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quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Sextou!

Há entre meus colegas de trabalho uma candura das sextas-feiras que me comove. Sei que esse sentimento de sextou tem a mesma originalidade que no fim da década de 1980, início da de 1990, havia nas famílias que corriam aos supermercados no primeiro sábado depois de receberem o salário, para fazer as compras do mês - cada época com suas alegrias sui generis (apesar que estamos num revival daqueles tempos)...

No fim de expediente de quinta já há um ar diferente em toda sala - uma expectativa quase infantil pelo dia de amanhã -, e na sexta adentram já com outro espírito, radiantes, como se o que se desenhasse para começar dali oito horas e encerrar menos de quarenta e oito horas depois fosse algo mágico e único.

Fingem não saber que é só mais um fim de semana curto e banal, em que os bem organizados conseguirão acavalar atividades para aproveitar o tempo, enquanto os esgotados vão vê-lo passar na velocidade inversa do que foi a semana de labuta. Sair à noite, passear no parque, caminhar pela Paulista no domingo, comer fora, praticar algum esporte, assistir a algum filme ou a um espetáculo ao vivo, encontrar amigos, ler: a lista de opções para um fim de semana é longa e não vai dar para fazer nem metade. E a coisa piora se se tiver a necessidade de preparar o almoço da semana, fazer a faxina, pôr em dia o sono da semana - e do fim de semana também, caso saia, ainda mais quando a idade já não é mais de vinte anos -, fazer as aulas atrasadas da faculdade. Mas ainda assim gritam sextou, como se fosse uma alforria - sendo que é só um leve alívio nos grilhões, talvez...

Ignoram, antes de tudo, que sexta-feira é o dia útil mais próximo da segunda-feira e da semana que muito em breve começará e engolirá as energias ao longo de cinco arrastados dias de trabalho, como sempre faz. Ignoram que dali quarenta e oito horas será domingo à noite com toda a melancolia do tempo que passou sem ser aproveitado em sua plenitude e que em doze horas o tempo tornará a passar alheio aos seus desejos, que voltarão a ser devorados por esse monstro que povoa a sociedade atual, cruzamento de Chronos com Sísifo.

Quarenta e oito horas não dá tempo para dar uma volta ao mundo, sequer! E estou falando de viagem de avião em vôos comerciais, não em repetir a aventura de Phileas Fogg e Passepartout - para isso seria necessário ter férias de juiz e emendar com umas licenças. Se se quiser algo mais modesto, dá pra quicar em Tóquio, comer um sushi, pôr a foto no Instagram e voltar - e dormir logo!

Escrevo esta crônica na quinta. As conversas que começam a se animar com o fim do dia me lembram da véspera de natal com meus amigos, quando éramos crianças: a animação e a expectativa com o presente que receberíamos no dia seguinte. Reparo uma vez mais em meus colegas: crianças empolgadas esperando o Papai Noel, sabendo, no fundo, que ele não virá e o que os espera, de fato, é o Homem do Saco, na segunda-feira que está logo ali, na próxima esquina.


01 de setembro de 2022

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Vinho estranho

Luciana vem me ver. Ao chegar, pergunto se quer beber algo: água, chimarrão, café (novidade na casa!), suco verde (que é vermelho, por causa da beterraba e não do meu daltonismo, apesar dos amigos não perderem a oportunidade para fazerem a piada), rum, gin, vinho tinto ou branco. Ela aceita vinho branco.

Mostro a garrafa do vinho argentino que comprei na minha última ida à fronteira, a Bernardo de Irigoyen, perto de Pato Branco, em 2018, junto com minha mãe e meu irmão. Saliento o guanaco em relevo acima do rótulo, e antes de ela formular a pergunta eu já respondo: “sim, comprei por causa da garrafa”.  Já tinha dado certo numa oportunidade, quando comprei saquê pela primeira vez, por que não daria de novo? Estava com Vannucci na Liberdade e nunca nenhum dos dois havia bebido saquê. Decidimos comprar um. Foi ele quem sugeriu comprarmos uma marca que não era a mais barata e cuja garrafa era bonita. Me pareceram argumentos sólidos. Alguns anos depois, quando fui na festa de aniversário da Paty, uma amiga cujo pai é dono de um restaurante japonês, vi que usavam do mesmo saquê - que encarei como prova insofismável da validade do argumento da garrafa bonita para bebida barata é sinal de qualidade.

Mas para agora o que há é vinho, e não saquê - retorno ao causo. Uma, duas, três tentativas, a cada vez que o saca-rolhas sai, só vem farelo de cortiça. A rolha está seca e só me sobra empurrá-la. Luciana assiste a tudo com desconfiança. Encho minha taça e experimento um gole sob o olhar atento dela. “Está estranho, mas acho que está bom, sim”. Ela recusa a oferta para provar: “eu preciso trabalhar amanhã, não posso passar o dia no banheiro por causa de um vinho ‘estranho’”. Eu ainda insisto, digo que não está ruim, ou melhor, não parece estar ruim, só um pouco estranho. Ela reitera a recusa e abro, então, o vinho tinto, comprado aquela semana numa promoção no mercado - os dois paguei praticamente o mesmo, entre R$ 30 e R$ 40, apesar dos quase quatro anos que separam as compras. Do tinto, a rolha sai sem problemas, deslizando macia para fora da garrafa, produzindo aquela exclamação sem falhas - “Pop!” -, que anuncia que ali tem vinho e não vinus acre - ou qualquer outra reação química que torne o líquido "estranho" -, o que tranquiliza Luciana. Devolvo o vinho branco à garrafa, passo uma água em minha taça e encho as duas com o vinho tinto.

