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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O espelho - a pequena farsa entre policiais militares e ambulantes

Vejo algo de um patético respeitoso na forma como se dão as relações entre ambulantes e policiais militares no centro de São Paulo. Parecem entrar no mesmo registro do médico que desfila de branco (quando não com estetoscópio no pescoço) no shopping, exalando divindade, ou do crente evangélico no vagão do metrô, arrogante em seu terno de corte e tecido vagabundos. (Parênteses: sem dúvida esse patético respeitoso é mais saudável para ambos os lados do que na gestão Kassab, em que guardas-civis municipais prendiam tocadores de violão (apesar que tem uns que bem mereceriam) e corriam com arma em punho atrás de perigosos vendedores de capas para celular e bichinhos de pelúcia). Aos que não são de São Paulo ou nunca presenciaram a cena: estão os ambulantes com seus devedês, capas para celular, massageadores e o que mais tiver expostos na rua; policiais militares, em geral em dupla, vêm caminhando lentamente pela calçada. Há um corre-corre entre os ambulantes, que recolhem atabalhoados os produtos, como se corressem grande perigo. Alguns caminham até a próxima esquina, outros se escondem da visão dos policiais atrás de bancas de revistas ou de ambulantes regularizados. Mal passam os homens da lei, os vendedores voltam aos seus antigos postos. É óbvio que os militares em questão não estão fazendo o papel de rapa, não querem prender ninguém por comércio irregular. Mas me perguntei hoje, quando vi a cena no calçadão da Barão de Itapetininga, na República: e se os ambulantes ficassem quando os policiais passassem, seriam presos, teriam suas mercadorias confiscadas? Creio que sim. Não para mostrar serviço, nada disso. Oficialmente seria por comércio irregular, mas o motivador de fato seria o desrespeito pelos mantenedores da ordem: estamos cá passando, na autoridade de nossas fardas, e vocês acham que não valemos nada, nem dois minutos de interrupção dos seus negócios? O que resta, afinal, é uma pequena farsa do nosso processo civilizatório estancado a meio caminho: ambulantes se escondem fingindo preocupação autêntica, os militares desfilam como se sua autoridade fosse respeitada plenamente, os transeuntes assistem sem maior comoção. Me lembrei do conto do Machado de Assis "O espelho - esboço de uma nova teoria da alma humana", publicado em 1882 - antes da república, antes da abolição. Não acredito que Machado tenha sido um visionário, antes, nós que ainda não superamos aquela condição por ele retratada há mais de cem anos: um país que nunca viveu como uma comunidade (após a chegada européia) e cuja sociedade até hoje é constituída por castas e corporações, disfarçada numa pretensa mobilidade social - cujos exemplos máximos e quase únicos são o ex-metalúrgico que ascendeu à presidência e o ambulante que virou dono de emissora de tevê (semelhanças com espetacular concentrado e difuso é coincidência). O cidadão só tem direito a ser sujeito a partir do momento em que veste algum insígnia: médico, juiz, advogado, policial, fazendeiro, pastor, novo-rico ou, na ausência de um cargo com valor social, a ostentação da graça dos eleitos para o reino de deus (e congêneres). O fato de ser uma pessoa, sem maiores adjetivos, não dá valor nenhum ao indivíduo - seja padre, empresário ou pobre. E enquanto nossa sociedade admira exemplos burlescos de homens de sucessos, policiais militares desfilam o pouco de valor que suas fardas os imbuem para os desvalidos de tamanha sorte.


São Paulo, 06 de agosto de 2014

domingo, 20 de abril de 2014

Androgyne: a sagração da máquina, a resistência do fogo.

