Um homem atrás de mim disse que sentiu angústia
diante do que havia presenciado. Ainda que não seja exata, essa talvez
seja a melhor palavra para explicar o aperto no estômago que me deu "Androgyne -
Sagração do fogo", solo de Alda Maria Abreu, da Taanteatro Companhia.
Pelo título da obra, era de se esperar uma discussão da questão de
gênero, da indefinição entre o ser homem e ser mulher.
E é essa a
primeira impressão, quando Alda surge no palco em traje masculino,
proletário, do início do século passado: calça terno e boina. Essa
primeira impressão dura pouco: o olhar vidrado, o sorriso baço, o
gestual rígido, a maquiagem nas mãos ampliam a questão daquela pessoa de
difícil definição: homem ou mulher? Adulto ou criança? Humano ou
boneco? Pessoa ou máquina? O som de bebê, distorcido, repetido,
metalizado, enquanto a dançarina desaparecia no palco totalmente escuro,
anunciava o nascimento do sujeito do futuro (ao menos para os padrões
do século XIX, ainda vigentes, embora disfarçados): o homem-máquina.
O
humano a serviço da máquina (literalmente falando, mas também da
"máquina social"), muito bem definido em seus papéis. Três projetores
projetam trés sombras de ângulos diversos, sombras duras, muito bem
definidas, em que é possível ver os fios de cabelo de Alda. Contornos
precisos como precisos são os movimentos a serviço da máquinas;
contornos rígidos como rígida é a moral exigida para o bom andamento da
máquina (do organismo) social; triplo em seus papéis, mas todos
delimitados, separados, divididos - ainda que advindos do mesmo sujeito. A formação do sujeito - a disformidade do humano. A criação de um monstro?
Em dado momento o duplo de Alda deixa de ser mera sombra: numa projeção
em vídeo, vemos ela tirar seu paletó em meio a natureza. Ela acompanha o
gesto do palco, adentra a tela e some. Alice através do espelho? Fuga
para a fantasia? Alda sugada pelo espetáculo? Ou o contrário, ela para
fora da máquina espetacular?
No vídeo a ampliação do conceito de androginia para a androginia homem-máquina ganha outros aspectos:
androginia homem-animal e homem-natureza. O clima tenso persiste,
enquanto assistimos a essa perda de identidade humana: Alda se
zoomorfiza, se desfaz do ser na lama. A impressão que dá é que o vídeo é longo,
não por ser chato, mas por ser mais angustiante (aquele aperto no
estômago) do que a dança.
Alda volta. Nesse seu retorno não há mais polaridades, dicotomias, seja
com a máquina, seja com o gênero, seja com a natureza. Seu corpo perde o
fato sisudo e ganha cores pintadas pelas luzes. As sombras deixam de
estar separadas, se misturam, perdem os contornos rígidos, e ganham elas
também cores. Não chega a ser uma redenção - antes um existir livre de
definições, de carapuças, de amarras, de correntes. Alda é tudo e por
isso nada a define nesse estado. Por isso mesmo Alda é um perigo: o
anti-cristo, como simbolizada na sua crucificação de ponta cabeça com
uma cruz com Cristo projetada ao fundo.
Um julgamento religioso-moral-social a tira dessa existência indefinida
(mas plena). Ela só tem direito de existir enquanto definida, delimitada
- a androginia homem-máquina. Voltam as luzes dos projetores, as
sombras duras, porém falta o corpo dócil que se deixa definir. Há um
corpo que se contorce e se retorce, incapaz de ser menos do que é, e não
projeta mais do que a sombra de uma massa amorfa - um isso que um dia
teve a potência de ser sujeito, mas que a sociedade sujeitou a ser uma
forma dócil delimitada em fôrmas impostas.
Numa constelação de possibilidades, a forma de não se entregar é se
consumir como papel no fogo.
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