Antes de continuar, a atenta leitora, o atento leitor vai se perguntar: por que raios pus o vinho de volta, se estava estranho? Ainda que eu seja de família classe média, meus pais vieram de famílias de classe baixa, nunca esqueceram disso (por questões de preconceitos vários, os termos costumam ser usados para nordestinos, negros e pobres, mas posso dizer que sou filho de um retirante com uma boia-fria) e fui criado em uma  simulação de economia de guerra, em que, por exemplo, não se joga nada fora sem motivo, porque “vai que precisa”. Sim, isso leva a situações sem sentido, como notou uma ex-namorada, quando eu havia instalado na cozinha o móvel que havia feito no curso de marcenaria, reorganizava meus víveres e vi que havia algumas castanhas portuguesas que eu ganhara de uma outra ex, cinco anos antes - certamente já impróprias para o consumo. Comentei isso com ela, e pus o pacote no armário, ao que ela perguntou: “se não dá mais para comer, por que está guardando?”, eu estava prestes a responder “vai que uma hora precise”, quando percebi que a razão era inconsistente, e com peso na consciência me vi forçado a jogar comida fora... Sobre essa ex-namorada, outro ponto bem a propósito neste longo parênteses: seus pais adoravam vinho, e tomavam apenas vinhos caros. Seu pai buscava qualquer pretexto para beber, e conversar comigo era um - eu gostava das conversas, ele contando, dentre outras coisas, da sua atuação no PC do B no final da ditadura e início da redemocratização. Numa conversa de uma hora e pouco, abria três garrafas, na qual eu bebia uma taça da primeira, meia da segunda e dois dedos da terceira - como forma de garantir que conseguiria voltar caminhando para casa -, e ele bebia o "resto". Não que ele não fizesse por hospitalidade (não era com todo mundo que ele aceitava dividir o vinho), mas, sem dúvida, eu era um ótimo interlocutor nesse sentido.

Retomemos o vinho presente, agora o tinto. Ao beber o primeiro gole, noto o que estava estranho no branco. Terminada a taça, aviso que vou voltar ao argentino. Luciana, reticente, recusa. Talvez a segunda taça tenha feito ela baixar a desconfiança, talvez tenha visto que eu, após um gole e uma taça, seguia vivo e normal (quer dizer, normal dentro do esperado após duas taças); talvez porque tenha notado que apesar das muitas partículas de rolha flutuando, o líquido era mais encorpado, mais denso que o tinto que bebia, e aceita quando insisto para que o prove. Pois tão logo bebe o primeiro gole, me critica: “Por que não me deu logo de cara este vinho!? É muito bom!”, “Mas eu te ofereci”, “Você falou que estava estranho”, “Mas eu estranhei”. Ela não dá conta de ir além de uma taça, de modo que me sobra boa parte da garrafa. 

No dia seguinte irei pesquisar na internet, para quem sabe comprar novamente, mas desistirei: meu salário de funcionário público desvalorizado não me permite: custa quase trezentos reais, mais o frete. Isso também explica meu estranhamento: desacostumado, desde que terminei com a ex acima citada, a beber vinhos de melhor qualidade, não fui capaz de reconhecer quando me deparei com um. Certamente se os pais da minha ex lerem esta minha crônica vão se perguntar por que não me ofereceram suco de uva, mesmo, diante de paladar tão primário.


10 de agosto de 2022

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Liberdade com estudantes


A Fiorino 1995 para no sinal da rua dos Estudantes com a avenida Liberdade. O carro é vermelho, com a pintura desbotada e cheia de manchas; as janelas estão abertas. Dentro, dois homens “brancos” (no nosso pantone de cores, ganham essa classificação, ainda que Bacurau tenha nos ensinado o que é ser branco; de qualquer modo, se estiverem bem vestidos, não tomarão geral da PM). Um pedinte enrolado em cobertores de doação se aproxima pelo lado do passageiro, estende a mão, fala algo. O motorista responde em tom animado, com certo ar de galhofa - eu identifico algo suspeito nessa atitude e paro para acompanhar a cena. Não escuto o que falam, apenas vejo as expressões. O pedinte sorri, se curva num agradecimento constrangido, se aproxima um pouco mais do carro, mantendo uma distância que poderia soar respeitosa, para não sujar o veículo. É quando o motorista tira de trás do banco uma barra de madeira de cerca de meio metro, muda a fisionomia, fala agora em tom agressivo, enquanto aponta o bastão para a pessoa fora do carro. Esta recua dois passos, o motorista ameaça abrir a porta - outro pequeno recuo do pedinte. O sinal abre, a Fiorino parte, o motorista ri enquanto faz a curva para entrar na avenida, o mendigo se encaminha para a calçada, como se não tivesse acontecido nada fora do ordinário, eu sigo meu trajeto para casa - sem conseguir fingir que foi uma cena banal e inofensiva. Em um país em que só no último mês Genivaldo foi morto em um câmara de gás improvisada num carro da polícia rodoviária federal, em que uma criança estuprada foi tirada do convívio familiar por uma juíza e uma promotora - e então pressionada para não fazer valer seu direito ao aborto -; em que Bruno e Dom foram mortos pelos novos “guardiões da floresta”, o crime organizado; em que pretos pobres e periféricos seguem morrendo a conta gotas, à espera da próxima chacina perpetrada pelo estado, por ação - Vila Cruzeiro ou Jacarezinho ou Castelinho ou Carandiru - ou omissão - covid no atual, meningite no governo militar anterior -, uma ameaça com uma barra de madeira feita por diversão num semáforo qualquer de São Paulo não deveria me causar mais que leve indignação - e sei que foi um pedaço de pau porque o motorista não tinha condições financeira de comprar uma arma para compensar a frustração com a própria vida, para disfarçar a absoluta impotência e irrelevância na qual ele se reconheceria, se fosse sincero consigo próprio. Mas o sentimento vem forte: o estarrecimento, a repugnância, a tristeza, a revolta. Penso nos meus colegas de classe social, que falam em mudar de país - se já não o fizeram. Alguns, poucos, foram para Colômbia, Argentina, México, Polônia. A maioria foi para países centrais, países colonizadores, países que hoje gozam da pretensa civilidade graças a tudo o que nos espoliaram e seguem explorando. Foram viver como cidadãos de segunda classe, servindo nossos algozes. Alguns já me estimularam a seguir o mesmo caminho - eu resisto. Ao menos por agora. Tenho pra mim que não enxergar as violências do dia a dia no Brasil não vai fazer com que elas sumam: a distância vai apenas garantir minha total impotência para mudar, o mínimo que seja, dessa realidade - e isso não deixaria de ser um álibi para minha consciência pequeno burguesa culpada. Quem sabe uma hora eu acabe envelhecendo e desistindo - se acaso o fascismo e o fanatismo cristão tomarem conta e o ar se torne irrespirável, eu ainda sou de uma classe que tem o privilégio de fugir. Até lá, insisto em achar que preciso de algum modo contribuir para transformar essa calamidade social em que vivemos, insisto em achar que há, sim, alternativas, desde que construídas coletivamente - e sempre pela esquerda.