Um homem atrás de mim disse que sentiu angústia diante do que havia presenciado. Ainda que não seja exata, essa talvez seja a melhor palavra para explicar o aperto no estômago que me deu "Androgyne - Sagração do fogo", solo de Alda Maria Abreu, da Taanteatro Companhia. Pelo título da obra, era de se esperar uma discussão da questão de gênero, da indefinição entre o ser homem e ser mulher. 
E é essa a primeira impressão, quando Alda surge no palco em traje masculino, proletário, do início do século passado: calça terno e boina. Essa primeira impressão dura pouco: o olhar vidrado, o sorriso baço, o gestual rígido, a maquiagem nas mãos ampliam a questão daquela pessoa de difícil definição: homem ou mulher? Adulto ou criança? Humano ou boneco? Pessoa ou máquina? O som de bebê, distorcido, repetido, metalizado, enquanto a dançarina desaparecia no palco totalmente escuro, anunciava o nascimento do sujeito do futuro (ao menos para os padrões do século XIX, ainda vigentes, embora disfarçados): o homem-máquina. 
O humano a serviço da máquina (literalmente falando, mas também da "máquina social"), muito bem definido em seus papéis. Três projetores projetam trés sombras de ângulos diversos, sombras duras, muito bem definidas, em que é possível ver os fios de cabelo de Alda. Contornos precisos como precisos são os movimentos a serviço da máquinas; contornos rígidos como rígida é a moral exigida para o bom andamento da máquina (do organismo) social; triplo em seus papéis, mas todos delimitados, separados, divididos - ainda que advindos do mesmo sujeito. A formação do sujeito - a disformidade do humano. A criação de um monstro?
Em dado momento o duplo de Alda deixa de ser mera sombra: numa projeção em vídeo, vemos ela tirar seu paletó em meio a natureza. Ela acompanha o gesto do palco, adentra a tela e some. Alice através do espelho? Fuga para a fantasia? Alda sugada pelo espetáculo? Ou o contrário, ela para fora da máquina espetacular? No vídeo a ampliação do conceito de androginia para a androginia homem-máquina ganha outros aspectos: androginia homem-animal e homem-natureza. O clima tenso persiste, enquanto assistimos a essa perda de identidade humana: Alda se zoomorfiza, se desfaz do ser na lama. A impressão que dá é que o vídeo é longo, não por ser chato, mas por ser mais angustiante (aquele aperto no estômago) do que a dança. 
Alda volta. Nesse seu retorno não há mais polaridades, dicotomias, seja com a máquina, seja com o gênero, seja com a natureza. Seu corpo perde o fato sisudo e ganha cores pintadas pelas luzes. As sombras deixam de estar separadas, se misturam, perdem os contornos rígidos, e ganham elas também cores. Não chega a ser uma redenção - antes um existir livre de definições, de carapuças, de amarras, de correntes. Alda é tudo e por isso nada a define nesse estado. Por isso mesmo Alda é um perigo: o anti-cristo, como simbolizada na sua crucificação de ponta cabeça com uma cruz com Cristo projetada ao fundo. Um julgamento religioso-moral-social a tira dessa existência indefinida (mas plena). Ela só tem direito de existir enquanto definida, delimitada - a androginia homem-máquina. Voltam as luzes dos projetores, as sombras duras, porém falta o corpo dócil que se deixa definir. Há um corpo que se contorce e se retorce, incapaz de ser menos do que é, e não projeta mais do que a sombra de uma massa amorfa - um isso que um dia teve a potência de ser sujeito, mas que a sociedade sujeitou a ser uma forma dócil delimitada em fôrmas impostas. 
Numa constelação de possibilidades, a forma de não se entregar é se consumir como papel no fogo.

São Paulo, 10 de abril de 2014. 


Teaser Androgyne from Paulo Bueno on Vimeo.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Quatro histórias a caminho do nada

