Mas eis que dez anos depois, num sábado fresco e chuvoso, estou eu pronto para estrear na segunda festa mais popular do Brasil, meu primeiro carnaval de rua em São Paulo - ainda no pré-carnaval. O que mudou assim tão repentinamente? Fácil: o trabalho exige que eu vá. Dá para imaginar minha animação, ainda mais diante do que acompanhei dos bastidores e vivenciei na “organização”.
Vestido com o “abadá” da prefeitura (que alguns amigos acreditaram se tratar de fato de fantasia), desço na estação Eucaliptos e vou caminhando até a avenida Faria Lima. O caminho pelo bairro de Moema me é indigesto: assumo que regiões endinheiradas e segregadas me soam anti-cidade. Frequentei o bairro algumas vezes, acompanhando minha ex-namorada e sua família em restaurantes (pago pelo pai dela, claro, pois não tenho condições), e assumo que isso é algo que não sinto falta: diante da miséria que nos circunda (por mais que não seja visível em Moema, que é um bunker a lá Nós, do Zamiatin, assim como Perdizes e Pinheiros), gastar valores absurdos para comer me soa ofensivo - sim, aproveitei a oportunidade e comi em restaurantes caros, mas nunca tive orgulho disso, não. Assim como nesse sábado de pré-carnaval vivencio a experiência de caminhar entre foliões (mesmo que poucos) da avenida onde circulam os mais executivos mais endinheirados e descolados do Brasil.
Parafraseando Belchior: cabelo à chuva, gente branca reunida. Me senti num Sesc: foliões brancos em sua enorme maioria, poucos negros, e todos com um estilo de vestir muito óbvio, um descolado caro; as pessoas todas muito bem comportadas, nem mesmo um grupo mais POC - que fosse POC de carnaval! Tanto que a festa correu sem nenhuma ocorrência.
No trio elétrico, os blocos cantavam em meio a loas à prefeitura e aos patrocinadores, repetindo o slogan da cerveja ruim do trio de golpistas da 3G. Faço uma correção: negros havia: nos vendedores de cerveja, nos garis, nos seguranças, nos policiais - nos serviçais em geral, como no Sesc.
Eu poderia alegar que, por estar a trabalho, não entrei no clima da festa, mas estaria mentindo: não entrei porque há algo que está para além do meu campo de possibilidades existenciais (serei eu moderno, demasiadamente moderno, a ponto de não conseguir experienciar vivências mais comunitárias, carnaval, religião, transes, grupos homogeneizados?). Admiro quem tem efetivamente essa capacidade de festa comunitária (suspeito que a maioria apenas vive um kitsch de comunidade e transcendência), e ainda o faz com senso crítico.
Eu sigo observando à distância, mesmo próximo, percorrendo essas experiências como um estrangeiro que há muito não é turista, e está ciente e conformado da sua condição estrangeira.
11 de fevereiro de 2023
PS: No domingo trabalhei na Henrique Schaumann, em Pinheiro, basicamente a mesma coisa: ainda que com um pouco mais de negros, a maioria dos poucos que apareceram era branca.
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