27 de junho de 2022


sexta-feira, 13 de maio de 2022

Amor - releitura para uma fria tarde paulistana de 13 de maio de 2022


Há setenta anos o banal se apresentava a Ana, personagem de Clarice Lispector no conto "Amor", de modo a perturbá-la profundamente: um homem cego mascava chicletes. “Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir”.

Não sou Ana nem Clarice nem estamos em 1952. Apesar de calejado sob a lógica do choque e semi-anestesiado da brutalidade quotidiana deste século XXI, o dia a dia ainda me perturba - às vezes demais. Nada que rompa algum eventual “calmo horizonte” ou “vida sadia” que há muito desacredito haver, pelo contrário, o banal desponta para tirar da anestesia, me trazer bruscamente de volta ao “modo moralmente louco de viver” que tratamos por "normal", entre um assédio moral, um xingamento no trânsito e uma criança que pede esmolas.

Há cerca de um mês, por dez dias, passei diariamente duas vezes - uma ao ir, outra ao voltar do trabalho - por uma mulher sentada junto a um muro, numa rua de mão dupla, pernas cruzadas, sacolas em volta. Fazia calor mas ela estava sempre de roupa comprida - a mesma, que não era nova mas tampouco estava puída e pouco aparentou sujar nesses dias. Olhava sempre na mesma direção. Parecia esperar alguém, ainda que sem impaciência, como se tivesse ciência de que havia chegado cedo demais. Esperaria Godot? Ou será que quem espera Godot sou eu? 

Cogitei mudar meu caminho, ao menos o da volta, porém não resistia à tentação de passar por ali, na esperança de que algo acontecesse, alguma resolução, presenciar alguém a conversar com ela, a chegada de Godot - que fosse uma mudança de lado para o qual olhava ou de posição, além da inversão da perna que ficava por cima. O máximo que vi foi uma das vezes ela um pouco mais deitada que o habitual, em outra ela com um café com leite em um copo descartável. Teria ela se levantado para buscar ou alguém lhe trouxera? 

Dez dias ali, exatamente no mesmo lugar, quase que na mesma posição. Até que ela sumiu: quando passei pela manhã o local estava vazio como se aqueles dez dias tivessem sido uma ilusão minha, como se ela não existisse e aquela calçada fosse somente lugar de passagem desde todo o sempre. Sumiu também minha angústia de vê-la sempre ali - restou apenas a angústia.

Hoje a situação foi mais banal ainda - e mais rápida. 

Termino de atravessar a rua. Uma mulher grita "meu celular!", vejo outra mulher correndo na minha direção - quinze metros, pouco mais, nos separam. A mulher que corre é preta e usa havaianas. Está com uma camiseta vermelha manga curta, apesar do frio que faz na cidade e do vento cortante que sopra sobre o viaduto - deve haver algo escrito, não consigo ler. Em seu rosto noto algo como um sorriso - mas não deve ser um sorriso. Se for, deve ser de nervoso. Por que estaria sorrindo a mulher? Ao chegar em casa, creio identificar sua expressão na foto da capa do livreto da peça Galpão de Espera, apresentada no CCSP - mas devo estar influenciável, não há nada na boca da mulher a lhe arreganhar os dentes. Influenciável vou reler Clarice - Amor. Não coloquei Criolo para acompanhar a leitura. Deveria? Existe amor em SP - existe fome também. São coisas separadas, creio - nunca passei fome. 

A cena é rápida, mas esse tempo parece dilatado e me permite pensar e reparar em muita coisa. A mulher passa por três pessoas, que se viram para acompanhá-la; a mulher furtada começa a correr com muito atraso. Eu retardo meu passo e me ponho na linha da mulher. Uma mulher preta de havaianas e camiseta vermelha corre na minha direção. Não esboço nenhum outro movimento. Não pretendo agarrá-la e temo um choque entre nós. Não pelo impacto, mas por temer que as quatro pessoas que presenciam a cena decidam fazer justiça com as próprias mãos por causa de um celular. Ou que ao menos queiram chamar a polícia enquanto seguram aquela mulher como segurariam um animal selvagem, uma escrava fugitiva no 13 de maio de 2022, uma mulher preta e sem perspectivas que arrisca sua integridade física por migalhas que lhe permitam sobreviver até o dia seguinte - e que provavelmente já tem sua integridade emocional e psicológica destroçadas. Nossa bandeira jamais será vermelha como a camisa da mulher, mas nossas calçadas e periferias são desde muito - um vermelho muito mais vivo, de violência e morte. 