Quatro cineastas de diversos estilos - o sucesso de bilheteria, o cult, o acadêmico, o amador. Quatro cineastas que, em algum momento, passam a fazer seus filmes a partir de suas vidas - tentam construir uma obra artística, não um produto da indústria cultural. Vidas que influenciam nas obras, obras que influenciam nas obras: o cenário de "Cineastas", do argentino Mariano Pensotti, apresentado no primeiro MITSP, é dividido em dois: na parte de baixo, a vida real; na de cima, o filme realizado por cada um dos cineastas. A divisão é clara e não permite mistura de ficção e realidade, por mais que se queira - a filha de um desaparecido político obrigada a filmar o roteiro de um desaparecido que retorna trinta anos depois não reencontrará seu pai morto; os objetos de um cineasta à beira da morte, uma vez filmados, não correspondem aos objetos em seu contexto. Personagens não descem, vidas reais não sobem. Em baixo a vida, em cima a representação, e a criação de um duplo, o ficcionar a partir do seu quotidiano, faz com que um ficção e realidade se influenciem, porém não se imiscuam.
O cenário de cima - o da ficção - desde o início é nu: precisa ser assim para poder ser composto com elementos de cena, postos e tirados ao sabor dos roteiros e de suas mudanças. O cenário de baixo, por seu turno, começa bastante carregado - mesas, cadeiras, caixas, poltronas, quadros, plantas - e vai se esvaziando conforme os quatro cineastas têm suas vidas abaladas, e junto com elas os filmes que estão rodando. O desnudar do palco pode ser uma alegoria do desnudar de cada um dos cineastas dos penduricalhos de sua vida, em busca do que realmente interessaria - seus ideais, suas origens, seus passados, seus futuros. No fim, cenário do filme e da vida real se equivalem: cenários nus iluminados por luz de serviço. A equivalência entre ambos deixa clara a invasão da ficção na realidade: o cenário nu não releva uma pretensa essência, antes uma verdade: a mentira de tudo, a espetacularização da vida, à moda do cinema. O um dia exemplo de bem sucedido gerente de McDonald's se dá conta de que é um Zé Ninguém facilmente substituível; a filha de desaparecido é obrigada a aceitar que seu pai está mesmo morto; o cineasta que vai até o cinema de sua infância se depara com um culto evangélico - pastiche de rituais de uma época que não existe mais -; a filha adotiva de uma família descendente de russos vai até a Rússia e encontra a vila de seus antepassados exatamente da forma como imaginava, exatamente como há um século, a mesma estrutura das casas, os mesmos rituais... para logo descobrir que é tão-somente um cenário de um seriado de época, e se ver em meio a uma festa eletrônica comemorando o fim das filmagens.
Por quanto entregamos nossos ideais? O quanto deixamos nossos sonhos serem ditados desde fora, por alguma espécie de deus ex-machina - mesmo sabendo da sua existência e do seu funcionamento? Nossa essência desnuda possui algo de nosso - possui algo? "Cineastas" pode ser vista como uma leve comédia para o fim de domingo. Pode ser vista também como um profundo questionamento do vazio de nossas vidas - de nossas vidas vazias -, preenchidas com ficções que não nos dizem nada.

São Paulo, 17 de março de 2014.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Sensibilidades extras

É algo que me admira, e tento entender o que faz com que uma pessoa tenha uma sensibilidade extra, seja capaz de captar como que intuitivamente certas coisas que as demais levam tempo e/ou estudos para formular. Tempos atrás uma amiga fez com que eu recordasse que eu tinha um pouco dessa percepção, quando pré-adolescente (Mafalda já se questionava o porquê dos adultos insistirem em reconhecimento tardio). Meus amigos sempre falavam de carro, de qual iriam ganhar quando fizessem dezoito anos ou entrassem na faculdade. Lembro de um deles, com dez anos, me contando (estávamos sentados no meio-fio, num fim de tarde alaranjado) que ganharia um Kadett quando passasse em medicina. De minha parte, preferia uma moto. Não que preferisse moto a carro, pelo contrário, porém meu raciocínio era: com o dinheiro para comprar um carro popular dá para comprar uma moto mais simples da BMW, ainda assim uma BMW. Muitos anos depois fui entender o que eu dizia ali: carro não era para transporte (eu morava em Pato Branco, quase todo lugar que eu precisava ir, poderia ir "de a pé"), e sim para valorização da minha imagem: assim sendo, uma moto BMW me tornaria alguém melhor do que um Gol, um Uno, um Kadett. Enfim, minha amiga. Tempos atrás me contou que iria comprar um celular de mais de mil reais, porque assim ganharia respeito das demais pessoas. Um raciocínio tosco, sem dúvida, mas não por achar que seu valor como pessoa estaria num celular caro, e sim por dizê-lo abertamente, sem nenhuma desculpa cretina que inventamos para justificar uma compra que só se justifica pelo fato de não nos darmos valor e aceitarmos o discurso publicitário (aquele que diz que não valemos nada se não tivermos e ostentarmos). Não se troca de carro, celular, roupas, computador todo ano por causa de controle do rádio no volante, meio mega pixel a mais de resolução, um giga de memória ram, a gola em v. Troca-se porque aceitamos o discurso de que só existimos e somos alguém na medida em que consumimos, e tanto mais alguém seremos quanto maior o valor do penduricalho inútil que compramos, justificado por justificativas hipócritas e socialmente aceitas. Este caso me fez lembrar de minha primeira namorada, uma das pessoas mais sagazes com quem já tive contato. Sagaz e inteligente, sempre invejei sua percepção - desperdiçada no que eu entendia como um auto-boicote cruel. Certa feita seus pais a puseram para ler três revistas semanais, para ela "se informar" (não falariam em ficar "menos alienada", porque isso é discurso de esquerdista). Ela tinha dezoito anos na época, e quando começou a falar das impressões das reportagens e do que elas tratavam, fiquei embasbacado: sabia que nunca tinha lido Adorno ou qualquer outro teórico da indústria cultural, mas foi capaz de sintetizar muito do que esses figurões diziam com três revistas! Ah se eu tivesse metade da sua capacidade... Parece que esse tipo não se anima com a universidade e a pesquisa, e se cursa um curso superior é só à medida que necessitam para conseguir determinado emprego. E por falar em capacidades e ex-namoradas (faço aqui justiça às demais "RAS" que, apesar do gosto duvidoso, tinham todas inteligências e beleza acima da média, muitas que se auto-boicotavam também), não sei se é só comigo, mas me impressiona como percebo logo no primeiro encontro se o rolo é sério ou não - sempre com acerto (o que pode significar relacionamentos breves, ainda assim profundos). Deve ser algo da tal "postura corporal racional-pré-racional" que digo querer estudar num eventual doutorado. Para concluir este texto, que foi me abrindo recordações e reflexões inesperadas, volto à minha amiga e seu celular de respeito: menos de um mês depois foi assaltada e levaram justo seu celular; foi obrigada a voltar ao velho aparelho e tentar ganhar respeito um pouco por o que é.   

