mas não vai convencer quem está tomando café da manhã na barraquinha na rua, não diz nada para quem a preocupação com números é o quanto terão na conta até o final do mês?
Em 2016 tentou se apelidar a PEC 95 de PEC da Morte, mas o termo não foi capaz de mobilizar - talvez porque no futuro estaremos todos mortos, então qual a diferença? Ou talvez porque a preocupação das pessoas seja antes de tudo a vida por levar. Sem dúvida porque a força de quem era favorável à emenda constitucional era muito mais forte, e era preciso um nome que os forçasse ao menos a se justificar. Agora a PL 2630 teve a tentativa do nome fantasia de PL das Fake News, mas em minha bolha, ao menos, o que vingou foi a expressão burocrática - e o debate foi mais pautado na questão da censura e da liberdade de expressão, como puseram a extrema-direita e as empresas, do que pelo combate às fake news.
Sim, como a esquerda brasileira é adepta da democracia, falta uma coordenação central que dite de cima pra baixo como se dará a guerrilha de comunicação virtual; além de que, em geral, toda tentativa de algo um pouco mais célere e menos discutida esbarra em um sem número de problematizações de questões menores que fazem perder o foco e a possibilidade de uma ação estratégica. Ademais, no outro campo, temos evangélicos, olavistas, extrema-direita, grandes empresas de tecnologia todas juntas: era realmente difícil pautar o debate, mas #aprovaPL2630 #PL2630já e afins é uma ajuda que elas agradecem.
Bolsonaro tinha o cercadinho com seus apoiadores, tinha uma live semanal em que era como um convite para estar na sala com ele - a sensação a seus seguidores era que eles quem adentravam o Palácio do Planalto, e não o contrário, que ele entrava na sala das pessoas, caso fosse um discurso em cadeia nacional. Servia para ele falar as obscenidades típicas, divulgar fake news e falar de ações de seu governo (o que parece uma fake news). A escolha de ser às quintas-feiras, inclusive, me parece providencial: era combustível para conversas nas confraternizações de trabalho, na sexta, e nas de família, no final de semana - além de alimentar manchetes de jornais durante vários dias.
Lula não precisa polemizar, mas poderia utilizar um esquema semelhante, seja para mostrar e comentar as ações do governo (por exemplo: as ações de inteligência da polícia contra os ataques na escola, que deveriam ser trending topics por dias, mas o que temos é que os ataques parece quase que pararam “porque sim”, porque os agressores em potencial decidiram parar), divulgar dados contextualizados, fazer a defesa do governo sem depender da boa vontade da mídia nas suas edições, apresentar sua versão contra os ataques da mídia-mercados. As lives deveriam ser a nova Voz do Brasil. A Voz do Brasil tem um ranço fascista? Tem. Como nossos tempos também - mas não me parece que repetir isso seja algo anti-ético, ainda que sua origem não seja nobre.
O que o governo usa são pedaços de discursos dos ministros ou do Lula em redes sociais. Não há um horário do governo, do presidente. É aleatório. Novamente, a extrema-direita agradece a incompetência palaciana - e a mídia tradicional também, pois mantém o governo na sua dependência.
Se as esquerdas e o governo não se reinventarem na parte de comunicação, se não se adaptarem aos novos formatos, àquilo que chega a maiores parcelas da população, dialoga com elas e faz sentido; se não retomar aquilo que foi feito na década de 1960, 70 e fizer uma boa leitura crítica do momento, se aproveitando das brechas existentes, daqui cinquenta anos seremos nós quem estaremos lutando contra ícones da cultura nacional aliadas ao fascismo e ao pior do que a civilização europeia nos legou.
04 de maio de 2023
PS: Sei que este texto tem uma contradição de fundo: falo da necessidade de nos comunicarmos além da bolha de esquerda acadêmica branca classe média, com um textão com toda cara de bolha de esquerda acadêmica branca classe média, que será lida por meus pares, quando muito. Dois pontos em defesa: primeiro, o público alvo deste meu texto; segundo, digo isso muito baseado em minha experiência de anos como comunicador social - o que também faz com que eu reconheça minhas limitações, por não ser uma pessoa midiática. Por isso esse apelo a abrirmos espaço para que tome a dianteira nesse processo quem soube se adaptar aos tempos de memes e reels e, principalmente, não sofre dos cacoetes acadêmicos brancos classe média.
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