A mulher corre direto em minha direção, sua expressão com os dentes à mostra me chama a atenção. Não parece mascar chicletes, nem é cega. Seria um sorriso? Por que sorriria? Ela se insinua para minha esquerda, eu não indico nenhum outro movimento que o seguir caminhando. Ela atira o celular em meus pés, se desvia e foge. Eu não me viro para acompanhar seu trajeto, tampouco me abaixo para pegar o celular do chão. Ninguém ousa persegui-la também, para meu alívio. Seguimos todos a vida, como se aquela cena banal fosse... banal. 

A dona do celular pega seu aparelho, xinga a negra que foge: "vaca! Vacilona!". Depois me agradece. Eu não perco a oportunidade de devolver o impropério que julgo apropriado: "se seguir dando vacilo assim, vai perder o celular, mesmo". Ela agradece mais uma vez - tenho a impressão de não ter entendido quem é a vacilona da cena, mesmo depois de ter-lhe dito. 

Eu, definitivamente, não tenho certeza de ter feito com isso uma boa ação - ainda que se fosse o meu celular eu gostaria de não perdê-lo. Sigo meu caminho, estou a poucas quadras de casa, e a expressão indecifrável mulher preta que corre em minha direção numa tarde de frio e desalento me persegue e me perturba, como o cego que masca chicletes desde 1952, enquanto espera seu ônibus.


13 de maio de 2022

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Reencontro (e o tempo que passa numa velocidade que não consigo acompanhar)

A campainha toca, Guile pula de meu colo, Libertad fica alerta. É Luís - primeira visita que recebo em casa em 2022. Abro a porta, nos cumprimentamos, ele ainda de máscara. Ao tirá-la reconheço o Luís de sempre, em suas pequenas variações capilares. É ele quem me avisa do tempo: “Caramba, depois de mais de dois anos!” É isso: não foram duas semanas, e sim mais de dois anos sem nos vermos. Não é o Luis de sempre. É o Luís de 2022 - como eu também, sou o daniel de 2022.

Libertad corre para o corredor, assustada com o “estranho” - e não adiantou Luís tentar chamá-la. Guile, como é de seu feitio, vai se esfregar em suas pernas, todo “eu sou fofo, aproveite e me afofe”, cobrar seu tributo para que a visita sinta-se em casa. 

Não são duas semanas. Não são apenas as últimas novidades a contar e falar da vida, como sempre fazemos - durante a pandemia seguimos nos falando pela internet, mas um encontro real é sempre de outra qualidade, ainda mais com um grande amigo. Dois anos. Dele, sei que agora já é arquiteto e urbanista formado e devidamente desempregado - apesar do currículo. E muito iremos discutir sobre o ponto onde ele está e por onde poderia ir - eu, inveterado palpiteiro dos amigos. 

De mim... o que sei? Primeiro, que preciso perceber que muito tempo se passou desde que ele foi embora da última vez, avisando que voltaria no mês seguinte, quando as aulas da FAU começariam e ele passaria a dormir uma vez por semana em casa, como vinha fazendo há dois anos. Quantas coisas a contar em detalhes que só as mãos conseguem expressar. Libertad fica a espreitá-lo. O concurso entrado a fórceps, a transferência de um trabalho que eu gostava para um que não me faz sentido - e me faz sentir quase um parasita. Fim do relacionamento, início e fim de outro. O início de uma nova faculdade. A partida de César. Os planos mirabolantes de sempre - com os convites sem noção para ele se juntar a eles. A mudança para Pato Branco e a volta para São Paulo. A perda da minha mãe - mas antes disso, toda uma vida vivida em sete meses ali com ela e meu irmão, sabendo do fim e tentando viver como se a vida fosse seguir (e ela de algum modo segue, cá estou eu a escrever mais uma crônica). Ele sabe disso tudo, mas discutimos como se fossem novidades de ontem, da semana passada. 

Noto minha vida nesses dois anos foi de um bem-me-quer-mal-me-quer de inícios e fins. Início, fim, início. Fim, início, fim. Fim, início, fim. Início, fim, início. Fim. Início. Fim. Na volta do barco é que sente o quanto deixou de viver. E depois, nesse bem-me-quer-mal-me-quer da vida, cujas pétalas arrancadas nada tem a responder ou sugerir um caminho, vem o que? O início ou o fim?

Libertad se aproxima, ainda receosa, fica um tempo a observá-lo - e nós a ela, até que retomamos a conversa. Lembrei que certa feita Natália havia comentado que a gata andava com umas brincadeiras mais sofisticadas; alguns dias depois, ao entrar em casa, e vê-lo entretido brincando de esconde-esconde com Libertad, entendi de onde ela vinha se aprimorando - enquanto Luis ficava sem graça de ser pego em plena infância aos trinta anos. Libertad interrompe nossa conversa com miado alto direcionado a Luís: parece que lembrou, finalmente, de quem se trata, e agora pergunta se ele se lembra dela. Recebe um agrado de confirmação e a partir de então gruda nele.

Vamos entretecendo memórias, planos e angústias, entre discussões de músicas e política, eu preparando arepas (algo que aprendi a fazer em Pato Branco e que minha mãe apelidou de "xis-polenta"), e o mate circulando na roda curta de duas pessoas. Início-fim-início-fim. Recordamos da Copa de 2014 e o festival de pessoas vestidas fora da "normalidade", da padronização que a cordialidade brasileira exige: não foi mês passado, não? Início-fim-início.

Lembro da minha idéia de “sentir-se em casa”, que vai além do lugar, está nos afetos que fazem com que eu me sinta à vontade. Estou em casa duas vezes esta noite. Fosse antes, a conversa se estenderia madrugada adentro, mas eu preciso acordar cedo, para bater cartão - e ele já pela manhã pega o ônibus de volta. Fim-início-fim.