São Paulo, 21 de janeiro de 2014.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Rachel Sheherazade: a nova geração de falsos polemistas.

O título na internet me chamou a atenção: "Sheherazade diz que já foi de esquerda e defende Feliciano",junto uma foto de uma mulher classicamente bem vestida. Que raios é Sheherazade? Me pareceu nome artístico de atriz pornô (ou ex, pela foto. Procurei, não achei nenhuma, mas que soa um bom nome, soa). Cliquei na notícia. Trata-se da apresentadora do jornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, de quem tive conhecimento há pouco - apesar de estar há três anos como apresentadora nacional -, quando vi o vídeo de um amigo contra-argumentando seus comentários sobre a legalização da maconha no Uruguai. 

A reportagem que li é de Mônica Bergamo, para a Falha de São Paulo, e traça um breve perfil da apresentadora, "famosa pelos comentários polêmicos", segundo a jornalista. Talvez a polêmica maior de Rachel seja poder demais para pensamento "demenos": ela não se restringe ao senso comum classe-média, como Ricardo Boechat, seu concorrente da Band; ela vai além e abusa de preconceitos. E não digo isso só pela sua defesa do deputado e pastor Marco Feliciano que, segundo ela, sofre "perseguição religiosa" por sua incitação ao ódio. Falo também do preconceito com a cidade, com pessoas pobres, quando diz que tem medo de violência urbana e que, a não ser para trabalhar, raramente sai de Alphaville, e quando sai, é para ir a shoppings (talvez não mais com o risco da turba querer utilizar esse espaço). Trata-se de outro bom exemplo do nível do que a Grande Imprensa apresenta ao grande público como formadores de opinião, pensadores, intelectuais: pessoas com formação superior (para dar legitimidade), uma capacidade de refletir rasteira, uma capacidade de argumentar precária, e uma retórica afiada para inflamar paixões. É da geração que substituirá Jabor, Leitão, Boechat, Waack, Azevedo, Mainardi, Bueno e outros, que cria polêmica para ter ibope, e não aquela polêmica que leva a repensar pontos estabelecidos. O pior é que, como formadora de opinião, trata-se de um modelo de postura - fechada ao diálogo, dona da verdade, recusadora da reflexão, desmerecedora do Outro - que provavelmente será seguido por muitos.

Outro ponto do perfil que me chamou a atenção é quando fala da sua orientação política: "eu era de esquerda. Votei no Lula até ele ser eleito. Me decepcionei com o PT (…). Com minha maturidade, passei a ter posicionamentos mais de direita do que de esquerda". O PT parece ser o álibi mais fácil e em voga para supostas mudança de lado. O que esse argumento mostra, antes de tudo, é a precariedade do pensamento, que aceita desde a identificação de um partido com uma linha política até a escolha binária, é isso ou o contrário. Nuances? Possibilidades fora do que é dado? Crítica ao sistema representativo que gera esquerdas e direitas tão próximas? Nunca!