Nos despedimos ainda com muito assunto pendente. Fecho a porta. Libertad mia novamente, talvez indignada que Luis sequer brincou com ela. Fim. Eu vou me preparar para dormir. Me olho no espelho, reparo nos cabelos brancos, meus primeiros, que começaram a despontar há poucos meses. Início. Me vejo envelhecido como nunca antes me vira. Estou há dez anos em São Paulo, mas parece que faz, no máximo, dois. Fim-início. Quantos anos terão transcorrido no calendário no que senti como sendo a passagem de dois ou três meses? Inicio.


18 de abril de 2022

domingo, 3 de abril de 2022

Eu, Daniel Furlan do Tinder

Desde 2012 sou usuário contumaz de aplicativos de relacionamento, quando ainda eram sites - uso interrompido por um breve período entre final de 2012 e meados de 2013. Entrei no primeiro deles por influência de uma amiga, que tinha arranjado um namorado (hoje marido) a 400 km de distância. De início eu tinha vergonha em admitir, até ter que assumir que minha timidez e minha cara de paisagem sempre dificultaram qualquer aproximação do nada, fosse com o fim que fosse, salvo para pedir informações de endereço - seja eu com relação à pessoa, seja a outra pessoa com relação a mim (lembrei disso hoje, ao ir no teatro com uma amiga, e ela ter conversado com cinco pessoas aleatórias. Eu, mesmo quando estou sozinho, não vou além do boa noite pra quem me atende).

Voltando aos aplicativos. O único interregno que tive foi por conta de uma namorada arranjada em um deles. Nos demais namoros, mantive as contas abertas, mesmo que muitas vezes não as utilizasse. Não, não se tratava de cafajestagem, nem achar que o relacionamento seria breve: é que eram relacionamentos não monogâmicos. Sobre isso, preciso confessar: em vinte anos de tentativas, de seis relacionamentos “não mono”, apenas dois foram efetivos - , sendo um deles o mais longo que já tive. A explicação que certa feita essa ex deu para não estourar de ciúmes como as imediatamente anteriores (e a seguinte) é que ela tinha reconhecido que a impressão de eu estar dando em cima de todo mundo o tempo todo era fruto do meu jeito de tiozão do pavê precoce, e que, ademais, ela já tinha sentido na pele que quando eu estou de fato interessado na pessoa eu ajo como se não tivesse interesse (isso ajuda a explicar muita coisa do meu fracasso específico com mulheres, para além da cara de paisagem e da timidez). 

Nesses tempos de conta em aplicativo com namorada, como não pretendia impressionar ninguém, tratei de fazer uma descrição jocosa e avisar do meu relacionamento. Era muito comum que as garotas com quem dava o "match" começassem a conversa perguntando se eu não seria o Daniel Furlan, humorista da TV Quase e do Choque de Cultura. Eu imaginava que era por conta da minha descrição - que foi o que de mais engraçado escrevi desde o Trezenhum. Humor sem graça (que, sem falsa modéstia, ainda acho muito bom! Até desacredito que era eu quem escrevia. Por sinal, ainda tenho alguns exemplares para venda) -, e se tratava apenas de uma forma de dizer que além de homônimo e de idade próxima, eu parecia engraçado, se utilizando de uma referência hipster na classe média descolada. 

Findo o último namoro, retomo com mais afinco os aplicativos e resolvo fazer uma apresentação mais séria. Nada mais de "Pensa num cara bonito, inteligente, companheiro, trabalhador, bem de vida, empático e simpático, bom de cama, alto, corpo em forma, bem humorado, alto-astral, compreensivo, excelente cozinheiro, com ótimo gosto musical, que sabe escolher vinho. Pensou? Agora mantenha o otimismo e o pensamento positivo aí, que eu aqui também vou estar torcendo pra que um cara assim seja o próximo perfil a aparecer!": agora eu digo a que venho, o que busco e o que não sou (para não ter cobranças depois de propaganda enganosa). 

Mas eis que dos poucos "matches" - ainda mais se comparado ao tempo em que eu namorava -, muitos seguem começando a conversa com a pergunta se eu não seria o Daniel Furlan. Dessa vez não entendo o porquê. Até uma delas revelar sua frustração quando respondi que não, eu não sou o Daniel Furlan (nem o famoso, nem o não famoso, por sinal, filho do meu professor da faculdade): contou que me achou parecido com o humorista, e deveras acreditou que eu fosse ele, pela aparência.

Fiquei também eu frustrado com a conversa com a guria: antes eu achava que estava até sendo engraçado e reconhecido por isso, mas o quê!, estavam apenas me confundindo (de novo) com alguém famoso. E com o Daniel Furlan, ainda por cima! Nem para ser com o Tom Cruise ou Brad Pitt (pelo tamanho da napa, que fosse). Talvez eu devesse tentar retomar o humor.


03 de abril de 2022 

domingo, 6 de março de 2022

Meus refúgios quotidianos

Desde longa data busco locais de refúgio quotidiano: algum canto onde, por algum instante, o tempo caduca e o peso do mundo e a densidade da existência parecem dar uma breve trégua, um respiro. 

Na minha adolescência, em Pato Branco, achava esse refúgio em meu piano e nos Beethoven e choros mal dedilhados que eu tocava. Em Ribeirão, encontrei nos pores do sol vistos do alto, da sacada de onde morava, enquanto tomava chimarrão (hábito adquirido não fazia muito, em minha primeira viagem a Buenos Aires) e ouvia Radiohead; era também a praça Camões, nas tardes de sol dilacerante. Em Campinas meus refúgios foram uma mureta do IFCH, onde professores alunos e funcionários circulavam dando ao ambiente um ar de aquário humano; o pôr do sol no vão da Biblioteca Central; por um tempo foi o brincar com tintas, ainda que tivesse o mesmo talento que tinha para música; e, em um breve período, o fim de tarde em companhia de uma garota (a quem até hoje vejo como um marco em minha vida, quem pôs fim a quem eu havia sido até então e me empurrou para quem eu seria a partir da relação com ela). Já em São Paulo, era um lamento constante não ter encontrado esse refúgio, até que em uma das últimas conversas com minha mãe me dei conta de que eu o possuía, sim: são alguns de meus caminhares a esmo pela região central da cidade - solitário ou acompanhado.