A pretensa mudança de lado, na verdade, me parece ser o desvelamento do conservadorismo inerente aos habitantes da "sociedade do espetáculo". Ao ferimento do seu narcisismo, à aridez de um mundo que não é a Terra do Nunca que os pais disseram que era, os antigos jovens bem de vida e de esquerda se tornam adultos bem de vida e maduros. Quantos ex-presidentes, escritores, intelectuais, professores universitários e mais um sem número de pessoas que se crêem ilustradas, não enchem o peito para falar de antigamente, das lutas revolucionárias, dos conflitos com a polícia ou com a autoridade, para então concluírem à sua platéia jovem-revolucionária de que eram irresponsáveis e irrealistas - idealistas -, e se hoje criticam a esquerda é porque já foram um dia e sabem o que estão falando. 

Sheherazade tem quarenta anos, creio que não preciso de mais dez anos para ver meus ex-colegas de faculdade (afinal, estudei no antro marxista do Brasil), então cheios de hormônios revolucionários, discursarem, na melhor das hipóteses, um conservadorismo xoxo de esquerda: de graduandos revolucionários a acadêmicos responsáveis. Auto-crítica, dirão eles, como disseram a eles nossos professores. E a auto-crítica de perceberem que sempre foram conservadores, essa nunca fazem, porque desligitimaria seu discurso de "eu sei" e, pior, poderia mostrar a seus pupilos que eles fazem teatrinho de contestação, nada sério. Como dizia Debord, em 1967, na sua tese 62: "Onde se instalou o consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma oposição espetacular entre a juventude e os adultos: porque não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se substituem sozinhas". Rachel Sheherazade, diante do seu papel político na sociedade, é como qualquer um de nós: insignificante pela sua pessoa e substituível com mais facilidade do que se troca de roupa.

Pato Branco, 12 de janeiro de 2014

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

As complexas dialéticas das relações íntimas

Parece que este fim de ano é moda crise em relacionamentos. Na verdade, pensando um pouco, parece que foi a tônica de todo o segundo semestre – ao menos entre meus amigos e conhecidos. E eu mesmo ando nas minhas crises. Duas amigas que haviam começado namoros há alguns meses vieram ter comigo, esta semana, conversa breve sobre suas desavenças amorosas. Uma iria encontrar o namorado na troca de turno, depois de uma semana sem se falarem: de um lado, reclamações de sufocamento, do outro, falta de atenção. Apelar ao tempo é sempre uma alternativa nessas horas, porém o tempo parece desfazer as esperanças como se desfaz dos minutos que passam com os ponteiros – com minha amiga não foi diferente. A outra recém tinha encontrado a ex, com quem havia recém acabado: estavam juntos há poucos meses, e ela sentia resistência da companheira em trazê-la para dentro de sua vida: o golpe final foi um jantar organizada por ela com os amigos, para o qual não foi chamada, sob alegação de falta de espaço na casa. Na conversa tida há pouco, a companheira dizia que não era questão de excluir, mas de garantir alguns de seus espaços – acontece que nunca tenho espaço com os amigos dela, parece que tem vergonha de mim, comentou minha amiga. Uma frase dela me chamou a atenção (e me motivou nesta crônica): houve um momento em que reclamou que estava cansada de começar uma relação e se ver tendo que pedir pra pessoa mudar: achava que mudanças acontecidas por causa dela não seriam sinceras, eram só para agradá-la e acumulariam ressentimentos para o futuro: queria alguém já pronto, concluiu. Acha que já chegou perto de alguém assim, perguntei. Não, respondeu depois de pensar brevemente. E por que insistir nesse desejo impossível do Outro? Como se não me conhecesse, falou que eu não precisava levar tão a sério as palavras dela. O dia que achar alguém perfeito, desconfie: ou se trata de uma charlatã, que modula seus atos conforme as expectativas do outro, ou você não está observando a pessoa realmente, e sim suas projeções. Lembrei-a então que mudança é pressuposto básico da vida – e que até os mortos mudam. Ela mesma mudara desde que entrara nesse relacionamento: se mostrava mais madura, mais séria, mais ponderada – apesar de geralmente manter sua tônica de oscilações extremas, ou oito ou oitenta, como parecia ser o caso agora. A outra pessoa certamente devia ter mudado desde que começaram a namorar: creio ser impossível um contato íntimo com o Outro que não acarrete alguma dissensão consigo próprio: o Outro nessas horas se torna nosso ponto de estruturação e, ao mesmo tempo, de desestruturação. Uma dialética complicada, complexa, por isso tão rica e por isso sujeita a tantas dores. Por que seria falso uma mudança motivada por uma fala sua, questionei. Porque não foi espontânea, ela não mudaria porque quis, mas porque eu pedi. E acha que as mudanças espontâneas da outra pessoa não foram respondendo a expressões suas – corporais, faciais, sei lá quais mais? Ela deu de ombros: é diferente. Sugeri que ela tomasse um ar – dois dias, se tanto –, e chamasse novamente para uma conversa, aceitando que mudanças – pedidas implícita ou explicitamente – são sinceras, desde que não atinjam pontos muito estruturais da pessoa – parecia ser esse o caso da sua companheira. Ela falou que ia pensar, mas me alertou que havia algo que eu insistia em não saber: há momentos que os sentimentos não seguem meandros racionais.  