A percepção desse refúgio em movimento em São Paulo se deu justo quando estávamos nós - eu ela meu irmão - caminhando pelo que foi nosso refúgio nesses sete meses em que voltamos a morar juntos em Pato Branco - até a partida de mãe -, a rua Salvador. 

Chegamos a ela sem querer - fica há quatro quadras de casa e creio que nunca havíamos passado por lá antes. Voltamos a ela seguidamente, sempre que mãe sentia que tinha força suficiente para subir um morro (moramos num vale, cercado por pirambeiras pra todos os lados que não em direção ao centro da urbe), sempre no fim de tarde, o sol já se pondo atrás da cidade. 

Trata-se de uma rua curta, simples, bem cuidada, estreita e plana (o que é incomum para a cidade), com casas de uma classe média conformada, sem luxo nem carências nem disputas ostentatórias, em geral com quintais muito arborizados. Começa com um terreno baldio de um lado, do qual mangueiras, bananeiras e abacateiros invadem a rua com seus galhos; e uma araucária do outro, onde agora moram as curucacas que viviam no terreno de casa, até termos que cortar nossa araucária de estimação (que corria risco de cair e não tinha como salvá-lo), em 2015, pouco antes da partida de pai. Logo a seguir, um bambuzal numa simpática (e típica) casa de madeira, com uma bomba d'água manual no quintal. Termina numa rua particular, com hortências de um lado da rua, árvores do outro, até chegar a uma casa e depois dela, a plantação de soja (isso a um quilômetro do centro da cidade). 

Talvez seja de fato uma rua simplória e sem graça, mas ao subirmos lá, com mãe encarando o cansaço da doença e do tratamento, ganhou contornos mágicos para nós. A mim, parecia saída de uma animação do Miyasaki, cujo dourado do sol se pondo carregava ainda mais essa impressão. A qualquer momento eu esperava por um dirigível ou uma bruxa a passar sobre nossas cabeças ou um totoro esperando pelo ônibus. Mas não presenciamos mais que o ordinário: plantas, flores, frutas, bambus, araucárias, aves, saguis, preás, pessoas, carros, casas, pores do sol. E desse ordinário, na companhia de minha mãe e meu irmão, tecemos nosso último refúgio comum, onde a doença dava uma trégua, a contagem regressiva do relógio parecia se interromper e discutíamos a necessidade de pedir para pegar um ramo daquele bambu amarelo e plantar no quintal da nossa casa; ou de cogitar se as curucacas voltariam para nosso terreno quando o pinheiro que tem lá crescesse mais. Um refúgio onde compartilhávamos um afeto tranquilo, suspenso das preocupações mais urgentes e aflitivas que a doença impunha, onde fazíamos planos para o futuro e combinávamos quem faria o jantar daquela noite.


01-06 de março de 2022


PS: termino de revisar esta crônica numa noite de domingo, o terceiro domingo que passo em São Paulo este ano. Diante de mais uma tarde que vai se preenchendo de ausências e vazios (como tantos inícios de noite da semana dita útil), noto outro refúgio que tinha desde que saí de casa, há vinte e dois anos, e cuja função me passara despercebida: a conversa por telefone com meus pais. Talvez eu precise achar um jeito de seguir a sugestão feita por mãe, dois dias antes de completar seu ciclo: contou que sempre que sentia necessidade, pedia "colinho" para seu pai e sua mãe. Questão é como conseguir fazer essa chamada a meus pais, encontrar seu "colinho".

PS2: pesquisei no Google Street View. As fotos são de 2011, uma rua sem graça, anódina

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Eataly, uma experiência

Meu irmão e sua companheira estavam em São Paulo e decidiram conhecer o Eataly, uma vez que estávamos perto. Eu nunca havia ido lá, mas diante do convite resolvi aproveitar a oportunidade. Não que eu tivesse tido qualquer interesse algum dia, ou que tivesse surgido na hora, diante da possibilidade iminente: fui só para acompanhá-los, mesmo - até porque achei que seria um bom momento para ir a um mercado caro: como havíamos acabado de almoçar, os riscos de cair em tentação diminuem drasticamente. Diante das minhas baixíssimas expectativas, devo admitir que fiquei surpreso com o local, a ponto de querer compartilhar aqui com minha meia dúzia de leitores eventuais - eu que não sou adepto de resenha de consumo.

O mercado está localizado em região nobre da capital, perto da radial oeste - mais conhecida por avenida Faria Lima. Ao chegar, fica evidente um primeiro problema: não há serviço de vallet (não logo na entrada, pelo menos). Uma coisa é o prazer de dirigir que Doria Jr e sua versão sem sapatênis que ocupa o Palácio do Planalto sempre apregoam, outra, muito diferente, é fazer baliza. Enfim, como eu não sei sequer dirigir, e fomos à pé, não me alongo neste tópico, mas achei importante constar.

Como não se trata de um mero mercado, é mais que um mercado (como não pensaram neste slogan? Chama que faço um preço camarada pelo direito de uso), ninguém vai lá para fazer compras ou uma refeição: vai para ter uma experiência - e postar no Instagram, claro. 

Para fazer o distinto público se sentir na Itália, frases em italiano nas paredes e nomes em italianos para os produtos. Só o banheiro tem nome francês - e eles até pedem desculpas por isso. Ok, esse lapso passa - mas só porque na porta está "uomo" e, desconfio, mulher em italiano no banheiro feminino (que fica depois do masculino, por isso não fui conferir). Por falar em banheiro, achei a qualidade muito próxima da de banheiro de aeroporto, ou seja, já vi banheiro de shopping muito melhor. 