 São Paulo, 19 de dezembro de 2013.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Na fila do mercado, numa madrugada de domingo

Oxe, nunca tinha visto, me respondeu a caixa quando perguntei se era comum aquele tipo de cena. Esses esqueitistas, resmungava um homem na fila, no alto de sua sabedoria preconceituosa e senso comum, ignorando que não havia ninguém com prancha ali. Foi a conversa de momento pelos cinco, talvez dez minutos que me demorei ali. Pouco antes havia saído um rapaz, puxado – finalmente – pela sua namorada, aos berros: covardes, dois contra um! Vem só um! Vem só um! Se fazia vítima agora, o macho alfa, que instantes atrás chamava os dois pra briga. Eu entrara na fila de pequenas compras – até vinte itens. Na minha frente um rapaz de uns vinte anos, um saco de pão e uma bandeja de frios. Aparentemente, tudo normal, cada um pensativo com sua compra e na semana por vir. Foi quando o rapaz na sua frente se vira e pergunta que ele está querendo arranjar confusão. Estou aqui na boa, quieto. O da frente insiste, mostrando toda sua testosterona, ignorando os apelos da namorada para que parasse: cadê teu amiguinho? Pouco depois chega o amigo, alargador na orelha, várias tatuagens (como o macho alfa): que foi, ainda enchendo o nosso saco? Nenhum bombado, todos com seus um metro e setenta. Algumas trocas de adjetivos e o de alargador manda calar a boca: vem fazer eu calar. Desafia o macho enquanto empurra o primeiro rapaz, que já havia avisado pra não ralar nele. O de alargador aceita o convite e os dois se abraçam aos gritos de pára da namorada. O primeiro rapaz vê uma garrafa de vodca, pensa rápido e não titubeia: logo voava pelo ar o líquido amarelado ao som de vidro quebrado. Algumas pessoas aparecem para separar: não tem segurança aqui? O segurança chega depois, quando o macho alfa já havia saído com a namorada, se fazendo de vítima. No chão, junto com a vodca, sangue. O primeiro rapaz comenta, indignado, com o segurança: eu tava de boa, ele veio encher, e olha o que ele fez eu fazer com meu brother: reparo no rosto do rapaz de alargador, o sangue jorra do supercílio aberto pela garrafada do amigo

Morais da história: se chamar dois pra briga não os acuse de covarde porque aceitaram o convite; e quando for brigar, só use armas se souber usá-las: você pode acertar seu amiguinho.

São Paulo, 14 de outubro de 2013.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Quase-presente, quase-futuro [Diálogos com o cinema]

Em O futuro, filme de Miranda July, o leitmotiv do longa é um casal de namorados que resolve adotar um gato e vê com isso suas acomodadas vidas (a vida do casal, como a de cada um dos parceiros) abaladas pela expectativa do bichado que virá – o gato está em uma clínica veterinária e terá alta em um mês. Com esse enredo simples, July levanta uma série de questões interessantes sobre a atual geração.