O sorvete que meu irmão comprou antes de sairmos não era um sorvete, mas um gelato, com preço de dois litros em um copinho de duzentos mililitros. Ao ser entregue em suas mão, como um aviso de que estava prestes a ter outro nível de experiência, ele não recebeu um desnecessário "bom apetite" ou "bom proveito" da atendente, mas um desnecessário e brega "buono gelato". Poderia ser pior? Poderia, mas não me vem nada à mente agora.

Claro que a atendente do buono gelato, assim como várias outras funcionárias e funcionários e os seguranças atendiam aos padrões tupiniquins de democracia racial: eram negros, servindo brancos e alguns asiáticos, todos em perfeita harmonia, mostrando aquilo que Kamel sempre repetiu: não há racismo no Brasil. Não que na Itália e na Europa não tenha racismo ou tenha um racismo do bem, apenas acentuo as cores tropicais que o mercado soube tão bem marcar.

O espaço do mercado não é muito grande, mas ainda é maior que o do Mercadinho Tem de Tudo, que fica aqui na esquina de casa - e que recentemente teve uma reforma, perdendo um bom espaço nos fundos, adaptado para duas quitinetes, digo, studios para locação -, e com uma variedade um pouco maior de produtos, todos importados: café italiano, vários tipos de azeite da mesma marca, água mineral islandesa e água de côco do Sri Lanka. Uma versão com metade das coisas, tudo pelo dobro do preço, do que é encontrado na rede de quitandas que pertenciam ao seu Abílio - o parâmetro de mercado chique que eu tenho para comparar. Destaque para o ovo de galinha a R$ 44,00 a dúzia (e pensar que até esta semana pegávamos o ovo ainda quente das galinhas na casa de minha mãe, a um custo razoavelmente mais baixo).

A parte de bebidas parece maior, mas na verdade se trata de muitas garrafas dos mesmos produtos dispostos de maneira a dar a impressão (e todos, sempre, pelo dobro do preço que se acha por aí). Há algumas bebidas que eu não havia visto nem mesmo na zona cerealista, como uma grapa de R$ 1.299  (esse número mostra o público que frequenta - classe média a prestações sempre flertando com o rotativo do cartão pra garantir a boa aparência) numa garrafa que passa a impressão de muito frágil, esperando o primeiro desavisado pegá-la e ser obrigado a pagar porque a quebrou. Achei uma boa estratégia de vendas para um produto como aquele. Em tempo: não achei sequer um conhaque Remy Martin Louis XIII, um Henessy Richard ou algo nessa faixa. Ou seja, nada de bebida pra rico.

Mas se o mercado não é nada demais, as lanchonetes, cantinas, caffetteria, snack bar, bagulhos de comida, sei lá como chamar, parecem ser do mesmo nível. Não sei da qualidade do que ali é servido, só que certamente não valem o preço que é cobrado. Mas se tem otário disposto a pagar vai ter esperto disposto a oferecer. E se fizer uma publicidade com conto da carochinha para adultos infantilizados - qualquer besteira, como inventar que as vaquinhas ganham beijo de boa noite antes de dormir, para darem leite feliz na manhã seguinte -, dá pra acrescentar ainda mais 20% no valor. Parafraseando Racionais MC's: o novo rico sai da praça de alimentação, mas a praça de alimentação não sai do novo rico.

Em suma: minha experiência antropológica no Eataly durou cerca de vinte minutos, foi tempo demais.


19 de fevereiro de 2022

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Casa vazia - retorno melancólico a São Paulo

Volto para São Paulo, para tomar a dose extra da vacina - não que Pato Branco não tenha, mas é tão organizado e bem divulgado que é quase como se não tivesse -, encontrar alguns amigos e pegar algumas coisas úteis que deixei para trás em minha saída às pressas, há quatro meses, com dez dias para organizar o que foi possível e ir acompanhar minha mãe em seu tratamento de saúde. 

Abro a porta do apartamento e sou tomado pelo familiar, pelo aroma característico de minhas casas - que uma ex-namorada certa feita definiu como misto de tênis pé com naftalina, talvez este cheiro vindo de tantas memórias guardadas, já que o antitraça mesmo, não tenho. O segundo momento é de estranhamentos. Primeiro, da ausência de meus gatos (que ficaram em Pato): chegar sem tê-los para me receber fez eu sentir a casa vazia como nunca sentira antes. Depois, das pequenas mudanças na ordem dos móveis: por um mês uma amiga ficou em minha casa (o plano era que ficasse enquanto eu estivesse fora), e também saiu às pressas, devido a questões pessoais. São pequenas alterações, nenhuma significativa, mas o suficiente para me lembrar: estive um tempo ausente, muita coisa aconteceu lá fora, e mesmo aqui dentro as coisas não são como antes.

Passo praticamente uma hora apenas respirando essas mudanças. Algumas dou conta de saber onde estavam antes, outras, simplesmente não consigo achar onde era seu lugar. O sofá da sala está mais para o centro, o arranhador dos gatos virado 90°, a mesinha de centro no centro da sala - mas encostada em que parede ela ficava antes? -, a espada de São Jorge longe da janela, a rede, recolhida. A cômoda do quarto em outra parede, o boneco para desenho de observação longe dos quadrinhos que ganhei da Dani e do Felipe. O banheiro sem os apetrechos dos gatos parece descomunalmente amplo - e demoro para me dar conta do que causava essa impressão. Na área de serviço estão os tapetes da casa (vários deles deixados pela antiga dona), não sei se limpos ou por lavar - seu cheiro é o mesmo de todo o resto da casa -, e uma profusão de caixas de papelão que deixo para os gatos: só então noto que a casa está limpa de todos esses cacarecos para os bichanos. Minha kombucha ainda está viva, um pacote de macarrão aberto fez uma prateleira se infestar de carunchos. Penso em Meio Sol Amarelo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Por ora a comparação é desmedida: a urgência se deu por motivos pessoais, mas se e quando toda essa guerra que se arma pelos fascistas de variados matizes estourar, meu regresso ao lar de São Paulo será apenas para uma casa vazia e com carunchos? Terei ainda uma casa? Ou terão queimados meus livros em praça pública, juntos com de tantos "comunistas", como fizeram com os 30 mil exemplares de Álvaro Linero, vice-presidente da Bolívia, em 2019?