Jason e Sophie estão juntos há quatro anos, têm cerca de trinta e cinco anos, moram juntos. Sophie é professora de balé para crianças. Jason, atendente de assistência técnica por telefone, trabalha em casa. Não são desajustados, são desajeitados, principalmente Sophie, que apesar de dançarina não parece ter uma relação muito harmoniosa com o próprio corpo. Nenhum dos dois chega a ser infantil – “kidults” –, porém são muito imaturos, evidenciado pelo desespero de ambos diante da responsabilidade de adotar um gato – cuja expectativa de vida, e eles sabem disso, é de seis meses. Por essa reação, somada ao marasmo, à passividade das suas vidas, parece que terão pela primeira vez uma responsabilidade de fato: até então teriam apenas cumprido tarefas elementares do fluxograma do intervalo obrigatório até a morte.

Como têm um mês para a chegada do peso da vida adulta, decidem aproveitá-lo. Não, nada de viagens e hedonismo desenfreado: é um tentar se encontrar, antes que o gato chegue para acabar de vez com sua liberdade – que nada mais é que poder jogar tudo para o alto, tão-somente. Eles abandonam seus empregos. Ela anuncia aos amigos seu projeto de elaborar trinta danças em trinta dias – uma tentativa de alcançar o “sucesso” da secretária gostosa da academia, que tinha dez mil visitas ao seu vídeo no youtube. Ele prefere se deixar levar, estar aberto ao que a vida pode lhe oferecer. Mesmo sem nunca ter se interessado por questões ecológicas, entra em uma ONG que vende árvores sob a desculpa de salvar o mundo – não que tenha adquirido qualquer convicção, apenas passou por um homem que anunciava as tais árvores e acho que era o sinal.

Se ele passa a sair de casa, ela faz o inverso, e passa a ficar em casa – eis a grande mudança de vida que eles realizam. Ele parece bem – bem adaptado, ao menos – com seu novo emprego, tal como parecia com seu antigo: no fundo, a impressão que se tem é que qualquer coisa lhe é indiferente: assumiu o discurso ecológico como poderia ter assumido outro e como pode abandoná-lo com a mesma facilidade. Ela, por outro lado, segue desajustada: era uma professora sem vitalidade; em casa, com a tarefa auto-imposta e a comparação com a secretária bem sucedida, simplesmente paralisa. É uma exigência acima das suas forças – talvez não por ela não ser capaz, antes porque não parece ser de fato esse o seu desejo: ela apenas tenta fazer o que as outras estão fazendo. Nenhum dos dois demonstra autonomia (por esses e outros detalhes trazidos no filme), e o arroubo de assumir a própria vida que levou a essa reviravolta (aparente) foi somente um gesto irrefletido e inconseqüente, que não alterou a heteronomia de suas ações, de seus desejos, que não fez brotar qualquer plano para longo, médio ou curto prazo nele – nela, talvez as trinta danças, das quais não consegue sequer realizar a primeira.

Por falar em planos, quando eles se dão conta de sua idade – mais seis meses e temos trinta e cinco, trinta e cinco é quarenta, quarenta é praticamente cinqüenta, e cinqüenta é o fim –, fica evidente a precariedade de qualquer auto-reflexão: os planos de Jason são gerais e banais: ser rico, ser líder mundial; os de Sophie não chegam a ser esboçados: está há quinze anos se preparando. O que desejam, o que os realizariam, o que os fazem felizes são questões longe de serem postas – para ele porque já respondidas desde fora, para ela porque sem resposta.

Uma cena curiosa – até por eu ter me identificado – é quando Sophie decide cancelar a assinatura da internet, para não ficar só assistindo a vídeos de suas competidoras e se sentir cada vez mais fracassada: quando Jason chega do serviço, eles têm pouco tempo pra usar a internet, cada um corre para seu computador aproveitar seus últimos instantes na rede para... buscar informações inúteis, mapas desnecessários, e mais algumas nulidades que não fariam falta a uma vida – mas à nossa, faz (são essas inutilidades que fazem falta à vida, ou nossa vida é uma falta que acaba sendo preenchida com isso?).

Esse o panorama que o filme desenha. Contudo, como comenta o crítico Heitor Augusto, na hora do vai ou racha, July cede, ao invés de meter o dedo na ferida, contemporiza com seu público: o filme vira uma questão de casal, tranqüila para conversas pop-cult-bacaninha depois da sessão, sem causar nenhum desconforto de fato ao espectador. Não deixa de ser um filme interessante – poderia ser melhor.

São Paulo, 20 de março de 2013.