Preparo um chimarrão. A cuia que uso é a mesma que aprendi a tomar mate - argentino -, em 1997, e ganhei de presente do Celestino quando me mudei de Pato Branco. As aulas no colégio em frente voltaram - trocaram o sinal, puseram o hino nacional no lugar de O Barbeiro de Sevilha -, mas as galinhas do pátio da escola, não. Coloco uma música para me acompanhar na solidão que me toma - a sequência mantém o clima nostálgico: Mogwai, Clap Your Hands Say Yeah, Songs: Ohia, Verve, Galaxie 500, Blick Bassi, Cícero - recordo que quem mo apresentou foi a Misson. 

Noto a ausência do cinzeiro que ela comprara para quando fumasse em minha casa - depois da sua partida utilizado como vaso para meu cacto, e após ele morrer também (tinha 19 anos), apenas uma recordação de enfeite enquanto espera novo uso. Encontro-o no armário dos pratos - e me questiono como terá sido sua ressignificação pela minha amiga. Na pia, uma caneca da Rosa Luxemburgo esperando ser lavada: "quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem". Eu complemento: quem se movimenta apenas no espaço que lhe é autorizado, também não. Às vezes o movimento não precisa ser no espaço físico, pode ser intelectual, pode ser da memória. Passeio entre lembranças, vazios e medos - que me prendem, os três. A mochila que deixei no sofá e uma sacola preta largada na porta do banheiro mais de uma vez fizeram com que eu visse Guile dormindo e Libertad à espreita. Mas estou sozinho. Será que eles também sentem essa ausência toda quando estou fora? Apresso minha saída para tomar a vacina - saberei logo mais, no caminho, que, apesar do bonito céu plúmbeo, será uma caminhada melancólica e ressentida por entre recordações, desejos e questões mal resolvidas.

13 de dezembro de 2021.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Uma tarde preguiçosa

A tarde é preguiçosa. Há um ar de feriado na casa, apesar de lá fora estar estipulado que é dia de trabalho, com as máquinas das construções em volta a abafar o som dos pássaros - ainda assim, há pouco escutei uma revoada de quero-queros. Com a internet fora do ar, meu irmão está a jogar computador - já foi fiscalizar se suas galinhas seguem todas no quintal: seguem. Minha mãe tira a sesta habitual - vai acordar daqui a pouco para a hora da fruta, três da tarde, tal qual meu avô fazia. Esqueceu a porta  do quarto aberta e Guile, meu gato, se abancou ao seu lado, guardando prudente distância para não acordá-la e ser posto para fora da cama. Minha outra gata, Libertad, dorme no sofá ao meu lado, na sala de visitas - que apesar do nome, poucas vezes foi utilizada para esse fim -, enquanto eu me espicho no sofá mais velho da casa, com mais de trinta anos, e o mais confortável também - e lembro ainda indignado que minha mãe deu as outras duas poltronas que compunham o jogo, assim como indignado fico quando lembro que meu pai deu o rádio três-em-um da National, de 1976, em perfeito estado. Na impossibilidade de assistir às aulas online, me deixo levar pela Isabel Allende, e seu A casa dos espíritos. A escrita doce da chilena me inspira a escrever também - ainda não cheguei na parte de decadência que se anuncia para o último terço. Diferentemente da do romance, a casa de minha mãe não fica na esquina, mas bem no meio da quadra, e nunca foi lugar para serões nem encontros sociais. O mais próximo disso deu-se por obra dos filhos, na infância, a trazer os amiguinhos (dos quais hoje não me resta nenhum), e das visitas de parentes (boa parte uma classe média a prestações e incompente que age como se fosse Esteban Trueba), também coisa de um outro tempo, de um outro mundo - vários dos quais ainda seguem vivos, infelizmente, e assombram feito almas infernais com ameaças de visitas cheias de ódios e nesciedades, que repilo com menos violência que, calado por anos, presenciei em suas palavras contra nordestinos, negros, pobres, gays, presidiários, maconheiros, políticos, comunistas, petistas (como meu pai, que preferia ficar quieto a se rebaixar a discutir com "panacas", como ele qualificava, numa sonoridade de tapa no PAnaca). Bem que Clara havia dito à Blanca que são os vivos, não os mortos, que devemos temer. Por mais que a casa tampouco tenha tido espaço para o sobrenatural, pergunto que espíritos poderiam estar a povoá-la agora. Meu pai, meu avô, os bichos de estimação que tivemos. Meu eu criança também vaga por aqui, creio. Desconfio que esteja lendo o livro por sobre meu ombro, pensando que achava mais legal quando em uma tarde assim eu passava vendo desenhos animados ou brincando lá fora: um tempo em que ao olhar pela janela eu tinha uma ampla visão do céu, entrecortada apenas por árvores, e não esse céu esquadrinhado por prédios de gosto de duvidoso e necessidade contestável - salvo a necessidade de enriquecer os ricos empreiteiros deste sertão latinazi de futuro estéril. Lembro que durante minha infância, da janela da cozinha, antes dos prédios brotarem como formigueiros, se as árvores não estivessem muito grandes, víamos o relógio da igreja matriz - assim como ouvíamos seu badalar a cada quinze minutos. Hoje não é possível vê-lo nem escutá-lo - mas se fosse possível, seria sem utilidade, já que está parado na hora errada desde que Frei Policarpo morreu.

27 de outubro de 2021


PS: Foto tirada três horas depois da crônica.